Ana Maria da Silva
Valente
(7.º ano)
HINO de louvor à
pátria tantas vezes distante, poema de amor à vida e a todas as
coisas belas que ela poderia oferecer, cântico de saudade a um sol,
a uma felicidade que nunca chegou a despontar verdadeiramente, este
é «Só», fruto de um talento que poderia ser fecundo, se não tivesse
sido prematuramente ceifado.
Cem anos se passaram sobre o nascimento do seu autor
– António
Nobre, porém o nome do poeta perpetuou-se, venceu o tempo e a
morte, chegando até nós intacto, coberto pela admiração de todos
os que compreendem a sua sensibilidade e a mensagem
da sua poesia.
António, ou Anto, como ele próprio se denomina em alguns poemas,
nasceu a 16 de Agosto, no Porto, conforme se pode averiguar de um
registo de seu pai, José Pereira Nobre. Estudou no Porto, no
Colégio do Padre Dias, e daí veio para Coimbra, onde era alvo da
admiração dos colegas. Pretendia formar-se em Direito.
Por infelicidade, porque não soube conciliar a sua actividade
poética com as exigências dos estudos ou, corno alguém disse, por
capricho dos professores, reprovou duas vezes no 1.º ano do curso,
ficando assim impossibilitado de continuar os estudos. Resolveu,
então, ir para Paris e, assim, em 1890, instala-se na capital
francesa, onde consegue o diploma de bacharel e se prepara para
obter a licenciatura.
Começou, com esta deslocação a Paris, uma vida errante, uma
verdadeira existência nómada – ora estava em Portugal, ora em
França, ora na Suíça, chegando a ir à América do Norte.
Estas viagens frequentes permitiram ao poeta conhecer diferentes
povos, diferentes costumes, diferentes lugares,
continuando, porém, a sentir
dentro do peito uma enorme saudade, uma eterna vontade de voltar à
terra natal, à sua quinta do Seixo, ao convívio dos amigos
verdadeiros que por lá deixara.
Foi numa das suas estadias
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no estrangeiro mais, propriamente na Suíça, que um médico seu
amigo, – o Dr. Belli – lhe deu a certeza quase absoluta de que
estava a ser minado por uma doença, da qual não sabia, a princípio,
a gravidade. Tinha sido sempre de uma fraqueza manifesta, de uma
debilidade que afligira muito os pais. Mesmo criança, tinha
consciência disso, sentia por vezes como que um presságio de morte
e fazia testamentos dos seus brinquedos, ciosamente guardados numa
gaveta.
A esta debilidade aliava-se uma melancolia permanente, uma espécie
de apatia meditativa; divertia-se, vendo brincar os seus pequenos amigos.
Já adulto, com 24 anos aproximadamente, essa debilidade nata
transforma-se em tuberculose, aumentando ainda mais a melancolia e
a sensibilidade do poeta.
Escreve, durante uma estadia na quinta do Seixo em 1891, ano tão
funesto para António Nobre, os «Males de Anto» que incorporou no
«Só».
Disse funesto e não disse mal: a descoberta da sua doença, o golpe
que sofre então a economia paterna, deixando-o quase impossibilitado
de voltar a Paris para acabar a sua licenciatura, são
acontecimentos que marcaram de maneira bem triste esse 1891.
Tinha António Nobre agora uma nova fonte de tristeza: a doença.
Momentos havia em
que se sentia mais animado, em que o seu estado parecia melhor.
Talvez a cura estivesse próxima, ou, pelo menos, talvez fosse
possível a estagnação do mal. Vãs esperanças, porém. 'Era difícil verificarem-se melhoras, num peito obcecado pela Morte,
atormentado pela
saudade, tão sensível aos males alheios como aos próprios.
Frequentemente, num verso, num soneto, numa poesia em que confessa sinceramente o que lhe
vai na alma, em que fala da causa dos seus tormentos, se refere aos
pobres, aos humildes, aos tristes moribundos, aos tísicos, aos
doentes em geral a quem ele compreendia perfeitamente, devido ao
seu estado.
A sua poesia continua a ser a mensageira da sua vida, dando-a a
conhecer a todo aquele que sobre ela se debruçar. No «SÓ»,
encontramos muitas das pessoas que com ele conviveram, que o
acompanharam em bons e maus momentos ou a quem ele dedicou
especial afecto.
