A tarde
vai a meio. O Sol é de uma doçura infinita. Gozamos um Outono
esplendoroso. No araçá, carregado de frutos vermelhinhos, um
melro faz um festim. As romãs, como rainhas em suas vestes de
gala, coradas pelo Sol, atraem todos os olhares. Por todo o pomar
os frutos maduros são uma tentação.
—
Corre, corre Lobito! Foge, Manel, lá vem ele outra vez!
A
algazarra é enorme. A sensação de liberdade invadiu as crianças.
O cão ora foge delas ora as persegue numa brincadeira sem fim.
Sentada
na fonte do quintal da velha casa onde nasceu, Matilde saboreia a
alegria dos pequenos que parecem jamais se cansarem de correr,
saltar e rir. Param aqui para colherem uma maçã, além para
comerem um figo e continuam correndo e chamando:
—
Lobito,... Lobito. Aqui, aqui!
O cão
desiste da corrida primeiro que as crianças e deita-se
pachorrento nas folhas, com tons de Outono, que juncam o chão.
Os
netos de Matilde estão agora no baloiço debaixo da cerejeira.
Por instantes um doce silêncio os envolve e ao ver aquele quadro
tão bucólico, Matilde recorda outros meninos e outro cão.
Diante de seus olhos passam cenas onde esses meninos e o seu cão
foram também protagonistas. Parece que uma teia invisível, mas
forte, os liga.
O
Lobito, que agora olha o Manuel e o Pedrito meneando a cabeça
ao compasso do baloiço, é um cão todo preto, alto e elegante
pertença do filho de Matilde e de Luísa, sua nora.
Quem
escolheu o nome para o bicho foi Luísa, e fê-lo porque a cidade
do Lobito é a sua terra natal. Matilde pensa que o carinho que a
nora tem pelo animal, lhe minimiza um pouco a saudade daquele
lugar que tão distante está, quer no espaço quer no tempo. Foi
há anos que partiu, era menina ainda, mas tudo continua gravado
em sua memória, e mesmo que assim não fosse os pais lho
lembrariam já que foi ali que passaram os melhores anos de suas
vidas.
Quando
há tempos o filho e a nora convidaram Matilde para ir a sua casa
e lhe mostraram uma pequenina bolinha preta, dizendo, o filho, que
era o seu cão, que este lhe tinha sido dado por uma amiga e que
iria chamar-se Lobito, a mãe riu-se e disse-lhes:
— O
que vocês não sabem é que já houve na nossa família um outro
cão chamado Lobito. Não o conheci de facto mas esteve muitas
vezes presente na minha infância através das histórias que
minha mãe me contava. Ele era o orgulho de meu pai e o brinquedo
preferido dos meus primos, o João e a Rafaela, que passavam muito
tempo com os tios antes de eu ter nascido.
E
Matilde continuou:
—
Esse Lobito de que vos falo Lobito, não pela mesma razão deste
negrinho mas sim por se parecer com um lobo no aspecto físico,
embora meigo, brincalhão e ternurento, foi animal muito estimado
com o qual viveram momentos de grande alegria e ternura seus donos
e as crianças.
Esse lá
continua com seu ar bonacheirão, há uns bons cinquenta anos,
pendurado na parede da sala com os seus três amigos predilectos.
É no mínimo
curioso que volvido tanto tempo alguém venha fazer parte da família
e sem conhecer ninguém do retrato por já terem partido todos, um
par; o Porto e os outros para viagem sem regresso, venha a
escolher para o seu cachorro o mesmo nome.
Mas não
é só este cão e estes meninos que Matilde recorda; lembra-se
bem melhor dum outro, o Boby, que viajou de Luanda até aqui no
paquete Infante D. Henrique para fazer durante vários anos as delícias
de três meninas e um menino. Eram eles a Clara, a Teresa, a Rita
e o Pedrito, não este Pedrito que vemos baloiçar-se com o primo
sob o olhar atento do Lobito, mas sim seu tio do mesmo nome, suas
tias, e sua mãe. Os quatro filhos de Matilde e o seu cão Boby.
