«Sou Moliceiro
do teu lodo fecundo
sou a Ria de Aveiro
o sal do mundo» |
«rede que teço
e é no sal do suor
que eu aconteço» |
«além da salina
o horizonte me ensina
que há muito mar
muito mar
p'ra lavrar!
p'ra lavrar!» |
Um dia, meus jovens amigos, vão perceber este poema. Se quiserem, peçam
ajuda aos vossos paizinhos, que talvez saibam explicar melhor do que eu.
Hoje é 8 de Setembro, dia do
São Paio da
Torreira. Este santinho é aquele de quem os pescadores mais gostam.
Nasceu em Coimbra, em 26 de Junho de 925.
Quando era conhecido pelo nome de Plágio, no
ano 938, os mouros torturaram-no e queimaram-no, por ele ser
cristão. Na festa, o arraial estava cheio de tendas ambulantes com
medalhinhas, bentos e brinquedos. Nas tasquinhas havia malgas de barro
para o vinho carrascão, xarope de avenca e hortelã-pimenta. Noutras,
havia bugigangas e anéis de prata para o compromisso com a namorada.
Pelo meio do magote de pessoas, havia alguns ceguinhos com óculos
escuros para disfarçar e um garoto pela mão apregoando pobreza e versos
maldosos para as velhotas, ou
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choradinhos e desgraças; jogadores de roleta e lorpas alumiados à luz do
carbureto ou do petromax. Toda a gente dançava o virinha-cruzado e os
aleijadinhos estendiam a mão pedindo esmola.
[
Mais informação
acerca do S. Paio da Torreira ]
Os burburinhos, porque a carraspana é grande, ou um larápio carteirista
de mão leve que quis roubar a carteira a algum papalvo, obrigavam a GNR
a intervir. Eram só cabeças rachadas de onde saíam lufadas de vinho –
dizem que, antigamente, os pescadores davam um banho com vinho ao santinho, que depois
bebiam para curar doenças, ou arranjarem namorada e cantavam depois:
Graças a S. Paio p'ra sempre
Louvado seja o seu esplendor
Já que hoje ouvi uma fala
Da boca do meu
amor!
O paganismos destas festas aos santos nunca
fizeram mal à fé, como as pregações, nunca prejudicaram o negócio, nem
os folguedos estorvam a devoção. A fé de cada um não se perde com o
lanche. Há muitos romeiros que vão à festa por devoção a São Paio, mas não escapam à alegria
contagiante.
E os romeiros que moram à beira dos seis mil hectares da laguna, mais
conhecida por ria, vieram, um dia antes, para participarem no arraial ao
nascer do dia, que
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é único na região. Toda a ria é uma festa. Tão linda, cheia de barcos
com as velas desfraldadas, ilhas, cabedelos, canais, esteiros, marinhas
(onde se faz o sal) com nomes engraçados como: "Pajota", "Biscarroída",
"Calções Verdes", "Senitra", "Raivosa", "Burranca", "Inferno",
"Paraíso", "Andorinha", "Suja", "Trapalhona", "Gaga" e muitos outros. As
marinhas têm um muro à volta que se chama mota e
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uma entrada de água que se chama bomba. Dentro dos muros altos há uns baixinhos que dividem a marinha em sete tabuleiros e a água vai
passando de uns para os outros. O sétimo e último tabuleiro é chamado de
marinha nova. A água está a 25º centígrados e é onde se fabrica o sal
por acção do sol e do homem. A esses rectângulos, chamam algibés.
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Também há marinhas de junco e viveiros onde se criam peixes como o
robalo, a tainha, a enguia e outros. E os montes de sal, com o formato em cone? Alguns cobertos com bajunça, por causa da chuva não
derreter o sal. E os palheiros que, há muitos anos, eram em madeira e
que servem para guardar
o ugalho, o rapão, a pá de amanhar, a razoila, o circío e o pajão, que
são algumas alfaias para os marnotos
trabalharem?
