1) População
A população de Timor, segundo o censo referente ao mês de
Setembro de 1951, está calculada em cerca de 442.378
habitantes, assim distribuídos:
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Indígenas ..................................................... |
436.448 |
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Mistos .......................................................... |
2.022 |
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Amarelos e outros ...................................... |
3.340 |
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Europeus ..................................................... |
568 |
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Como se vê, o número dos europeus, quase todos empregados no
funcionalismo, e o dos amarelos e mistos, geralmente
comerciantes ou colonos, é pouco representativo. A grande
massa da população é formada pelo timorense.
/ 20 /
A sua origem antropológica constitui um problema que vem
interessando vários homens de ciência, sem que tenham
conseguido, ainda, dar-lhe solução definitiva. As diferenças
somáticas, a variedade de tipos, a mescla de caracteres, a sua
heterogeneidade, constituem modalidades até hoje
indecifráveis, supondo-se que a ilha, por sua situação
geográfica especial, tenha sido, em tempos, centro cosmopolita
a que afluíram vários exemplares de raças humanas. É de
esperar que na actual fase de renovação e progresso em que
Timor entrou surjam também as condições necessárias a estes
estudos e o problema possa ser aclarado.
Entretanto, pode afirmar-se, como certo, que o tipo
predominante da população timorense é indonésico, forçosamente
influenciado por factores locais, assinalando-se, além disso,
a presença de elementos e núcleos estranhos, cuja origem se
tem ido buscar à Melanésia e à Papuásia, o que faz crer em
remotas emigrações. Esta teoria, porém, deverá ser demonstrada
com argumentos mais sólidos e, mesmo que deva admitir-se,
ainda resta provar se tais afinidades, de facto, vieram de
fora, ou se não andariam já inoculadas em qualquer ramo
indonésico.
Além destas incógnitas sobre antropologia local, um outro caso
ocupa a atenção dos estudiosos e que diz respeito a três
grupos típicos, com certo individualismo somático. São eles os
«Caladis», situados na região de Fatu-Massin; os «Lamak-Hitos»,
acolhidos aos montes de Boboraro; e os «Firácus», / 21 /
espalhados pelo interior de Baucau. Pretende-se ver no sentido
destes vocábulos ocultas reminiscências étnicas, havendo quem
lançasse a hipótese de que os ditos grupos poderiam ser
contados entre os primitivos habitantes da ilha. Tal hipótese,
porém, nos dois primeiros grupos, não resiste à etimologia dos
termos, que são designativos toponímicos e não raciais. Quanto
aos «Firácus», o nome é de significação étnica e poderá
fornecer à antropologia alguns subsídios no estudo destes
estranhos habitantes da montanha, continuando sujeita a
estudos mais sistemáticos e profundos a sua classificação
antropológica.
De um modo geral, o timorense é física e moralmente fraco,
qualquer que seja a sua descendência racial. Exceptuando
alguns bons exemplares, robustos e bem proporcionados,
oriundos quase sempre da montanha, a maioria da gente
apresenta um estado de compleição impressionantemente débil, e
uma tendência acentuada para definhar. Na mulher o brilho da
mocidade esvai-se precocemente, e o homem cedo perde a
capacidade de trabalho. A vida prolonga-se-lhes pelas leis da
inacção, como que embalsamada em múmia, descobrindo-se, por
vezes, no segredo de povoações escusas, velhos que aparentam
séculos.
Esta fragilidade orgânica é, geralmente, classificada de
preguiça, exemplificada com fotografias, postas a correr, de
indígenas amontoados para mover uma pedra de peso
insignificante. Mas a verdade / 22 / é que indivíduos, com
possibilidades económicas de boa alimentação, já se revelam
aptos e decididos ao esforço. Fundamentalmente, importa
criar-lhe outro sistema alimentar mais sadio, que lhe active
os instintos dinâmicos de que dá sobejas provas na fúria das
guerras, no delírio das caçadas, no entusiasmo dos batuques,
etc.