É
através deles que Matilde segue numa viagem de regresso ao
passado, às terras quentes de Angola: Luanda, Lobito, Novo
Redondo.
A visão
das crianças brincando apaga-se como por magia, não ouve mais os
seus risos alegres, seus olhos enchem-se de tristeza. Sempre que
pensa naquelas paragens procura afastar certas imagens. De sua memória,
tentou mesmo apagar totalmente muitos momentos vividos há vinte e
cinco anos atrás, porém sua alma foi marcada com ferro em brasa,
marcas indeléveis que persistem em turvar seu olhar em ocasiões
que não consegue bani-las e esta é uma delas.
De
repente, Matilde encontra-se dentro de um táxi.
—
Decorria o Verão quente de mil novecentos e setenta e cinco, era
o dia dez de Julho. O taxi deixou-me no aeroporto de Lisboa pelas
onze horas e trinta minutos, tinha-o apanhado em Santa Apolónia
após uma viagem no foguete Aveiro-Lisboa. Fora meu compadre
Francisco que me levara a Aveiro para seguir no comboio da manhã.
A viagem para Angola, que meu marido lá tinha reservado há
meses, iria fazê-la num Boing setecentos e quarenta e sete, um
dos monstros voadores da época, que transportava aproximadamente
quatrocentos passageiros. O regresso para os dois estava marcado
havia quase um ano, no Infante D. Henrique, que deveria sair de
Luanda a trinta e um de Julho sendo o único objectivo desta
viagem trazer para Portugal parte do recheio da nossa casa e um
dos carros que lá tínhamos, já que tudo o mais éramos forçados
a abandonar.
Dirigi-me
a um dos balcões da TAP e perguntei se poderia despachar de.
imediato a minha bagagem. Estava morta por partir, ansiosa por
reencontrar meu marido que já não via desde a Páscoa, que nesse
ano calhou em finais de Março, altura em que ele veio passar três
semanas connosco, em que demos um longo passeio pelo Alentejo e
Algarve.
Relembro
os dias que esperei sem saber a data certa da sua chegada. Viagens
de Luanda para a “Metrópole” só se conseguiam se marcadas
com muita antecedência, ou então arriscando-nos a aguentar dias
a fio no aeroporto em lista de espera até à hora de alguma
desistência. Assim aconteceu com ele.
O mais
curioso porém foi, certa manhã, minha mãe, em casa de quem
residia na altura, ao levantar-se dizer-me:
—
Filha, hoje sonhei que o teu marido tinha chegado. Entrou ali por
aquela porta, vinha de surpresa e trazia vestido um casaco verde.
— Lá
vir de surpresa é provável que venha, retorqui, embora ele me
tenha dito que me telefonava antes de embarcar, (era hábito
telefonar-me duas e três vezes por semana, telefonemas que
chegavam a durar de trinta a sessenta minutos) mas vir de casaco
verde Mãe, isso é que já não é provável, ele não tem nenhum
casaco dessa cor.
Mas
pasmem!... Passadas umas horas meu marido entrou pela dita porta
(de surpresa é evidente) e de casaco verde’ vestido. Tivera a
oportunidade de, na véspera já tarde, ter conseguido embarcar de
repente sem ter tido tempo nem
para
telefonar.
No
entanto ao chegar a Aveiro, ligara para um primo amigo, que o foi
buscar à estação.
Quanto
ao casaco verde havia-o comprado por acaso uns dias antes, numa
das lojas da baixa ao pensar que a roupa que tinha era de pouco
agasalho e eu lhe ter dito que por aqui ainda havia muito frio.
Engraçado!
Acontecia muitas vezes, à minha mãe, ter destas premonições.
A
funcionária da TAP muito gentil concordou em aceitar a minha mala
embora ainda fosse muito cedo, pois a partida estava só prevista
para as dezasseis horas e trinta. Deu-me muito jeito despachar a
bagagem ficando apenas com uma maleta de fim de semana, podendo
assim deslocar-me à vontade no aeroporto, ir até ao
restaurante almoçar e descansar um pouco, lendo algumas revistas
que tinha comprado para a viagem.
