CARTA PÓSTUMA A UM PASSADO DISTANTE

Rompe a dimbira em notas soltas e silenciosas. Devagar. Cinco dedos em cada mão dedilhando cordas na distância imprecisa da ausência.

Penso em ti, ó vida! És sonho interrompido que se continua tecendo como um belo pedaço de paraíso saído directamente dos tempos antigos. Recordo-te. Escolho refugos. Fragmentos dispersos. Recomponho rostos e nomes. Minuciosamente. Reconstruo ruas e bairros, passos e corridas. Peça a peça. Pacientemente, tentando preencher lacunas. Fantasmas fugidios e inquietos. Labirintos. Recrio. Invento. Reinvento. Lembro. Remexo nos sulcos sedimentados das telas onde escapam tantos traços já diluídos.

É difícil imaginar-te no presente: situas-te num passado cada vez mais recuado em tonalidades esbatidas. Perda incólume de primaveras interrompidas feitas outonos precoces. Vida balouçada numa teia de que se partiu um fio - não se desfez inteiramente, cambaleia, permanece. E aí cabemos nós e cabe o sonho dentro de nós.

Tudo tinha um sentido. Passageiro e efémero, afinal!...
Corre um fio de saudade nas margens da ternura com que te pressinto. Foste a exaltação e o enlevo de adolescentes descobertas. Sobressalto e acalmia. Lábios entreabertos respirando quietude e alegria. Olhares faiscando aconchegos e esperanças. Tempestade. Doçura de sol poente. Fugidio encontro - tão breve!

 

 

Estranho rumor da cadência de ecos perdidos. O canto lavado dos eucaliptos após a chuvada tropical. A infância chapinhada de luz em terra vermelho-ocre. O gesto de colher goiabas quentes e luzidios loengos.

Entre as mãos, apenas as memórias dormem, amaciadas pelo tempo - sonhos preenchendo o vazio entre o que de ti sobra e a dureza dos dias que te seguiram…

Devagar. Rompe a dimbira em notas mudas. Chora de mansinho ao som nostálgico do quissange dolente. Ensaiando toadas dos Natais de outrora…
   
Maria Alice Pinho, 21/12/2005


Para que nunca esqueças


para que nunca esqueças
que uma rosa passa por nós
um a um
e cada um por sua vez

tendo nós um dia sido
uma vida inteira

e nela um rio um mar
ou talvez um pequeno charco
que chegou para sermos quase tudo

e vermos como o amor
tudo foi e bastou
    Carlos Pires, 20/12/2005

 

                       Edificação do novo Liceu de Aveiro, actualmente a Escola Secundária José Estêvão, na década de 1950.