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farol n.º 19 - mil novecentos e sessenta e cinco ♦ sessenta e seis, págs. 12 e 13.

Gil Vicente

aspectos da vida e obra

Maria Teresa Ramalho Cruz
(7.º ano)
 

(Continuação do número anterior)

O período de criação dramática de Gil Vicente decorre entre 1502 e 1536.

São bastante produtivos estes 34 anos de labor teatral, pois a pretexto de qualquer facto importante – nascimento, casamento, solenidade religiosa – nunca a solicitada arte vicentina se nega à colaboração nas festas reais dos Paços da Ribeira, do Castelo, de Santos-o-Velho e, até, fora de Lisboa, acompanhando a corte nas suas, por vezes frequentes, deslocações.

Gil Vicente produziu, além de outras que não chegaram até nós, 44 obras de teatro, sendo 16 em português, 11 em castelhano e as restantes bilingues.

Os filhos de Gil Vicente, ao publicarem a obra do pai, dividiram-na em quatro partes: as cousas de devoção; comédias; tragicomédias e farsas.

Notam-se três fases distintas na obra de Gil Vicente. Segundo Fidelino de Figueiredo, a 1.ª fase vai de 1502–1508 e nela o autor mostra-se ainda incipiente; ensaia os primeiros passos com a peça em castelhano «Monólogo da Visitação». Trata temas pastoris e religiosos.

Escreve, ainda nesse período, mais alguns autos como o «Auto Pastoril Castelhano» (1502), o «Auto dos Reis Magos» (1503) e o (Auto de S. Martinho» (1506). A 2.ª fase vai de 1508-1518 e durante ela o autor dedica-se em especial a temas históricos e patrióticos e à crítica social.

A maior parte das peças é escrita em castelhano e o autor consegue um efeito cómico através da fala popular e de algumas línguas estrangeiras deturpadas, nomeadamente o latim, o francês e o italiano. O diálogo é também mais natural, mais suave, mais real.

Aparece o «Auto da Fé» (tema religioso), «Quem tem farelos», «Auto da Índia», «Auto da Alma» (1518), o «Velho da Horta», «Auto da Fama», etc.. A última / 13 / fase, a 3.ª, mostra-nos toda a arte do autor, já experimentado e apresentando maior técnica. Utiliza os temas anteriores e não poupa ninguém com a sátira. O interesse cómico é reforçado por referências individuais. Surgem mais obras: «Trilogia das Barcas», «Comédia de Rubena», «Cortes de Júpiter», «A farsa de Inês Pereira», «Juiz da Beira», «O clérigo da Beira», «A Farsa dos Almocreves», «Auto da Lusitânia», «Mofina Mendes» e, por último, «Floresta de Enganos».

A actividade de Gil Vicente, como vimos, principiou com um monólogo expressamente concebido para cumprimentar uma rainha e festejar o nascimento de um príncipe. O protagonista, o próprio autor da composição, exprime-se em castelhano, pois, durante grande parte do século XVI, a corte portuguesa usou indiferentemente das duas línguas.

Seguem-se, a pedido de D. Leonor, a rainha viúva, o «Auto Pastoril Castelhano» e o «Auto dos Reis Magos» que, à imagem dos mistérios da dramaturgia litúrgica, têm por assunto cenas da vida de Cristo e se destinam, respectivamente, à celebração dos dias de Natal e de Reis.

As três primeiros produções do criador do teatro português, acusando embora, no conteúdo e na linguagem, a influência das éclogas encenadas do castelhano Juan del Encina, revelam já o poeta de extraordinário poder dramático, que gradualmente se irá emancipando, até atingir, numa forma constantemente depurada, a visão original e exacta das realidades do mundo.

Nas composições de intenção religiosa – os Autos ou obras de devoção, estabelece o Autor o flagrante contraste entre dois mundos – o profano e o divino.

As alegorias e os símbolos desempenham, sobretudo nesta parte da criação vicentina como nas moralidades do teatro medieval uma função particularmente intensa e viva.

No «Auto da Fé» (1510), dois pobres pastores, que se quedam deslumbrados na contemplação das riquezas de uma capela, são esclarecidos pela Fé, alegoricamente representada. Na trilogia constituída pelo «Auto da Barca do Inferno, do Purgatório e da Glória» – que trata dos castigos e dos prémios que as almas recebem depois da morte – os vícios e as virtudes encontram-se personificados em diversos tipos da sociedade portuguesa do tempo. No conjunto dos autos de devoção sobressai, pela unidade formal e pelo extraordinário vigor dramático, o «Auto da Alma» que exprime o conceito de que o mundo é um simples lugar de passagem no caminho que conduz à Eternidade.

Na peça assiste-se ao antagonismo, à luta entre duas realidades: a da matéria, representada nos tributos concretos e sensíveis do pecado, e o dos valores espirituais, de que a Alma é a figuração simbólica. Este contraste entre o profano e o divino, entre a Ilusão e a Verdade, torna-se patente no «Auto de Mofina Mendes» ou «Mistérios da Virgem» (1534).

(continua no próximo número)

 

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08-06-2018