Aquele que partiu no brigue Boa Nova
E na barca Oliveira anos depois voltou,
Aquele santo que é velhinho e já corcova
Uma vez, uma vez, linda menina amou...
Logo no começo do livro, não é senão uma referência ao pai e à mãe
de quem muito cedo se viu apartado.
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E aquela
Magrinha como um choupo,
onde se enlaça a vida
E seu cabelo belo em cachos cachos de uvas
essa é a Purinha, a Margareth a quem tanto amou, mas com
quem não pôde casar, em virtude dos pais daquela, que tantas vezes
vira em sonhos, não consentirem no casamento
com um tuberculoso.
A sua velha ama Carlota, que tanto carinho lhe dispensou, os
amigos, os verdadeiros amigos, foram também citados, ou foram mesmo
assunto de
alguns versos. Georges é uma
dessas amizades; com ele em «Lusitania do Bairro Latino», António
Nobre recorda o seu «país de marinheiros», os costumes do nosso
povo, as romarias, a alegria louçã da aldeia e convida Georges a
vir conhecer as maravilhas duma terra que a saudade e a distância
enchem de encantos sem fim. (Estava então em
Paris).
Entretanto a tuberculose continuava a sua marcha lenta, mas firme:
dada como certa, declarada de impossível cura havia muito,
manifestava-se em hemoptises frequentes e numa fraqueza extrema que
ia habituando o poeta à ideia duma morte muito próxima.
Quantas vezes o coveiro,
«o alfaiate de fatos de madeira», foi protagonista de poesias suas. «Balada do caixão» é o exemplo mais
flagrante da
consciência dum fim que não se faria esperar, acompanhada, ao mesmo
tempo, de resignação, duma resignação que não permitia uma revolta
contra o destino, mas que enterrava o pobre doente numa apatia
cada vez mais profunda.
Há quem acuse António Nobre de narcisismo, de se comprazer com o
seu próprio sofrimento, de se rever nos seus sentimentos, de ter
colhido de Beaudelaire influências pessimistas e, tal como os
ultra-românticos, de exibicionismo de sentimentos. Temos que nos
lembrar, porém, que muitos desses aspectos da sua poesia são
ditados pela própria personalidade do poeta, pela sua maneira de
ser, pela sua sensibilidade doentia.
Lendo o «Só» uma única ideia permanece: o seu autor foi infeliz e suficientemente melancólico para poder fugir à obsessão dessa
infelicidade.
Foi, por outro lado, sincero, a ponto de a deixar transparecer sem
reservas em cada traço da sua pena. Talvez esperasse com isso
encontrar algum conforto, algum remédio.
O dr. Belli dissera-lhe, numa das suas estadias na Suíça, que,
devido ao seu temperamento nervoso e à sua excessiva sensibilidade,
se tornava difícil, senão impossível, a cura. Uma sensibilidade nata
que é aumentada pela
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Só assim Anto pôde ser capaz de escrever poesias que tão bem
mostram um coração dilacerado, uma dor imensa.
Morreu com 33 anos, no Porto, a 18 de Março. Logo ao nascer do sol,
a sua cabeça apoiou-se no ombro do irmão, para dormir o sono eterno.
A vida, aquela vida que ele tão bem tinha mostrado «ao Seu amor»;
aquela vida da qual tanto esperava e que tão pouco lhe dera, aquela
vida, enfim, onde se encerravam os poucos momentos belos e bons da
sua existência e os
corações que ele amara e que o tinham amado, essa vida deixava-o.
Porém, para lutar contra o tempo, para fazer sentir remorsos ao
destino que tão
cruel fora para com ele, Anto, o pobre Anto, deixou os seus versos,
o seu «SÓ», o espelho da sensibilidade que, talvez, mais do que a
tuberculose, lhe apressara o fim da existência.
Cem anos se passaram
sobre o nascimento de António Nobre. Descansa agora feliz, «no lar
de debaixo da terra» que tantas vezes, no seu desespero, desejou...
Porém os seus versos mantêm vivo, na memória de todos os que o
admiram e compreendem, o poeta da morte, da felicidade ardentemente desejada, do
desespero sincero e resignado, o poeta da Saudade.
«NÃO TE PERGUNTES SE ÉS FELIZ, MAS SE FAZES FELIZES OS QUE CONTIGO VIVEM».
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