Em compleição fisicamente atrofiada o espírito vive também
adoentado. Inconstância da vontade, indiferença de
sentimentos, inércia da inteligência, são os males que
apagaram no timorense instintos superiores ou ânsias
espirituais, apanhando-se-lhe, no fundo da sua psicologia,
urna certa expressão fatalista. Se tiver que subir a um
coqueiro para colher um fruto, há-de preferir o mais alto,
explicando que, se cair de uma árvore baixa, ficará ferido ou
aleijado para toda a vida; mas se cair muito de cima, morre e
acabou-se... Acrescente-se a estes apontamentos o desalento
apático de uma certa nostalgia ancestral e teremos que a
silhueta do pobre timorense é a de alguém parado, a olhar para
trás. E contudo, temos o facto passado de régulos a governar,
com acerto e inteireza, aquela possessão, em nome de el-rei de
Portugal, e o exemplo de muitos indígenas educados, cujas
faculdades intelectuais chegaram até muito alto: ao quadro
superior administrativo, ao sacerdócio.
Espera-se, por isso, que venham a conseguir-se melhores
condições de robustez moral e física, para despertar naquela
terra as necessárias forças do / 23 / espírito e de
mão-de-obra, capazes de erguer o seu povo àquele nível de
civilização que se pretende.
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2) Regime político-social
Quando os portugueses chegaram a Timor, encontraram a ilha
dividida em múltiplos reinos, mais ou menos extensos e
poderosos. Esta divisão tem-se mantido através dos tempos,
acontecendo, apenas, que muitos destes reinos, preponderantes
em tempos idos, perderam a sua importância; ao passo que
outros, menos influentes outrora, constituem hoje os reinos
principais da ilha, mercê de circunstâncias várias.
Estes diversos reinos mantinham uma independência absoluta,
entre si, embora procurassem, muitas vezes, alianças mútuas, a
fim de resistirem a confederações inimigas, formadas noutras
zonas. Todas estas manobras de guerra tinham em mira a
devastação, o espólio e a captura de escravos.
A sua organização política é idêntica; cada reino está
dividido em «Sucus», espécie de distritos, e estes, em
pequenas povoações («Leo» ou «Cnua»). A autoridade suprema é
constituída pelo régulo
(Liu-Rai) que nos respectivos distritos tem os seus
representantes (Datos); estes, por sua vez, transmitem as
ordens reais aos chefes de povoação (Catuas) que são os
agentes directos da autoridade, junto do
povo. Semelhante organização ainda hoje se mantêm, /
25 / corrigida de certos excessos indígenas, como precioso
auxiliar na administração pública.
O poder dos régulos foi, em tempos, absoluto, dispondo das
pessoas, de suas coisas e de seus haveres, arbitrariamente,
embora a condenação à morte e outras medidas de maior monta
estivessem reguladas por disposições especiais, aprovadas por
seus usos e costumes. Foi para não perderem este direito,
quase tirano, que muitos destes régulos contrariaram a acção
civilizadora dos portugueses.
O regulado exerce-se por direito de sucessão directa; em caso de poligamia, só os filhos da primeira mulher
são considerados de estirpe real. O filho mais velho entra na
posse de suas regalias, só por morte do pai e este, ainda que
venha a tornar-se incapaz de exercer suas funções, mesmo
assim, continuará a ser na veneração do indígena o seu Lui-Rai.
Na falta de filhos legítimos, ou seja, os da
primeira mulher, não são os filhos bastardos, mas
sim os parentes mais próximos do régulo, irmãos ou
primos, que lhe sucedem.
O «Dato» recebe instruções, directamente, do
régulo; não só
as que dizem respeito à vida indígena, entre si, mas também as
que dimanam das autoridades portuguesas. O termo vai caindo em
desuso pelos nossos territórios, substituído pela designação
portuguesa «Chefe de Sucu). Compete-lhe, no seu distrito,
convocar o pessoal obrigado ao trabalho nas hortas do régulo
ou nos serviços do Estado e, em /
26 / caso de guerra, convocar homens capazes de pegar em
armas.
Os «catuas» são os auxiliares dos Datos nas respectivas
povoações; por sua avançada idade, escola da experiência e do
saber, se lhes outorga o privilégio de presidirem nos lugares
em que vivem. Estes respeitados anciãos têm sido substituídos
por gente mais nova, com melhores condições de trabalho e
actividade, e chamam-lhes Chefes de Povoação.
As autoridades portuguesas intervêm, quando convém, a fim de
que sejam eleitos para estes cargos indivíduos, os mais
idóneos, procurando esquecer os costumes indígenas. No
entanto, o povo mantém surdamente o direito de sucessão e
têm-se visto régulos, servidos e respeitados por seus povos,
ainda que preteridos pela administração portuguesa.
