Carla Campos Sá
(7.º ano – Letras)
DE há muito
conheço e venho cantando a Marcha da Mocidade
Portuguesa. Pois só agora, mea culpa! me foi dado saber o nome do autor das estrofes de clangor heróico, frementes de
juvenil entusiasmo, estuantes de seiva moça e vibrantes de fé nos
destinos da Pátria! Só agora, ao tomar conhecimento da morte de
Mário Beirão, soube caber-lhe a paternidade dos versos que, muito
criança, aprendi a cantar. Mas, pergunto, na ignorância em que tão
longamente permaneci, terei estado só? Ou, pelo contrário, muito e
muito bem acompanhada? E, já que estou em maré de confissões,
acrescentarei mais esta: não foi há muitos anos que vim a conhecer o
nome do autor da letra do nosso Hino Nacional (quem estiver de todo
inocente atire
a primeira pedra...). A razão do facto? Talvez esta: o Hino Nacional
faz parte do comum património do povo português. Mal aprendem a
falar, logo as crianças lusas o entoam, aprendem a senti-lo, para
chegarem à conclusão de que já o traziam no sangue antes de saberem
balbuciá-lo. Que importa, pois, a autenticação duma rubrica. Se cada
um de nós sente tratar-se de algo muito seu? Esta a forma espontânea de sentir e reagir, própria das almas singelas e puras. que a
febre de erudição ainda não contaminou – as almas das crianças, a
alma do povo... Admira, então, que, ao tornar-se o hino da Mocidade
Portuguesa
património nacional, tenha cortado o cordão umbilical que o
vinculava a um progenitor perfeitamente individualizado, e passe a
ter vida própria e à parte?
Por certo que já ouvira falar de Mário Beirão como dum dos
componentes dessa galáxia que gravitava em torno do astro rutilante
que foi, e ainda é, Teixeira de Pascoais. Mário Beirão está,
realmente, integrado no movimento saudosista. Isto sabia-o eu. O que
já não sabia era se continuava exilado cá na terra, ou se já partira
para longe e se encontrava Além. «Talvez alguns críticos das
gerações mais novas julgassem que Mário Beirão já tinha morrido havia muito quando
souberam pelos jornais que ele só agora desaparecera...
Talvez
críticos, talvez, até poetas e decerto muito leitor anónimo» –
escreveu Luís Forjaz Trigueiros em artigo publicado no «Diário de Notícias» a quando da
morte de Mário Beirão, ocorrida em Fevereiro deste ano.
Sendo assim, que admira ignorasse eu o que outros com mais obrigação
/ 6 / de saber desconheciam igualmente? E porquê semelhante
desinteresse da parte de críticos e até de poetas? Diz David Mourão
Ferreira
que «Mário Beirão não viu durante a vida o seu talento poético e o
vero
valor da sua obra devidamente reconhecido». E mais adiante explica
que
«de tal silêncio é ele em grande parte responsável, mercê da
fidelidade
corajosa e discreta, que sempre soube conservar perante si próprio.
Não
se admiram muito, em nosso tempo, exemplos como este de estrutural
fidelidade». É mais ou menos o que diz, também, Luís Forjaz
Trigueiros:
«Escolheu Mário Beirão em vida o discreto silêncio dos que preferem
caminhar sozinhos – Não culpemos, portanto, ninguém nem coisa alguma se a sua poesia não mereceu até agora não direi já uma fácil
abertura de crédito nas tabelas críticas – que pouco interessam ao
verdadeiro artista – mas a hierarquização histórico-literária devida.
Teve o
poeta as mais altas consagrações, os mais lisonjeiros prémios e
através
dumas e doutras passou como se nada fosse com ele, vivendo em voz
baixa um destino que só na obra não pode ser humilde». Depois de ler
estas linhas, já me sinto menos envergonhada da minha ignorância a
respeito daquele que as motivou. Sim, se à volta do poeta se erguera
uma
muralha de silêncio, é para admirar que a sua voz não tenha chegado
até mim? Mas o poeta que através das mais altas consagrações,
«passou
como se nada fosse com ele», devia ser um verdadeiro poeta,
estruturalmente poeta. É que a poesia, muito mais que uma arte, é uma forma de
existência. Por isso, ao verdadeiro poeta pouco importam o consenso,
a
aprovação e o louvor dos homens. A sua obra nasce duma necessidade
intrínseca, tão premente como uma necessidade orgânica. A poesia é
o modo de respirar do seu espírito. Faça ou não faça o gráfico dessa
função, quer a registe quer não, confie ou não confie à palavra
escrita
o seu diálogo consigo próprio, com a Natureza e com Deus, no passado,
no presente e no futuro – pois o poeta tem ao seu dispor a máquina
do tempo –, não deixará de ser poeta em qualquer dos casos. Há,
imagino que haja, poetas que não se realizam ou de cuja realização
não temos
conhecimento. E entre estes estarão porventura muitos dos maiores,
pois terão vivido a poesia em tal profundidade, ter-lhes-á ela enchido
tão
completamente as vidas, que por ela se haverão por completo
despojado
de terrenas vaidades. Mas, ai! Essa poesia, que era a sua vida,
morreu
com eles! É um tesoiro sepultado em lugar inacessível, um tesoiro
para
sempre perdido, do qual os outros homens não beneficiarão jamais.
Felizmente para nós, não é este o caso de Mário Beirão. A sua obra
existe
e fala por ele. No entanto, para mim, Mário Beirão era um pouco mais
que um nome. Tinha de descobri-lo. Partindo, pois, à descoberta do
poeta que nele existia, à minha descoberta do poeta, aventurei-me pelo
«Mar de Cristo», história trágico-marítima ritmada pelo arfar das
naus,
o marulho das vagas, o redemoinhar louco do vento desconjuntando
gáveas, velas e enxárcias! Sofri tormentas, naufrágios, perdições!