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Nos palheiros também há um ou
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dois catres, para as pessoas dormirem, prateleiras para porem pequenas
coisas, pois a comida é pendurada nas traves que atravessam os palheiros
em sacas por causa das formigas. Fora dos palheiros costuma haver: uma
pequena horta com couves, batatas, cebolas e outras hortaliças, uma
figueira e uma parreira de cachos que também serve para fazer sombra. Os festivaleiros vêm, na sua maior parte, de barco. Lá estavam amarrados
aos moirões os mercantéis, as marinhoas, as erveiras, as patachas, as
labregas, as caçadeiras, as bateiras da chincha, as bugigangas, as
moliceiras de Canelas e os matolas de Vagos. |
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O colorido das bandeirolas, a música, os foguetes e aquela multidão
eram duma alegria contagiante! Mas notava-se que os moliceiros eram
meia dúzia, sendo a maioria oferecidos a colectividades pelas Câmaras Municipais.
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Se nos lembrarmos que, em 1889, havia 1.749 moliceiros e 3.644
camaradas; em 1935, 1.008 moliceiros e em 1988 apenas 2 moliceiros,
compreendemos que, por causa do moliço deixar de ser utilizado para
estrumar as terras, levou ao desaparecimento progressivo deste lindo
barco. Agora, os moliceiros que se constroem são mais
para lazer (o barco não é para o trabalho, mas para regatas, corridas,
passeios ou concursos de pesca) dos donos e para participarem, em
Agosto, na tradicional regata Torreira-Aveiro, do que para transporte
de materiais.
Nas Bulhas, ali em Pardilhó, onde o mestre Toni tem o seu estaleiro, com
as suas mãos sábias, construiu um pequeno moliceiro com 9,30 m de
comprimento, 2 m de boca e 0,40 cm de pontal, a que deu o nome de
"Moliceirinho Sabichão". O destino tem destas coisas e, pois não é que
no estaleiro nas Barrocas, lá para os lados de Seixo-Mira, o mestre
Loureiro, filho do mestre "Gadelha", não construiu também um barco com
7,30 m de comprimento, 1,60 m de boca e 0,90 cm de pontal a que deu o
nome "Matolinha das Folsas"?
Um e outro mestre construíram os barcos para passear e irem a festas,
como a
das Folsas Novas que se realiza em Agosto e ao S. Paio da Torreira como
agora estava destinado. A "Matolinha" tinha saído muito cedo do
estaleiro, pois teve de vir de tractor até à Quintã e ser lançada no rio
Bôco, subir o canal do Espinheiro, entre o Gramato e a ilha do Monte
Farinha e, quando guinava para o Canal de
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Ovar, aparece-lhe por estibordo o "Moliceirinho".
Quase se chocaram e, para espanto dos mestres-camaradas que os
conduziam, foi amor à primeira vista! Encostaram-se um ao outro e,
ainda que a água estivesse remansosa, sentiram cócegas ao roçarem-se. O
Moliceirinho ficou tão contente que até parecia que dava saltos por cima
da marola. Retesou a corda de bolinar e desatou numa tão louca
velocidade que a Matolinha não o conseguia acompanhar. Como era muito
mais leve que os moliceiros de trabalho, fazia-lhes desafios, passando-lhe tangentes pela frente, dava uma volta por detrás deles,
mudava de escota e voltava a passar pela frente.
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Com a brincadeira, roçou numa estaca que fica em frente à Pousada da
Ria. Mais calmo, voltou para junto da sua Matolinha, mas esta não quis
começar logo a namorar, pois achava que ainda eram muito novos e
disse-lhe:
– Vamos pensar bem no assunto e para o ano, quando vieres de novo à
festa, conversamos.
Para acabar, seguiu-se com este adágio:
– "Mulher à vela, marido ao leme", entendes?
O Moliceirinho não desarmou e respondeu-lhe:
– "Mulher sem marido, barco sem leme", mas está bem, só te peço que
esperes por mim.
Conversa puxa conversa e o "Moliceirinho Sabichão" propôs à sua
namorada:
– O nosso encontro parece não ter sido obra do acaso e, se estamos um
para o outro, vou dizer-te que não gosto de te ver assim toda de preto.
Pareces uma "triste viuvinha". Vou sugerir ao humano teu dono para
te encher de bandeirolas coloridas no bolinão, na amora, na ostaga, na
escota, enfim, em tudo o que seja corda e até na aresta da vela. No topo
do teu mastro será içada uma bandeira de Portugal. Também no teu caracol
e no traseiro, um enorme ramo de flores e até nas cintas da borda uma
grinalda de flores como uma noiva, no dia de casamento!