Em Timor não há nada que se pareça com o sistema de castas, e
hoje, nem mesmo qualquer distinção de classes, propriamente
dita. Existe o povo e uma certa hierarquia de poderes. Alguns
escritores antigos parecem querer indicar, naqueles sítios, a
existência de uma classe social, de sangue azul, sob a
designação de «Sangue de Pate». A expressão é malaia e o
correcto seria «Sang Adhipaty», que se traduz por Senhor,
Soberano, título honorífico de reis e príncipes.
Alguns dialectos de Timor conservam determinadas expressões
que parecem denunciar ali a existência remota de incógnitas
classes sociais da vida indígena. Os «Badais» (artífices),
pelo seu nível de /
27 /
vida, um pouco superior, por uma certa solidariedade comum,
fazem lembrar, em Timor, os artífices da índia, constituídos
em classes, muito mais organizadas e definidas. Os «Açua'in» (heróis
da guerra) poderão ser talvez vestígios de uma antiga classe
guerreira que, por força das circunstâncias, foi perdendo as
características próprias. Todos estes apontamentos pouco
esclarecem já o sistema de viver timorense, em tempos idos.
Praticava-se também, na ilha, uma espécie de escravatura, a
que ficavam sujeitos os vencidos da guerra; mas aqui, tão
nefanda instituição não assumiu o aspecto degradante,
verificado noutras partes do globo. Inclusivamente, os
escravos, se o mereciam, acabavam por ser adoptados e fazer
parte da família. Devemos esclarecer ainda que a palavra
«Ata», comum a certos falares timorenses e que
muitos traduzem por escravo, se em algum tempo
foi designativo destas pobres vítimas, hoje chama-se assim
qualquer serviçal, empregado na guarda de rebanhos com plenos
direitos de exercer qualquer outra profissão.
Quanto a instituições sociais, a única que se pode assinalar,
entre os timorenses, é a família, organizada segundo os moldes
patriarcais, com obrigações
de contrato rescindível e liberdades poligâmicas.
Referimo-nos aqui, evidentemente, ao matrimónio gentílico,
pois que para os cristãos o «Sacramento
Caben Nian» (sacramento do matrimónio) é celebrado, segundo as
normas e princípios da Igreja / 28 / Católica. Ao seu contrato matrimonial chamam os gentios «Barlaque»,
palavra que também designa o conjunto de prendas que o noivo
oferece ao pai da sua bem amada. Passam por fabulosas as somas
que os pretendentes despendem em ouro, objectos e animais,
para conseguirem a filha dum régulo. Em caso de assentimento,
a noiva também mimoseia a família do rapaz. Então, os
esponsais consideram-se celebrados e, no caso de serem
desfeitos, as prendas já ofertadas terão que ser mutuamente
restituídas, o que é sempre motivo de grandes questões junto
das autoridades. As prendas das noivas são apenas simbólicas, mas os pretendentes são obrigados a corresponder-lhes,
generosamente, e com valores reais. Aquelas ficam, então, a
peso de ouro, tratando-se de representantes de casas nobres. A
influência do cristianismo vai corrigindo estes excessos, mas
ainda aparece quem se permita semelhante ostentação de
grandeza, mesmo entre cristãos. Conta-se do heróico D. Aleixo
que, sendo-lhe advertido o dispêndio que fazia para casar um
de seus filhos com a representante da casa real de Ossu, este
respondera: «se o
Mate-Bian é grande, o Tata-Mai-Lau ainda é maior».
Convém saber que o Mate-Bian é a segunda montanha de Timor,
em altitude, e o Tata-Mai-Lau, a primeira. Aquela situa-se em
terras de Ossu; esta, nos reinos do Buro, que o valoroso D.
Aleixo cobriu
de glória.
No dia das bodas, um ritual gentílico consagra a
união dos cônjuges, que será perpétua, se não surgir /
30 / qualquer motivo para o divórcio. Neste caso, e dado que a
culpada seja a esposa, o marido poderá reaver os valores
entregues aos pais desta, por ocasião do contrato. O novo lar
constitui uma família à parte, mas integrada na casa donde a
esposa é proveniente. Com esta casa contrai o marido obrigações especiais, tendentes ao seu engrandecimento
e expansão. Desta maneira se organizaram casas poderosas, como
as de Camnace, dos Hornais, Costas, etc. É a constituição da
família segundo os princípios patriarcais, onde todos os
cuidados estão voltados, não para o futuro, para os filhos, mas sim
para o passado, para os anciãos. Semelhante conceito, que em
Timor está profundamente arreigado, tem prejudicado muito o
progresso daquele povo.
