Eduardo Manuel Neves
Fernandes
(4.º ano - turma A)
A
harpa do vento fazia-se ouvir. Sinfonia Wagneriana, impressionante.
Era o tornado que se anunciava, através da ventania impetuosa e ululante que varria tudo
e rodopiava num medonho bailado. A chuva fustigava
em grossas bátegas. No céu, de onde a onde, o lampejo metálico, ziguezagueante duma descarga eléctrica, zebrava o espaço por segundos, seguido pela voz surda, remota, do trovão, cujo eco se
repercutia pela imensidade.
Indiferente aos efeitos climáticos,
uma sentinela executava o seu giro, quando se lhe depara no caminho uma criança
americana de quatro ou cinco anos [que jóia de criança!), decentemente vestida que, muito tranquila,
avançava em sentido oposto, de encontro ao soldado, não parecendo mostrar receio ou inteiro
conhecimento da espécie de indivíduo com quem se encontrava.
A sentinela parou e perguntou-lhe:
– Para onde vai a menina?
Prontamente a pequena respondeu:
– Disseram-me que o papá estava para
aqui; como há muito tempo não voltou a casa, venho vê-lo, e também porque ouvi
dizer
que os chineses querem matá-lo... Não posso passar? Eu só quero
vê-lo para lhe dar um beijinho, e nada mais.
– Aqui não se pode passar,
minha filha. Volta para casa. A pequena começou a chorar, afirmando querer beijar o pai.
– Não chores, minha
filha, disse o soldado, acariciando-a,
mas, se quiser... dê-me a mim o beijo, que eu o entregarei a seu pai.
Então a pequena, limpando
as lágrimas que banhavam o seu delicado rosto, olhou-o com certa confiança.
– Fará isso? Não me engana?
– Não, minha filha, dar-lho-ei. Como se chamo
a minha flor?
– Annie...
– Pois venha cá a minha
amiguinha; venha de lá esse beijinho para o papá.
E, dizendo isto, ergueu-a nos braços vigorosos, com
delicadeza, até à altura do rosto, onde Annie, contornando-lhe o
pescoço com os bracinhos roliços, colou dois ósculos veementes,
ósculos na verdade sublimes, por dimanarem do puro afecto de um
querubim.
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Como por encanto, parava de chover. No sol sombrio, cor
de chumbo, abriam-se paulatinamente claridades hesitantes, manchas vagas, coloridas de azul translúcido.
Voltando ao chão ela acrescentou:
– Tenho aqui o retrato do papá
(e tirou do corpetesito uma
fotografia). Trago-o sempre comigo, porque ele assim mandou.
Tome-o, para não se enganar com os outros homens,
porque ele agora anda junto com muitos homens...
– Está bem, está bem;
não me enganarei e cumprirei a minha promessa. Agora retire-se para casa, e não venha mais para
estes caminhos.
Como poderia fazer uma semelhante
promessa, se não tinha
a certeza de encontrar o pai de Annie? Seria apenas uma pequena mentira, ou seria um pressentimento?
Entretanto a pequena afastava-se alegre, com um sorriso nos
lábios e um adeus nas suas débeis mãozitas.
A noite caiu pesada e densa como um grande capacete de
chumbo, e o acampamento era atacado subitamente pelas tropas
inimigas em número considerável. De todo o lado vomitavam as
metralhadoras um fogo que levava o rótulo mortífero.
Por sua parte, os
americanos defenderam-se com bravura,
registando algumas baixas. Dos chineses, também muitos ali deixaram
a vida.
Quando os americanos procediam à relação e pesquisa dos
feridos, um soldado americano, atingido gravemente, e deitado de
costas sobre o corpo de um seu camarada morto, ao ver um jovem americano, que parecia oficial entre os seus, exclamou, chamando
a si todas as forças:
– Senhor! Preciso
falar-lhe!
O americano aproximou-se. Ergueu-o pelos sovacos para
pô-lo numa melhor posição, e começou por lhe dizer:
– Está ferido? Isto não é nada. Trataremos
de si. Não morrerá ao
abandono. Dentro em pouco será feita a paz, e Deus há-de livrar-nos a todos desta guerra
ímpia...
– Abaixe-se e oiça depressa... Sinto que vou morrer...
– O que
temos pois?
– Felizmente que o vejo!...
exclamou num esforço, o ferido. Sua filhinha Annie (o americano descorou
ao ouvir este nome,
e tornou-se muito atento)... que encantadora criança! deu-me um
beijo para si... prometi entregá-lo... abaixe-se... receba...
O oficial americano ajoelhou e recebeu, na face, o beijo
febril do moribundo.
– Aqui na fardeta... o retrato... eu morro... adeus...
E exalou o sopro derradeiro, nos braços do pai de Annie,
que o amparavam. Tinha cumprido a promessa.
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