O NATAL DO MANEL BAI-BAI

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O povo, não se sabe bem por que carga d’água, crismou-o de Manuel Bai-Bai.
Era
um homenzarrão — no físico, que quanto à alma era de uma pureza de criança.
Feito
e nascido na proa de um mercantel — sua «oficina» e sua vivenda — não
conhecia letra do tamanho da vela do seu barco.
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De instrução apenas lhe ficou,
porque única recebida, umas coisas de catequese aprendidas de menino.
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De
mareante era ele mestre: conhecia tão bem as marés e os caminhos da Ria como
conhecia os dedos das suas mãos. E quanto a ventos, ainda eles dormiam no fole
dos céus e já ele farejava os bons, os que enfunavam as velas — que os
outros, os ventos revessos, ele os excomungava de punho fechado:
—
Vai prós teus, fiputa; prás catrafúndias do inferno, alma danada!
Praguejava
muito quando o vento era maino e o obrigava a puxar à vara:
—
Não prestas para nada, manso chifrudo!
Fora
este praguedo desbocado, era um santo homem. Santo-santo, vamos lá, não era,
que aos domingos, quando amarrava o barco às tramagueiras e vinha ao povoado
buscar mantença e bebedura, perdia as estribeiras e apanhava cada carraspana de
se lhe tirar o chapéu!
E
foi por isso que, um dia — dia da consoada, por sinal — alguém, mais por
malícia que por ensinança, lhe bifou o garrafão à porta da tasca, sem que
ele topasse. Foi um banzé dos diabos: — era vê-lo pelas ruas da aldeia,
enorme como uma estátua, a invectivar os brincalhões que lhe surripiaram o
aconchego:
—
Malandros, dai-me o meu garrafão qu’é pró Natal do Manel!
Rua
abaixo, rua acima, calcorreou a aldeia até altas horas da noite, até se deixar
amolentar pelo cansaço, voz rouca de tanto praguejar.
Alguém
ao outro dia, lhe perguntou:
—
Ó Manel, apareceu o garrafão?
—
O garrafão?! O garrafão é o menos... agora o binho, eram cinco litros (e
mostrava os cinco dedos da mão aberta) e era do bom, era mesmo do bom que digo
eu. Malandros... cinco litros! Isto num se faz a um pobre home que nunca fez mal
a ninguém... Foi um Natal de tristeza que me escureceu o coração.
Malandros...
Nunca
se soube quem foi que estragou a noite de Natal ao Manel Bai-Bai. Mas
desconfia-se que quem assim lha estragou venha a pagar no Inferno, no meio da
secura das labaredas, a secura duma noite de consoada... dormida em claro sobre
as palhas amachucadas da proa dum mercantel!
Dezembro - 1982
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