A poligamia é praticada por toda a parte, dentro de convenções estabelecidas. Qualquer indivíduo desposado,
gentilicamente, poderá tomar ainda tantas mulheres quantas
possa sustentar, desde que
pague o respectivo «barlaque»; esposa será sempre
e só a primeira mulher com quem se uniu. A obra da
evangelização e o espírito da política portuguesa têm
combatido a prática da poligamia, que tende a desaparecer.
Entre os seus usos e costumes aparece, com uma
certa projecção social na vida indígena, o «Pacto de sangue».
Este pacto ou aliança era celebrado entre vários reinos que se
coligavam, entre si, para a guerra, com um ritual próprio,
entre cerimónias de feroz significado. Reuniam-se
representantes dos /
31 / vários reinos que prometiam aliar-se, presididos por um
feiticeiro, geralmente, num ponto escuso, para conservar
secreta a coligação. Organizava-se um festim, durante o qual
todos os representantes misturavam o próprio sangue, colhido
numa pequena incisão do corpo, com uma bebida qualquer ou com
o sangue de um animal simbólico. Depois, todos bebiam desta
poção, em sinal de aliança mútua e de fidelidade perpétua,
para a vida e para a morte. Tanto os indígenas se julgavam
obrigados a este juramento que, em tempos passados, capitães
portugueses, para evitarem a deserção de reinos fiéis, tomaram
também parte nestes pactos, misturando o seu sangue com o dos
indígenas e bebendo-o, depois, pela tigela comum, para que
Timor continuasse a ser português.
Podemos. referir-nos, aqui, também aos jogos, danças e
mercados, como cenas de certo aspecto social. Quanto a jogos,
o timorense tem-se deixado viciar por modalidades que lhe vieram de fora. Na
cidade de Díli, nos bairros circunvizinhos de Motael, Bidau,
China-Rate e Santa Cruz, joga-se animadamente, à meia luz do
candeeiro, arriscando no azar das cartas o que lhes falta para
comer. Nesta escola do jogo se vem formando uma qualidade de
gente, os «bainós», que se habituaram a não fazer nada. A moda
vai pegando, infelizmente, entre indígenas mais em contacto
com estranhos, chineses e árabes,
jogadores inatos, que vêem nas cartas mais um processo de
exploração indígena. A intervenção das /
32 / autoridades, para reprimir abusos, é intensa, mas a paixão do
jogo no timorense é inextinguível.
Para o grande público de todas as zonas a modalidade preferida
é o «Jogo do Galo», tipicamente indígena. Os dois animais
representam sempre dois partidos e não combatem só pelos seus
donos, mas por duas povoações ou por dois reinos. Então, entre
os assistentes, o combate das apostas aquece ainda mais do que
a sanha, entre os adestrados animais. É, de facto, um
espectáculo emocionante,. não só pelo esforço, destreza e
coragem que os galos põem na luta, mas ainda mais, pelo
delírio com que ambas as falanges apoiam o seu animal
preferido. Dados os excessos que nestes combates se praticam,
e ainda porque o timorense é capaz de jogar nas apostas o
único trapo que trouxer vestido, procura-se «civilizar» um
pouco estes combates, em certo modo bravios e de influência perniciosa à índole da população
indígena.
As danças são, como em toda a parte, manifestações públicas de
alegria. O género praticado em Timor pelo indígena é o batuque
(Tebe-Dai) não o batuque africano, descomposto e selvagem, mas
o batuque malaio, rítmico e artístico, mesmo quando, durante
orgias nocturnas, desce à mímica de sentido erótico (Lico), ou
quando exulta selvaticamente a vitória, perante esgares
espectrais das cabeças inimigas decepadas (Loro-Sáan). Também
nestes quadros da vida indígena há ainda muito que
«civilizar», o que se vai conseguindo e, graças a intervenção
/
33 /
da política portuguesa, a dança do Loro-Sáan, hoje, executa-se
como mera representação.
