Bartolomeu Conde, Escritos, Cacia, ed. da Portucel, 1985, 94 pp.

O NATAL DO MANEL BAI-BAI

 

O povo, não se sabe bem por que carga d’água, crismou-o de Manuel Bai-Bai.

Era um homenzarrão — no físico, que quanto à alma era de uma pureza de criança.

Feito e nascido na proa de um mercantel — sua «oficina» e sua vivenda — não conhecia letra do tamanho da vela do seu barco.

De instrução apenas lhe ficou, porque única recebida, umas coisas de cate­quese aprendidas de menino.  

De mareante era ele mestre: conhecia tão bem as marés e os caminhos da Ria como conhecia os dedos das suas mãos. E quanto a ventos, ainda eles dormiam no fole dos céus e já ele farejava os bons, os que enfunavam as velas — que os outros, os ventos revessos, ele os excomungava de punho fechado:

— Vai prós teus, fiputa; prás catrafúndias do inferno, alma danada!

Praguejava muito quando o vento era maino e o obrigava a puxar à vara:

— Não prestas para nada, manso chifrudo!

Fora este praguedo desbocado, era um santo homem. Santo-santo, vamos lá, não era, que aos domingos, quando amarrava o barco às tramagueiras e vinha ao povoado buscar mantença e bebedura, perdia as estribeiras e apanhava cada carraspana de se lhe tirar o chapéu!

E foi por isso que, um dia — dia da consoada, por sinal — alguém, mais por malícia que por ensinança, lhe bifou o garrafão à porta da tasca, sem que ele topasse. Foi um banzé dos diabos: — era vê-lo pelas ruas da aldeia, enorme como uma estátua, a invectivar os brincalhões que lhe surripiaram o aconchego:

— Malandros, dai-me o meu garrafão qu’é pró Natal do Manel!

Rua abaixo, rua acima, calcorreou a aldeia até altas horas da noite, até se deixar amolentar pelo cansaço, voz rouca de tanto praguejar.

Alguém ao outro dia, lhe perguntou:

— Ó Manel, apareceu o garrafão?

— O garrafão?! O garrafão é o menos... agora o binho, eram cinco litros (e mostrava os cinco dedos da mão aberta) e era do bom, era mesmo do bom que digo eu. Malandros... cinco litros! Isto num se faz a um pobre home que nunca fez mal a ninguém... Foi um Natal de tristeza que me escureceu o coração. Malandros...

Nunca se soube quem foi que estragou a noite de Natal ao Manel Bai-Bai. Mas desconfia-se que quem assim lha estragou venha a pagar no Inferno, no meio da secura das labaredas, a secura duma noite de consoada... dormida em claro sobre as palhas amachucadas da proa dum mercantel!

Dezembro - 1982

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