Após
cumprir todas as formalidades fui até ao restaurante onde comi
um saboroso bife com molho de cogumelos e uma salada de frutas.
Refeição terminada, instalei-me numa das salas a folhear uma
Rakan, revista italiana de moda e lavores. Afinal não tinha
grande cabeça para ler.
A meu
lado um cavalheiro devorava um jornal diário. De repente, quase
que como atraída por um íman, fixo dois dos títulos da primeira
página do periódico.
“Os
piores acontecimentos de sempre em Luanda.”
“Em
Angola a guerra não pára.”
De
imediato todos os meus sentidos ficaram alerta. Sem mais delongas
interpelei o meu companheiro de espera:
— O
senhor desculpe mas, sem querer, li dois títulos do seu jornal. O
senhor já leu o que diz aí sobre Luanda?
— Li
sim, minha senhora. Foi uma chacina. Aquilo está cada vez pior e
é uma pena. A senhora vai para lá ou tem lá alguém?
—
Vou, disse, até já despachei a mala. Tenho lá o meu marido e
precisamente nesse sítio. Deixe-me ver, por favor, o que aí diz.
Li,
reli e fiquei apavorada. O MPLA tinha atacado a delegação da
Unita na Avenida do Brasil com armas pesadas. A minha casa ficava
entre a Avenida dos Combatentes e a Avenida do Brasil, zona à
qual o jornal se referia. Centenas de feridos e dezenas de mortos,
era o balanço.
— Que
horror! O meu marido é louco! Ainda ontem me disse que estava
tudo na mesma, que aqui é que exageravam sempre, que eu podia ir
à vontade, que a luta era entre eles como de costume.
Indignada
disse para o meu interlocutor de momento:
— Já
não vou. Tenho quatro filhos para criar e se ficam sem pai e sem
mãe o que será deles?!...
—
Acalme-se, dizia-me o Senhor, acalme-se que não há-de ser nada.
Se seu marido lhe disse que tudo decorria com normalidade é
porque assim é. Talvez a notícia seja falsa.
O meu
nervosismo contagiou os presentes.
A
conversa estendeu-se a outras pessoas que estavam próximas,
Angola, Guiné, Moçambique, tudo estava em pé de guerra e quase
toda a gente do continente por lá tinha familiares ou amigos; o
que levava as pessoas a escutarem com avidez o desenrolar dos
acontecimentos. A notícia confirmou-se. Uns tinham ouvido na rádio,
outros sabiam do sucedido por outras fontes fidedignas.
Tomei
de imediato a resolução de não seguir viagem. Tentei entrar em
contacto telefónico com meu marido mas do telefone de nossa casa
ninguém atendia por mais que a campainha retinisse durante longo
tempo. Liguei para o escritório, nós tínhamos na altura dois
belos estabelecimentos de modas ainda abertos na cidade; o mesmo
misterioso silêncio.
Meu
marido ou fugira de casa ou estava morto, quem sabe!?...
Fui
espavorida ao balcão onde tinha despachado a mala. A funcionária
que me atendeu já lá não estava, tinha terminado o seu turno e
fora substituída por outra. A muito custo, dada a grande angústia
que me apertava a garganta, expus-lhe a situação:
Tinha
despachado uma mala para o voo com destino a Luanda, mas dadas as
notícias das quais tivera entretanto conhecimento já não faria
a viagem e pretendia reaver a mala.
A
funcionária bem tentou satisfazer o meu pedido, mas logo chegou
à conclusão que isso era inviável. A mala já havia seguido
para o avião e sendo tanta a bagagem e a minha tendo sido a
primeira a ter dado entrada era de todo impossível retirá-la.
Se eu estivesse mesmo na disposição de não viajar, apenas havia
uma solução; fazer uma guia que iria ser entregue à tripulação
pedindo-lhes que ao chegar a Luanda trouxessem de regresso a mala
da passageira que não havia embarcado em Lisboa como o previsto.
Assinei uns papeis que nem sequer li e se destinavam a solucionar
o problema da mala. Queria lá saber da mala!...
