Bartolomeu Conde, Escritos, Cacia, ed. da Portucel, 1985, 94 pp.

O MORTO, A BANDEIRA E O PRESIDENTE


O Rockea era um dos vários finlandeses que vieram para Cacia orientar a implantação da maquinaria destas instalações fabris e que por aqui permaneceu até 1954/1955.

Um dia fui com ele até à Serra da Estrela, aproveitando uma viagem de automóvel do Ferreira, da EMA (Empresa de Madeiras).

Enquanto o Ferreira tratava dos seus negócios — aquisição de madeira de pinho para a fábrica — o Rockea e eu deitámo-nos à som­bra dum frondoso pinheiro, mãos atrás da nuca, a servir de almofada, no mais cómodo ripanço, apreciando as belezas rudes da nossa mais soberba serra. O Rockea já arranhava o português e foi assim possível estabelecer conversação, embora aqui e ali entremeada de alguns «palavrões» em inglês.

— Rockea, do que mais gostas em Portugal?

— (rápido) Do brande... muito bom, very good!

— E do que é que não gostas?

Pensou um bocado. Pressenti que havia muita coisa de que não gostava. Daí, a demora na resposta. Finalmente disse, em voz grave:

— Mulheres trazerem muito peso à cabeça! Muito mau!

Referia-se, como era evidente, às nossas trabalhadoras do campo, que transportam à cabeça grandes molhos de erva para o gado.

— E dos portugueses, gostas?

— Bons companheiros, mas muito...

Faltava-lhe a palavra. Levantou-se, curvou-se muito e fez o gesto simulado de tirar o chapéu em grandes vénias... Referia-se aos nossos desmesurados cumprimentos. Ajudei-o.

— Cumprimentamos muito os chefes, é isso Rockea?

— Oh yes, yes...

— Então vocês, na Finlândia, não cumprimentam os chefes?! Não tiram o chapéu?

— Oh, yes... mas só a três coisas, exclusivamente: morto, bandeira e presidente.

Calei-me a pensar. Na verdade, nós, portugueses, vamos de pólo a pólo: — ou nos curvamos como paus de bambu, ou descemos à irreverência, quando não mesmo à insolência.

Vem isto a propósito de certas atitudes que se têm visto neste mundo de Cristo: há quem não respeite a bandeira, como há quem não respeite os mortos; como há também quem não respeite, na pessoa do cidadão Presidente de Portugal, a nossa própria cidadania de portugueses!...

Junho – 1981

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