Bartolomeu Conde, Escritos, Cacia, ed. da Portucel, 1985, 94 pp.

FOI AOS PATOS...
E CAIU COMO UM PATO!

A «estória» que vou contar foi passada entre dois colegas nossos, ambos caçarretas inveterados, danadinhos por puxar ao gatilho... mesmo no escuro.

Foi na adega de um deles que a «estória» me foi contada ao jeito de lamentação.

Embora eu guarde a identidade dos intervenientes, não resisto à tentação de a recontar, quanto mais não seja para gáudio de meia centena de colegas adeptos de Santo Huberto.

Neste meu propósito haverá um pouco de sadismo, mas isso terá a sua desculpa, pois o principal personagem da «estória», o que caiu no bidão, anda sempre à cata do lado humorístico e não se poupa a uma boa gargalhada quando algum outro caçarreta cai em situação caricata.

E veja-se a propaganda que ele fez, quando um cão de caça do Vitorino, ao lamber por dentro uma panela de barro a cheirar a rojões, lá enfiou a cabeça de tal maneira que foi preciso, para soltar o cão, partir a panela à paulada, facto que na altura mereceu honras de um satírico desenho que correu de mão em mão!  

Ora lá diz o velho ditado: quem com ferros mata, com ferros morre. Mas vamos à nossa «estória»:

É costume de alguns caçadores desta região irem à espera do pato de arribação: agacham-se entre as «canizes» ou cobrem-se com ramos de salgueiro e ali ficam, caladinhos e matreiros, e, às tantas, aí vai disto, à queima-roupa, zás, catrapás, já está... 

Em questões de ciladas, o homem é inventor nato e a evolução foi-se dando, naturalmente, até atingir uma perfeição a cem por cento: escolhem um sapal frequentado ou visitado pelas aves, fazem um buraco na lama, colocam um bidão de forma a que a boca fique de fora por causa das marés e metem-se dentro, espertos como ratos, olho fino a rodar como um periscópio, espreitando o voar das aves. E quando estas se aproximam a menos de um tiro de mosquete, aí vai balázio certeiro, chumbo com força a zunir no céu... As pobres das aves nem chegam a saber de que lado vem aquela saraivada!

Feridas de morte, abrem as asas e aí vêm elas a pingar sangue, peso morto a cair quase ao pé do bidão, onde o caçador, como lacrau, sai da toca e pendura à cinta a vítima dessa emboscada.

Pois foi nos preparativos para a instalação do bidão que um colega nosso, ao buscar do fundo do latão a boina que lá tinha caído, se enfiou como um saco na armadilha que para os patos engendrara: uma bota escorregou na lama e lá vai o nosso herói, de cabeça para baixo, entalado como salsicha, ficando de fora as pernas a pedalar em seco, desalmadamente...

Do fundo do latão, mais por repercussão dos sons através da lama que por orifício disponível, ouvia-se em voz roufenha, como vinda do além-túmulo, um ronco apavorante — mais ronco que grito: «acudam, acudam... acudam!

O outro companheiro, surpreso por espectáculo tão insólito, e vendo o andarilho dos pés em pedaladas tão céleres, desatou a rir às gargalhadas, sem forças e sem ânimo para acudir de imediato ao pobre do colega que, com a cabeça no fundo do latão e o sangue a des­cer-lhe à moleirinha, dava roncos de fazer estarrecer uma alma-penada.

Não me contou ele como saiu de situação tão humilhante. Mas é de crer que foi içado pelo traseiro, como quem tira com saca-trapos uma bucha encravada em escopeta enferrujada.

Enfim, foi uma boa «escaramentação», pois quando ele me contou o sucedido fê-lo ao jeito de confissão pesarosa:

— «O porreta do meu companheiro, a ver-me aflitinho de todo, eu a gritar.., e o maroto a rir-se, que eu bem o ouvia, e eu esganadinho, todo tolhido dos braços, sem me poder mexer... Eu bem esperneava, mas que valia?! E o maroto a rir-se...»

Aguentei o desabafo sem me rir. Mas depois, quando o deixei, disse com os meus botões: «Boa partida esta! Ah! mas vou-a contar... no jornal, ali, tudo escarrapachadinho, tim-tim por tim-tim... Até vou fazer também um desenho!...»

Dezembro – 1982

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