Hoje
talvez o avião nem tivesse levantado voo com uma mala sem o
respectivo dono, naquela altura nem se pensava nos atentados à
bomba nos aviões.
Com uma
aflição do tamanho do mundo e o coração apertado deixei o
aeroporto, apanhei um táxi e dirigi-me a um hotel, ali na zona do
Arieiro, onde costumávamos ficar sempre que vínhamos a Portugal,
por ser um dos mais próximos do aeroporto.
De lá
tentei de novo localizar o meu marido, tudo debalde. Fiz vários
telefonemas para Luanda, mas não conseguia comunicar com ninguém.
Só muito mais tarde é que consegui falar com um amigo que me
disse não saber do meu marido mas que iria tentar localizá-lo e
dar-lhe o meu recado e o número do telefone do hotel onde me
encontrava. Referiu-se vagamente ao que se tinha passado na véspera.
Pareceu-me com receio de falar e eu não adiantei mais conversa.
Escusado
será dizer que não consegui dormir nem ler. Com tudo isto já
passava da meia noite quando acabei por me deitar mas fiquei às
voltas na cama.
Pela
madrugada o sono venceu-me. Passado pouco tempo acordei
sobressaltada com o tocar do telefone. Do outro lado da linha a
voz do meu marido. Que alívio! Agora sabia que não lhe tinha
acontecido nada de grave.
O
desgraçado tinha ido para o aeroporto de Luanda na véspera e
dado que o recolher era obrigatório a partir das vinte horas,
tinha ali passado a noite inteirinha à minha espera. Chegado o
avião saíram todos os passageiros menos eu. Dirigiu-se à TAP e
informaram-no de que a passageira em questão não havia
embarcado, não sabiam por que motivo.
Desorientado
resolveu passar, casualmente, por casa do nosso amigo para o qual
eu tinha telefonado e aí foi-lhe transmitido o meu recado.
Telefonou-me de imediato e acordou-me sobressaltada.
— És
uma pateta. Passo eu a noite inteira no aeroporto a passear de um
lado para o outro, ansioso por te abraçar, e tu ficas aí. Não
sabes que é sempre a mesma coisa? São eles uns com os outros. Não
é nada connosco.
— Mas
houve um ataque e diz-se que há muitos mortos e feridos, que foi
o maior ataque de sempre e foi aí no nosso bairro e na Avenida
dos Combatentes.
— Já
está tudo calmo, vem, vem no próximo avião. Telefona-me do
aeroporto logo que tenhas a certeza que tens lugar a dizer-me o número
e a hora do voo. Que tolinha! Já podias estar aqui agora! Liga
imediatamente para a TAP a marcar a passagem. Os caixotes estão
quase prontos, preciso de ti para me ajudares a escolher o que
havemos de levar.
Convenceu-me
embora eu já soubesse do seu optimismo em relação aos
conflitos de Luanda. Primeiro ele não acreditava ou não queria
acreditar que tudo se estava a desmoronar. Gostava demais daquela
terra, tinha ficado enfeitiçado pelos seus encantos logo que lá
chegara em mil novecentos e sessenta e um. Depois ali tinham
nascido e crescido os nossos filhos, ali tínhamos vivido os anos
de maior labor de nossas vidas e lá estava todo o esforço do
nosso trabalho de treze anos, trabalho esse que tinha sido bem
compensador. Deixar tudo assim de repente e ter de começar de
novo a vida a partir do nada não seduzia ninguém. Apesar de
tudo, após um ano de vivência no meio da guerrilha urbana
algumas pessoas acabam por se habituar; era o seu caso.
De manhãzinha
fui de novo para o aeroporto e não sei por que artes mágicas,
consegui lugar no avião que estava para partir. Coisa esquisita,
ao chegar a Luanda verifiquei que o meu relógio de pulso, sem
ninguém lhe mexer se havia adiantado quarenta minutos.
A
viagem parecia nunca mais terminar, deve ter sido daquelas em que
mais me custou a passar o tempo. Deu para recordar passo a passo
todo esse ano desde que saíra de Luanda com os meus quatro filhos
sem saber o que nos esperava em Portugal. Quanta dificuldade,
quanta desilusão!
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