À Trofa do Vouga
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(5 km Norte-Noroeste de Águeda, sendo 3 km até à povoação de Mourisca,
pela estrada de Porto-Lisboa, e 2 km por estrada municipal).
A freguesia da Trofa do Vouga, situada numa
pequena colina a 1 km da margem esquerda do rio Vouga, é apenas digna de
nota pela sua igreja matriz, cuja capela-mor, a *capela funerária
dos Lemos (monumento nacional), é um interessante monumento da
Renascença em Portugal, pela estatuária e pela decoração.
Os Lemos, senhores de Trofa, Jales e Alfarelhe, eram
oriundos de uma família de alta prosápia da Galiza. A Gomes Martins de
Lemos fez, em 1449, D. Afonso V, para honrar os seus feitos de armas,
senhor da Trofa, antes confiscada a um partidário do Infante D. Pedro
morto em Alfarrobeira. No reinado de D. Manuel era senhor da Trofa
Duarte de Lemos que foi capitão-mor do mar da Etiópia, Arábia e Pérsia,
na sua jurisdição de Sofala até Cambaia. Foi no seu tempo que o rei
Venturoso, em 1517, concedeu foral à povoação, na qual ainda hoje se
conserva, junto da igreja, um troço de pelourinho. Cinco anos mais tarde
(no seu regresso do Oriente, onde se salientou como violento opugnador
dos projectos de Afonso de Albuquerque, tendo sido um dos capitães que
se recusaram a acompanhá-lo na tomada de Goa), levantou Duarte de Lemos,
em honra da sua linhagem, a capela funerária, ulteriormente integrada,
como capela-mor, na igreja paroquial. Toda esta família teve, nos
séculos XV e XVI, o gosto dos monumentos funerários. Já Fernão Gomes de
Góis, tio de Duarte de Lemos, fizera construir, em 1440. um sarcófago em
Oliveira do Conde, e de 1531, poucos anos antes da construção do da
Trofa, data o túmulo de seu primo D. Luís da Silveira, em Góis (pág.
398).
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O exterior da igreja nada tem de notável. A fachada é um
barroco muito simples, destacando-se apenas sobre a porta um nicho bem
recortado com uma bela escultura quinhentista do *Salvador
(85 cm de altura, já mutilada no braço direito) de uma notável
delicadeza de execução.
A capela-mor, de pequenas dimensões (6 metros de
comprimento por 5 de largura), tem como cobertura uma abóbada de
nervuras com quatro bocetes nos fechos secundários e um maior, ao
centro, com o brasão colorido dos Lemos. De um e outro lado, estão os
túmulos e arcas ossuárias; o chão, onde havia algumas campas rasas, está
hoje pavimentado a mosaico. A discreta iluminação faz-se por duas
janelas belamente decoradas. Do lado do Evangelho abrem-se
dois arcos de volta inteira, ladeados de pilastras, lavrados e com
impostas molduradas assentes em esbeltos colunelos, os do centro
geminados. Ao meio, entre as duas curvas que nascem da imposta comum,
emerge de um medalhão vazado um formoso busto de mulher; nos tímpanos,
entre os arcos e as pilastras, outros dois medalhões. O friso é de um
trabalho delicado, como a janela ao alto, que coroa este conjunto. O
intradorso de ambos os arcos é apainelado, alternando os quadros de
fundos lisos com os ornatos de florões. Os pés direitos, estriados, são
guarnecidos por junquilhos, rematados superiormente em biseI.
Sob o arco do lado do altar-mor, repousa em dois lebréus:
a urna de João Gomes de Lemos, 2.º senhor da Trofa, pai de Duarte de
Lemos, com a respectiva legenda. A urna contígua, assente na parte
anterior sobre volutas invertidas, é de D.ª Violante de Sequeira, mulher
de João Gomes. No envasamento à direita, a sepultura de Gomes Martins de
Lemos 1.º senhor da Trofa (faleceu em 1490) e a de D.ª Maria de Azevedo
(morreu em 1453). São de uma grande beleza os pedestais das três
pilastras. No do centro vê-se uma figura de mulher alada, com braços e
pernas estilizadas assentando sobre uma base caliciforme, ornada com
golfinhos coleantes, e nos dois laterais, sobre carros, dois caprípedes
também alados, um infantil, outro barbado e faunesco, ambos desferindo o
arco. Sobre as cabeças destas três figuras colocou o escultor, como bom
observador da antiguidade, uma espécie de kalatos, com frutos nos
caprípedes e uma taça de flores na mulher alada, reminiscência do antigo
símbolo da fecundidade nas remotas divindades, agora transformado em
simples tema decorativo. Merece também atenção o recorte e a decoração
da porta de comunicação da capela-mor para a sacristia, toda ataviada
com finos relevos nas ombreiras e dintel rematado pela característica
concha.