Finalmente, digamos alguma coisa sobre os mercados, ou
bazares, como se diz em Timor, aonde os indígenas de afastadas
regiões se encontram, vendem ou permutam variados produtos
agrícolas, curiosos artefactos, espécies de animais, desde o
búfalo até à catatua que se esforça por dizer alguma coisa
para chamar sobre si as atenções. Donde é fácil imaginar o
colorido do espectáculo, animado pelos combates de galo ou
pela música dos batuques. Estes mercados realizam-se por toda
a parte, em dias e lugares determinados, com modalidades idênticas às das nossas feiras, mas com muito mais interesse
e bulício, podendo afirmar-se que o bazar é, em Timor, o
teatro da vida pública indígena.
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3) Sistema ético-religioso
A lei natural e as normas de seus usos e costumes constituem o
código de moral para os indígenas ainda não convertidos ao
cristianismo, ou mais renitentes à influência civilizadora da
colonização portuguesa. Mesmo estes praticam um nível moral de
vida, relativamente perfeito e longe de se poder classificar
de indigno da natureza humana. A lei natural não se perverteu
em suas consciências, quanto aos princípios essenciais, e seus
costumes tendem à perfeição do indivíduo e não à sua
degradação.
/
34 /
Os conceitos de propriedade e justiça são exactos,
constituindo grave crime o furto de qualquer valor, ainda que
de pouca importância. Aconteceu, um dia, apresentar-se na
secretaria de Baucau um indivíduo, com uma cabeça de homem
decepada de fresco. Vinha apresentar-se e explicar que um
ladrão, (Nauc-teen) cuja cabeça ali estava decepada, entrara
na sua horta para roubar favos de mel, suspensos nos troncos
das árvores. Quis fugir, mas foi apanhado e deu-lhe tantas que
o matou (ha'u bacu nia to mate). Agora trazia ali a cabeça
para que o
senhor administrador visse!... (atu ita boot haré!...)
É costume, entre eles, colocar nos ramos das árvores
frutíferas um objecto indicativo do direito de posse e do
castigo a aplicar a quem se atrever a
colher uma peça de fruto. E o certo é que ninguém
ousa violar o aviso publicado de maneira tão singular.
No campo jurídico os seus processos são já muito
mais complicados, já porque o direito de propriedade é
regulado por princípios característicos de seus costumes, já
porque uma questão apresentada toma sempre proporções enormes
que envolve famílias, povoações e reinos. Casos de «barlaques»,
de animais tresmalhados, de bens do reino, etc., são sempre um
quebra-cabeças para as autoridades
administrativas. Certo administrador, vendo que o
tempo se lhe ia em resolver questões desta natureza, adoptou o
sistema de obrigar a trabalhar, durante três dias, queixosos,
testemunhas e quantos faziam /
35 /
parte da comitiva, antes que desse início à solução do caso. O
expediente resultou, porque as queixas começaram a rarear na
Secretaria.
Os próprios indígenas acham, por vezes, tão intrincadas as
suas questões que entregam a Deus a respectiva solução, pela
prova do fogo ou da água quente. Os queixosos pegam num ferro
quente, ou metem a mão numa panela de água a ferver, e aquele
que não puder resistir é declarado culpado, a quem Deus
abandonou.
Deve registar-se também o sentimento hospitaleiro e generoso
do timorense. A nossa entrada na ilha foi possível, graças ao
bom acolhimento dispensado aos primeiros mercadores que ali
aportaram. Para o amigo ou forasteiro que chegue haverá sempre
um pouco de «tuaca» (vinho de palma) num bambu, alguma carne
seca no fumeiro e, no melhor canto da palhota, uma esteira
para dormir, ainda que os donos hajam de passar a noite
aconchegados à volta da fogueira. Acusam o indígena de ser
ingrato, pelo facto de não se registar nos seus falares
qualquer vocábulo designativo deste sentimento. A assistência
que a população deu aos portugueses foragidos, nos anos
nefandos da última guerra, a coragem com que alguns chefes se
arrastavam até aos limites de Liquiçá, onde muitos portugueses
estavam concentrados sob a vigilância feroz inimiga,
transportando géneros escondidos, com risco da própria vida,
parece que são casos da mais eloquente gratidão, concluindo-se
que os dotes da alma /
36 / indígena não devem ser aferidos pela pobreza do seu
vocabulário.