Chegados à Torreira, amarraram-se aos moirões para não serem levados
pela força
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da maré e ficaram a namorar, bem encostadinhos um ao outro, esperando que
os camaradas e os romeiros viessem da festa. O moliceirinho começou a
dizer palavras bonitas ao ouvido da Matolinha, mas esta queria que a
conversa fosse coisa mais séria e disse:
– Olha lá, tu que tens antepassados mais velhos do que eu e, sabendo eu
que uma jangada com moliço em cima é um moliceiro, explica-me porque é
que, especialmente a tua família, são considerados os mais lindos barcos
de Portugal?
O Moliceirinho deu um encosto à Matolinha, pensou um pouco e respondeu:
– Sabes, isto é uma história muito antiga que o meu avô ouviu do seu avô
e assim sucessivamente. Ainda hoje, há discussões entre os humanos
acerca da nossa origem. Uns dizem que descendemos do barco drakkar dos
Vikings, lá da Suécia; outros dizem
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que descendemos dos barcos Fenícios, lá do Mediterrâneo.
Lá porque encontraram em Ur, lraque, um modelo em prata dum barco com a
proa e a popa levantada que usavam na Suméria, há 4.000 a. C., já o copiámos, mas esqueceram-se dum barco que parece uma gamela que
existiu entre 6.590 a 6.040 a. C. Como se os nossos habitantes da borda
de água não tivessem cabeça para pensar!
E tinham. Basta lembrar a construção das naus e das caravelas com que
descobrimos o Brasil, a Índia, entre outros países e o nónio que Pedro
Nunes (1502-1578) inventou. Basta ver a quantidade enorme de barcos
diferentes e adaptados às diferentes necessidades de trabalho, nos rios
e no mar, que há cá no nosso país!
Se calhar e, pelo que eles dizem, também copiámos o "rabelo" do rio
Douro, a "fragata" do rio Tejo, o "calão" do Algarve e muitos mais.
Se calhar foram os outros que copiaram pelos nossos barcos, pois temos
muitos rios e muito mar e, dantes, as estradas eram os rios!
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Queres a melhor prova disso? Foi o facto de terem sido encontrados
vários barcos muito antigos na nossa Ria. Não sei se sabes que, há
quarenta anos, foi descoberto, na Barra, um barco com mais de
quatrocentos anos, outro em 1992, na praia de Biarritz, com mais de 500
anos; outro, há dez anos, no canal de Mira e outro, há seis anos, no
Porto de Aveiro, com igual idade e que, segundo um humano-cientista de
nome Francisco Alves, a Ria de Aveiro é, no país e no estrangeiro, o
local onde há a
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maior e mais bem datada colecção da Época dos Descobrimentos! Até um
astrolábio náutico, fabricado em 1575, foi encontrado junto da lota
velha!
– Estou admirada com o que tu sabes! És
mesmo um moliceirinho sabichão! Já agora continua a contar tudo, que
eu adoro ouvir-te.
– Ia perdendo o fio à meada. Pois...
quando começou, há dois mil anos, o fechamento com areia do cordão
litoral, onde hoje é a Torreira, S. Jacinto, Costa Nova e por aí
fora até ao Cabo Mondego e os fundos da ria começaram a ficar
baixinhos, começou a nascer o moliço que, para que saibas, tem os
nomes de sirgo, limo, fitas, corga, rabos e muitos outros. Logo os
humanos descobriram que o moliço era um bom fertilizante para adubar
as terras, de onde vem grande parte dos nossos alimentos. |
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Capela de São João no Rossio de Aveiro e
barcos mercantéis há 100 anos.
Rossio há100 anos |
Para apanhar o moliço, qualquer barco servia, desde que não tivesse
quilha, isto é, que fossem baixinhos. O mais antigo deve ter sido muito
semelhante ao nosso primo mercantel que era pau para todo o serviço,
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pois acarretava desde pedras, madeira, sal, moliço, humanos e muitas
outras coisas. (mercantel)
A Matolinha, impaciente, voltou à carga:
– Tá bem, mas, espero que não fiques vaidoso. Porque és tão lindo?
O Moliceirinho pareceu corar, mas era apenas o reflexo avermelhado do
sol no seu ocaso que, no seu rastro, se alongava ria fora. No entanto,
talvez, por efeito de uma marola, levantou a popa e, após esse gesto,
continuou a explicação acerca da sua origem.
De repente, ficou silencioso e, antes de prosseguir com a sua explicação,
disse à Matolinha:
– Como se comporta o teu camarada humano?
