Maria Teresa Ramalho
Cruz
(7.º ano)
(Continuação do número anterior)
O período de criação dramática de Gil Vicente decorre entre
1502 e 1536.
São bastante produtivos estes 34 anos de labor teatral, pois a
pretexto de qualquer facto importante – nascimento, casamento, solenidade religiosa
– nunca a solicitada arte vicentina se nega à colaboração nas festas reais dos Paços da Ribeira, do Castelo, de
Santos-o-Velho e, até, fora de Lisboa, acompanhando a corte nas suas, por
vezes frequentes, deslocações.
Gil Vicente produziu, além de outras que não chegaram até nós,
44 obras de teatro, sendo 16 em português, 11 em castelhano e as
restantes bilingues.
Os filhos de Gil Vicente,
ao publicarem a obra do pai, dividiram-na em quatro partes: as cousas de devoção; comédias; tragicomédias
e farsas.
Notam-se três fases distintas na obra de Gil Vicente. Segundo
Fidelino de Figueiredo, a 1.ª fase vai de 1502–1508 e nela o autor
mostra-se ainda incipiente; ensaia os primeiros passos com a peça em
castelhano «Monólogo da Visitação». Trata temas pastoris e religiosos.
Escreve, ainda nesse período, mais alguns autos como o «Auto
Pastoril
Castelhano» (1502), o «Auto dos Reis Magos» (1503) e o (Auto de
S. Martinho» (1506). A 2.ª fase vai de 1508-1518 e durante ela o
autor
dedica-se em especial a temas históricos e patrióticos e à crítica
social.
A maior parte das peças é escrita em castelhano e o autor consegue
um efeito cómico através da fala popular e de algumas línguas estrangeiras deturpadas, nomeadamente o latim, o francês e o italiano. O
diálogo
é também mais natural, mais suave, mais real.
Aparece o «Auto da
Fé» (tema religioso), «Quem tem farelos», «Auto da Índia», «Auto da
Alma» (1518), o «Velho da Horta», «Auto da Fama», etc.. A última
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fase, a 3.ª, mostra-nos toda a arte do autor, já experimentado e
apresentando maior técnica. Utiliza os temas anteriores e não poupa
ninguém com a sátira. O interesse cómico é reforçado por referências
individuais. Surgem mais obras: «Trilogia das Barcas», «Comédia de
Rubena», «Cortes de Júpiter», «A farsa de Inês Pereira», «Juiz da
Beira», «O clérigo da Beira», «A Farsa dos Almocreves», «Auto da
Lusitânia», «Mofina Mendes» e, por último, «Floresta de Enganos».
A actividade de Gil Vicente, como vimos, principiou com um
monólogo expressamente concebido para cumprimentar uma rainha e festejar o nascimento de um príncipe. O protagonista, o próprio autor
da
composição, exprime-se em castelhano, pois, durante grande parte do
século XVI, a corte portuguesa usou indiferentemente das duas
línguas.
Seguem-se, a pedido de D. Leonor, a rainha viúva, o «Auto Pastoril
Castelhano» e o «Auto dos Reis Magos» que, à imagem dos mistérios
da dramaturgia litúrgica, têm por assunto cenas da vida de Cristo e
se
destinam, respectivamente, à celebração dos dias de Natal e de Reis.
As três primeiros produções do criador do teatro português,
acusando embora, no conteúdo e na linguagem, a influência das éclogas
encenadas do castelhano Juan del Encina, revelam já o poeta
de extraordinário poder dramático, que gradualmente se irá emancipando, até atingir, numa
forma constantemente depurada, a visão original e exacta das realidades do mundo.
Nas composições de intenção religiosa
– os Autos ou obras de
devoção, estabelece o Autor o flagrante contraste entre dois
mundos –
o profano e o divino.
As alegorias e os símbolos desempenham, sobretudo nesta parte
da criação vicentina como nas moralidades do teatro medieval uma
função particularmente intensa e viva.
No «Auto da Fé» (1510), dois pobres pastores, que se quedam
deslumbrados na contemplação das riquezas de uma capela, são esclarecidos pela Fé, alegoricamente representada. Na
trilogia
constituída pelo «Auto da Barca do Inferno, do Purgatório e da
Glória» – que trata dos castigos e dos prémios que as almas recebem
depois da morte – os vícios e as virtudes encontram-se personificados em
diversos tipos da sociedade portuguesa do tempo. No conjunto dos autos de devoção sobressai, pela unidade formal e pelo extraordinário vigor
dramático, o «Auto da Alma» que exprime o conceito de que o mundo
é um simples lugar de passagem no caminho que conduz à Eternidade.
Na peça assiste-se ao antagonismo, à luta entre duas realidades:
a da
matéria, representada nos tributos concretos e sensíveis do pecado,
e
o dos valores espirituais, de que a Alma é a figuração simbólica.
Este contraste entre o profano e o divino, entre a Ilusão e a
Verdade, torna-se patente no «Auto de Mofina Mendes» ou «Mistérios
da Virgem» (1534).
(continua
no próximo número) |