/ 7 /
Conheci os horrores da fome e da sede, a ardência do sol e da
febre! Carpi saudades, e ouvi, na escuridão pressaga, o piar lúgubre
de aves agoirentas! Ai! tudo, tudo passei! Exausta. ansiei pela
terra firme. Só nela o tumultuar confuso das ideias viria a serenar,
permitindo-me ver claro, dentro e fora de mim. E, em companhia do
«Último Lusíada», aportei enfim à «Lusitânia». Devo dizer que não
gosto do mar... Entristece-me, apavora-me, faz-me sentir infeliz!...
Mas nem tudo é água tumultuosa na obra de Mário Beirão. Nela, terra
e mar equivalem-se:
«A sombra de Camões rezando oitavas
Pelos meus olhos doidos passou.
Sonhos terrosos de charnecas bravas
Meu nocturno delírio os revelou;
Esfinge que o deserto contemplavas
Teu silêncio de pedra em mim falou».
Camões, «rezando oitavas» dos Lusíadas,
– «poema feito de água», – leva-o a ver no «Mar de Cristo», «a nossa Lusitânia
liquefeita». Mas isso não o impede de revelar os «sonhos terrosos de
charnecas bravas» do seu Alentejo, grande e triste como ele, e de sentir, a par
da agonia dos que «se fizeram à noite e ao mar», o drama de ganhões,
maiorais e maltezes. «Quanto a mim – diz João Ameal – a
personalidade de Mário Beirão, como poeta, desdobrava-se em três faces distintas
–
a do alentejano elegíaco, de estranho poder divinatório, a vaguear
por entre seres e paisagens, a auscultar-lhes. numa exaltação, o
mistério denso; a do épico evocador de vultos, dramas, grandezas
nacionais, atento ao fragor das nascentes e aos temas culminantes da
História dos Portugueses; a do
místico, para quem a Natureza estava cheia de apelos e de presenças
transcendentes... três faces distintas, um poeta verdadeiro...».
*
Percorrendo a obra de Mário Beirão, deparam-se-nos, a cada passo, palavras como estas: «indeciso», «vago», «Além»,
«Longes», «incerto». «cismas», «saudade», «adeus» e «aurora». Este vocabulário
é herança do Saudosismo, a cujo espírito o poeta se manteve fiel, ao
espírito que informou «essa notabilíssima plêiade que retomou,
quase programaticamente, aquele interesse pela terra e pela história
portuguesa, que constituía a dupla herança de
Nobre e de Junqueiro», no dizer
de Mourão-Ferreira, que acrescenta a seguir: «Fernando Pessoa observaria
que, na altura do Ultimatum, «Junqueiro – o de «Pátria» e «Finis Patriae»
– foi a face que olha para o futuro e se exalta»; e António
Nobre foi a face que olha para o passado e se entristece». Poderemos
dizer que esta equação herdou ao mesmo tempo a mágoa retrospectiva de Nobre
e a prospectiva exaltação junqueiriana. Dentro dela, Mário
Beirão terá sido sobretudo a face que olha para o Passado e se exalta...».
Por isto
/
8 /
mesmo, porque «olha para o passado e se exalta», Mário Beirão, poeta
de sempre, é muito particularmente o poeta da hora actual, em que os
seus versos se carregam de tão profundo significado. Bem merece que
a mocidade o conheça e o ame, que lhe decore os versos e se deixe
penetrar bem da sua essência. Ele, em vida o «eterno ausente»,
perdido no «sonho lindo» em que visionava um Portugal maior, esteja
agora presente, na
hora decisiva em que a juventude é chamada a dar tudo por tudo, para
nos mostrar o caminho e nos comunicar o seu entusiasmo, a sua exaltação, a sua fé:
«Cale-se a voz que, turbada,
Já de si mesmo se espanta;
Cesse dos ventos a insânia
Ante a clara madrugada
Em nossas almas nascida.
Nau de epopeia, a varar,
A longe, na praia absorta,
De novo faze-te ao mar!
Acesa de ébria alegria,
Soberba de galhardia,
Que o teu rumo é o verdadeiro!
O que aqui deixo é a singela homenagem duma jovem da hora
actual, ao que soube ser jovem para além da juventude. E é também
uma
despedida, saudosa como todas as despedidas, mas cheia de esperança.
O «Farol», cujo fogo sagrado procurei ajudar a manter nos dois
últimos
anos decorridos, trazendo-lhe a migalha de alimento que podia
dar-lhe,
e lamentando mais não ter para lhe dar, o «Farol» continuará a
brilhar,
e a sua luz, tenho essa fé, continuará a alumiar os meus passos pela
vida
fora, pois levo comigo o facho que nela acendi.
Dizendo adeus aos que ficam, deixo-os sob a sombra tutelar de
Mário Beirão – não podia deixá-los em melhor companhia. E eu poderia
dizer que fechei com chave de ouro, se tivesse sabido usá-la convenientemente... Bem sei que não. Por isso, deixo a porta
aberta. Mas, antes
de afastar-me, quero fazer um apelo: Mocidade Portuguesa, vem
desfilar,
não direi perante o túmulo, o que pouco importa, mas perante o
espírito
de Mário Beirão, que está mais vivo do que nunca. E, cumprido o piedoso rito, partamos confiantes rumo ao Futuro, porque «querer é a
nossa divisa...». |