Respondeu aquela:
– Não vês como ando pouco asseada? Para além disso, não preserva a
natureza, pois despeja lixo nas margens e até mesmo na água. Isso
prejudica tanto os próprios humanos, como a terra e a água. Mas há
muitos camaradas humanos que têm barcos lá para o meu lado e cuidam dos
problemas ecológicos.
– Não fiques triste – atalhou o Moliceirinho
– a maioria dos humanos é
assim e ainda goza com os ambientalistas. Cá o meu "chefe", ainda há
dias, veio com uma carroça carregada de lixo e coisas velhas e atirou-as para a nossa Ria. Teve sorte em não aparecer a Polícia Marítima que
lhe aplicaria uma multa.
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Quanto à nossa origem vamos imaginar, mas com fundamentos históricos e
técnicos. Há pouco mais de cem anos, um humano, que construía os nossos
antepassados, tinha um estaleiro em Pardilhó e, em conversa com um dono
de barcos, entre os quais alguns dedicados à apanha do moliço iguais a
tantos de outros donos e feitos noutros estaleiros, recebeu a
seguinte proposta:
«Ó Mestre, eu quero um moliceiro mais bonito e diferente de todos os
outros moliceiros.» O Mestre ficou entusiasmado com a ideia e respondeu: «Está bem, vou pensar nisso.» |
No outro dia, olhou para os barcos que estava a construir e reparou, no
enrolado da proa do "meia-lua" e da ilhava que tinham as formas mais
elegantes e bonitas. Sem se preocupar para o que servia o moliceiro, mas
sim na sua beleza, avançou com a ideia e logo fez uma pequena maqueta.
Lembrou-se das ondas do mar e enrolou a proa e, para não parecer
um pardal sem rabo, equilibrou a ré e o leme com a proa. Mostrou ao
futuro dono que, embora gostasse muito, propôs umas pequenas alterações
que lhe pareciam fazer o barco mais lindo e airoso. O Mestre pôs mãos à
obra e construiu o primeiro moliceiro, semelhante ao que somos hoje!
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Claro que a história não acaba aqui. Os outros donos dos mercantéis
ficaram ruídos de inveja com tal beleza e logo falaram com outros
construtores da sua confiança, para fazerem moliceiros mais bonitos do
que aquele. Depois houve a sã rivalidade entre os mestres e donos que
queriam que o seu barco fosse mais bonito do que o do vizinho! Ainda não
há muitos anos, o mestre Agostinho Tavares da Silva dizia que «é um
barco feito a gosto e não por risco»... «e que o gosto é estimulado
pelos donos dos barcos». Já o mestre Henrique Lavoura dizia que «quem
manda fazer um barco,
tem paixão por ele. Por isso, quere-o mais bonito que o dos outros».
A Matolinha estava admirada com o que o Moliceirinho sabia, mas queria
saber mais e perguntou-lhe:
– Olha lá, como vês, eu e os de lá da zona de Vagos não temos pinturas,
somos negros como carvão e vocês têm pinturas tão lindas! Isso deve
ter tido um começo e, tu que sabes tudo, também sabes como isso começou?
A recurva do Moliceirinho até pareceu que inchou. Ficou silencioso até o
terretétéu, pum, pum, pum! do foguetório acabar e, com ar emproado de
sabichão-mor, disse:
– Sabes, os primeiros moliceiros meus antepassados, não
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tinham pinturas como hoje, a não ser a da matrícula, porque a isso eram
obrigados pela Capitania. Mas, como sabes, os "camaradas" que nos
comandam e, como humanos que vivem junto aos rios, Ria e mares, dos
quais retiram o pão nosso de cada dia, são muito religiosos.
Quando em perigo de naufragarem, fazem promessas a Deus, à Nossa Senhora
e aos santos. Então, começaram a pintar uma cruz à proa. Como humanos
tinham o seu santo de devoção e resolveram pintá-lo, como por exemplo,
Santo Amaro, mas sendo maus pintores, ninguém sabia quem era o Santo.
Então escreveram o nome do santo, nascendo, assim, as legendas. A
provar isto, vou-te citar algumas legendas que estão nas proas e na ré
de alguns moliceiros: «Ora bamos lá cum Deus», «Bamos com St.º
António», «Sinhor dos Nabegantes» e muitas outras. Não te admires com os
erros de português, porque se eu te disser que em 1900 entre cem
portugueses, nem trinta sabiam ler! Hoje, escreve-se assim de
propósito, para conservar a tradição.