Em religião, o timorense é monoteísta; acredita num Senhor
Supremo, «Maromac», no dialecto mais comum da ilha. O conceito
que possa ter de Deus deverá ser simplicíssimo a julgar pelos
actos de culto que lhe tributa, invocando-o somente em auxílio
da sua inocência ou da sua fraqueza, em qualquer aflição.
Relativamente à existência duma outra vida, as suas práticas
revelam tendências animistas. As almas continuam a viver, após
a morte, vagabundas por lugares escusos, ou retidas no antro
das montanhas sagradas, ou encarnando em animais e objectos, para exercerem seus malefícios, quando não sejam
lembradas com cerimónias. propiciatórias. A
crença em Deus e numa outra vida constitui toda a doutrina da
sua religião, muito deturpada já num sistema ridículo de
superstições, inspiradas por uma
ideia totémica (Lulic) que está presente em todos os momentos
da sua vida. Assim, para o timorense tudo é «lulic»
(supersticiosamente temível) e passa a vida a fazer «estilos»
(cerimónias rituais) para esconjurar o mal.
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4) Cultura
Embora seja injusto considerar-se o povo timorense
bárbaro ou selvagem, contudo, não se pode dizer que possua uma
cultura, propriamente dita. /
37 /
Apenas se vislumbra na sua linguagem um certo estilo clássico
e em muitos dos seus artigos manufacturados, manifestações de
arte primitiva.
Falam-se em Timor, e referimo-nos só ao território português,
nove dialectos, sensivelmente diferentes. Cada um destes
dialectos admite ainda certas
variações que formam enclaves de pouca extensão.
Dos nove dialectos são indonésios o Tetun, Galoli, Mambai,
Tucuded, Quemac e o Vaiqueno, no enclave de Oe-Cussi. Os
outros três, Dagadá, Macassai, e o Bunac, afastando-se
essencialmente dos primeiros na fonética e na semântica, ainda não foi possível
identificá-los.
De todos estes dialectos o mais conhecido é o Tetun, falado
também fora de Timor, nas Flores, Ende, etc. Foi este o
dialecto adoptado pelos missionários na catequese e pelos
serviços administrativos nas relações com os indígenas, pelo
que será fácil encontrar, por toda a parte, gente que o fale.
Independentemente das expressões e vocábulos tomados do
português, este dialecto é o mais rico em termos e forma
expressiva, e neste poderemos observar melhor as notas linguísticas que nos permitimos registar.
Em primeiro lugar devemos distinguir o Tetun popular do Tetun
clássico, permita-se-nos a expressão. O Tetun popular é usado
na linguagem corrente por quem o sabe falar, enquanto que o
Tetun clássico, só os «catuas» (velhos) de certas regiões,
como /
38 /
Viqueque, Luca, Lacluta, Samoro, conservam ainda o seu estilo
e nele serão capazes de se exprimir. É este o Tetun usado nos
brindes dos banquetes, nos discursos, etc.; e não basta saber
o Tetun comum para se poder entender o que estes «Catuas»
dizem,
quando discursam. O emprego constante das metáforas, das
analogias, a ordem dos discursos, as omissões frequentes, a
conjugação dos verbos, que o tetun popular baniu, todas estas
belezas de estilo deixam em branco a maior parte dos ouvintes.
O mesmo dialecto possui ainda um género de
poesia, suave, cadenciada, em estilo de salmo, com uma
estrutura idêntica. Neste género de linguagem conservam os
indígenas, nas regiões do Tetun, as suas lendas, as suas
tradições e os seus cantares. Estes vestígios literários que o
Tetun conservou, apesar de sabe-se lá quantos anos de
isolamento na ilha, demonstram a sua proveniência de uma
língua rica e culta.
Sobre arte indígena pouco mais poderemos
dizer do que registar a natural propensão do timorense
para trabalhos deste género. Orientados por um ou outro
europeu, têm aparecido trabalhos de escultura
rudimentar, feitos por indígenas, que já não são
toscos bonecos. Propriamente de seu engenho têm
um trabalho de gravura a fogo em bambus. Os motivos costumam
ser figuras, ramagens e desenhos geométricos. São também
dignas de admiração as cenas que conseguem reproduzir nos
panos que tecem, assim como os enfeites das bolsas em palhinha
entrelaçada.
Estes ligeiros apontamentos pouco dizem, de facto, mas poderão
sugerir a ideia de se educar o timorense em vista a promover
na ilha um estilo próprio de arte indígena. |