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O MORTO, A BANDEIRA E O PRESIDENTE
O Rockea era um dos vários finlandeses que vieram para Cacia orientar a
implantação da maquinaria destas instalações fabris e que por aqui
permaneceu até 1954/1955.
Um
dia fui com ele até à Serra da Estrela, aproveitando uma viagem de automóvel
do Ferreira, da EMA (Empresa de Madeiras).
Enquanto
o Ferreira tratava dos seus negócios — aquisição de madeira de pinho para a
fábrica — o Rockea e eu deitámo-nos à sombra dum frondoso pinheiro, mãos
atrás da nuca, a servir de almofada, no mais cómodo ripanço, apreciando as
belezas rudes da nossa mais soberba serra. O Rockea já arranhava o português e
foi assim possível estabelecer conversação, embora aqui e ali entremeada de
alguns «palavrões» em inglês.
—
Rockea, do que mais gostas em Portugal?
—
(rápido) Do brande... muito bom, very good!
—
E do que é que não gostas?
Pensou
um bocado. Pressenti que havia muita coisa de que não gostava. Daí, a demora
na resposta. Finalmente disse, em voz grave:
—
Mulheres trazerem muito peso à cabeça! Muito mau!
Referia-se,
como era evidente, às nossas trabalhadoras do campo, que transportam à cabeça
grandes molhos de erva para o gado.
—
E dos portugueses, gostas?
—
Bons companheiros, mas muito...
Faltava-lhe
a palavra. Levantou-se, curvou-se muito e fez o gesto simulado de tirar o chapéu
em grandes vénias... Referia-se aos nossos desmesurados cumprimentos. Ajudei-o.
—
Cumprimentamos muito os chefes, é isso Rockea?
—
Oh yes, yes...
—
Então vocês, na Finlândia, não cumprimentam os chefes?! Não tiram o chapéu?
—
Oh, yes... mas só a três coisas, exclusivamente: morto, bandeira e presidente.
Calei-me
a pensar. Na verdade, nós, portugueses, vamos de pólo a pólo: — ou nos
curvamos como paus de bambu, ou descemos à irreverência, quando não mesmo à
insolência.
Vem
isto a propósito de certas atitudes que se têm visto neste mundo de Cristo: há
quem não respeite a bandeira, como há quem não respeite os mortos; como há
também quem não respeite, na pessoa do cidadão Presidente de Portugal, a
nossa própria cidadania de portugueses!...
Junho – 1981
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