Quanto aos arranjos ornamentais ou motivos decorativos,
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à volta das figuras, baseiam-se no que sucede nos altares das capelas e
igrejas. Podemos dizer que "é para enfeitar o Santo".
– Mas há uns desenhos retorcidos que não têm nada a ver com
"Flores" –
disse a Matolinha.
– Já esperava por essa e, respondendo à tua insinuação, direi que, se
olhares para o retorcido das colunas dos altares e desenhos que vêm nos
missais de ir à missa, vês desenhos muito semelhantes que os camaradas-devotos "transportaram" para os nossos painéis. Ainda não
falámos do desenho redondo que está pintado no nosso leme e que não é
mais do que o emblema do humano que nos construiu.
Mas o pior é que os humanos, que gostam muito de nós, andam tristes por
não nos considerarem Património da Humanidade, pois além de lindos,
somos, únicos no
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mundo! Olha que andam, há décadas, para o conseguir, mas há sempre
entraves. Em 2009 voltaram a apresentar-se à candidatura promovida pela
Fundação "New Open World Foundation" (Fundação Mundial Nova Abertura)
que termina no dia 7 de Julho para que a Ria, com todos os seus tipos de
barcos, seja Património da Humanidade como uma das "Sete Maravilhas
do Mundo".
A Matolinha voltou à carga, dizendo:
– Tou a gostar de te ouvir, mas só falaste em painéis religiosos e,
então, os outros que são maldosos e gozões...
– Espera lá, isso também tem explicação – retorquiu o Moliceirinho
Sabichão. – Lembras-te de eu dizer que se criou uma certa rivalidade
entre os donos dos barcos, por um lado, e entre os construtores, por
outro, e que eram mais de dez? Ainda muita
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gente se lembra dos construtores Manuel Tavares, do Agostinho, do Rato,
do Felisberto, do Raimundo, do Ferreira da Costa, do Toni, do
Preguiça, e talvez o maior de todos, que foi o Lavoura. E cada um era o
maior de lá do sítio como as legendas dizem.
Ouve, então, o nome de algumas: "O Leão da Moda", "O Galo da Ria de
Aveiro", "A Estrela do Lameiro", "Eu, sou, do Canto da Lagueira", "Eu
sou de Ovar", "Na Torreira mando Eu", "A Vaidosa do Lameiro", "A Flor do
Arieirinho" e "O Rei da Marinha". Depois vieram as amorosas e as
maldosas, como por exemplo: "Dame um
Beijo Amor" e "Esta qui mas num é pra ti". Para não serem iguais aos
outros, ao longo dos anos, os humanos, envolvidos na nossa construção,
foram inventando novos desenhos e legendas. Para dizer a verdade, os
pintores de agora são muito perfeitos comparados com os de antigamente. Eu não gosto, e tu que dizes?
– Sabes, eu como nunca tive pinturas, tanto me faz. Para mim, vocês são
todos muito lindos, mas tu por seres tão sabichão és o mais lindo e
gosto de estar ao teu lado, saboreando esta calma e este fim do dia,
esperando os nossos humanos que espero não venham bêbedos da festa.
Eu vou até
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às Folsas e tu até ao Bico da Murtosa. Não sei se para o ano nos
voltamos a ver, pois como sabes, mesmo que os humanos nos tratem muito
bem, não duramos muito mais do que seis anos.
– Que eu saiba, só o humano Ti João Malta, que tem mais de cem anos,
começou aos catorze anos a ir ao moliço com um moliceiro que a mãe lhe
comprou. Ia
reparando-o e pintando-o, de tal maneira, que durou doze anos. Não sei
se sabes que
somos construídos com madeira de pinheiro que já não é tão boa como
antigamente. Mas não fiques triste, pois mais vale namorar um só dia, do
que ficar só toda a vida!
E lá se separaram. Ele para o Cais do Bico da
Murtosa (onde todos os anos se realiza um Mercado Antigo). A Matolinha,
acompanhada da restante família Matola, partiu, pensativa, para o Cais
das FoIsas Novas, na esperança de que, para o ano, ia dar o
nó, isto é, ia casar com o Moliceirinho!
Só pedia a todos os santos para que o pintor de Vagos, Jonny Santos, que
vai para a região da Murtosa pintar moliceiros, também a pintasse a
ela, de forma a ficar mais bonita. |