Do lado da Epístola, outro belo conjunto. Se bem
que os arcos-sólios se abram em plano rectangular com os outros, o ponto
de vista arquitectónico produz
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diferença, como diferente é também a motivação decorativa. Duas das
variantes mais salientes são a existência de frontões ao alto das
cornijas e uma pilastra central que corre de alto a baixo entre os
arcos-sólios. Esta é recamada de motivos: no pedestal quimeras e aves
fantásticas; no fuste avulta um génio tocando alaúde; e no capitel, uma
caveira, cornucópias e folhas de acanto. Dos tímpanos dos dois frontões,
sobressaem ao centro, em medalhões vazados, do lado direito, um busto
graciosíssimo de mulher, com o seu cabelo entrançado e do lado esquerdo
um busto masculino de modelação perfeita e fina cinzelagem.
O primeiro arco-sólio, a contar da entrada da capela, é
adornado com os mesmos junquilhos biselados, a mesma tríplice arcada e
concha, de cuja charneira cai suspensa, de um anel, uma grinalda, feita
de cachos de frutos, ligados entre si por placas discóides e que rodeia
o escudo em lisonja de D.ª Joana de Melo, mulher de Duarte de Lemos, ali
inumada, conforme no-lo diz o epitáfio gravado na cartela tumular do
envasamento (óbito em 1529).
A arca, assente à frente sobre dois leões, é anepígrafa e
ornada com motivos do Renascimento: uma taça, ao centro, com frutos, e,
de um e outro lado, hastes em ‘S’ deitadas, guarnecidas de folhagem, com
os topos rematados por carrancas e cabeças de bovídeos com a língua de
fora, tudo muito estilizado. Nos dois medalhões abertos nos tímpanos,
apresentou o artista os bustos de S. Pedro e S. Paulo, este inferior
àquele como escultura, defeituosa mesmo como anatomia. Sob o outro
arco-sólio, recorta-se a * estátua do fundador deste
panteão familiar. No fundo, rodeado de flutuantes lambrequins, vê-se o
seu escudo a pender obliquamente do elmo a que se encontra ligado por
correias afiveladas. Como em Góis (pág. 399), no túmulo de D. Luís da
Silveira, 1.º conde de Sortelha (1531), e no Parral (Segóvia), o de D.
Juan Pacheco (1528), a presente estátua representa o fidalgo da Trofa,
em traje guerreiro, ajoelhado sobre o túmulo. A estátua orante tem 1,4
metros de altura. Duarte de Lemos, com o seu hercúleo arcaboiço,
revestido de pesado arnês, como que entrou na igreja e se dirigiu ao
altar-mor, tirou os guantes suspendendo-os na parede, depôs no chão o
elmo de viseira aberta e ajoelhou sobre uma almofada diante do bufete
com o livro de orações e, de mãos postas, fixando o retábulo, entreabre
os lábios para murmurar uma prece. A armadura é
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reproduzida com impecável justeza, assentando com elegância no arcaboiço
alentado do guerreiro. As mãos são pequenas, finas, de dedos esguios,
como as modeladas por Nicolau Chanterene ou pelos seus discípulos;
conhece-se nelas a arborização das veias e o anel do dedo mínimo da
esquerda. A cabeça é vigorosa. O cabelo, comprido, maleável, cai com
naturalidade, contornando o lóbulo da orelha e cobrindo a nuca. A
fisionomia é decidida e enérgica. O escultor marcou bem a comissura
palpebral, a região malar, a linha arqueada das fartas sobrancelhas. Os
olhos são incisivos e o nariz rectilíneo. Na fisionomia do guerreiro há
uma tal acentuação de carácter, um tal vinco de personalidade, uma
intenção tão directa, uma serenidade, uma sobriedade, que não podem
deixar de erigir esta escultura em uma das obras mais belas e viris da
nossa galeria de retratos plásticos.
O escultor desta obra magistral é muito possível que
tenha sido Nicolau Chanterene
(2).
Oferecendo analogias evidentes de estilo com as de D. Luís da Silveira e
de João da Silva (pág. 161), em S. Marcos (1522), esta estátua excede
porém tanto o jacente das margens do Mondego como o orante das margens
do Ceira, em beleza e perfeição.
Quanto ao artista ou artistas decoradores tudo nos parece
incerto fora das atribuições vagas da escola. Os motivos da Trofa são
dinâmicos, expressivos, coleantes, e alguns sobressaem, pela sua
originalidade, na gramática ornamentar da nossa arte quinhentista. Em
muitos há uma graça que não é apenas profana, mas acentuadamente pagã
(do mesmo modo que em Góis, como se fossem mesmo baixos-relevos de uma
edícula romana ou cópias desses temas helenísticos que decoravam os mais
sumptuosos triclínios. Não se vê aqui a heterogeneidade que se nota em
alguns túmulos de S. Marcos (pág. 161), mas uma evidente unidade de
estilo e uma grande harmonia, que denotam a mão de um plastífice bem
formado dentro dos princípios ornamentais do Renascimento francês da
época de Francisco I (1520-50).
Nenhuma comparação, porém, entre o artesoado da pequena
capela-mor da Trofa e o complicado aranhiço de nervuras de pedra da
ousia de Góis, de um tão acentuado relevo e tão rica de variados bocetes
ou o reticulado da capela-mor de S. Marcos. A ossatura da abóbada é aqui
muito simples. Ao centro, na chave, as armas dos Lemos, por sinal
pintadas com cores diferentes das convencionais. Quatro bocetes com
florões marcam o ponto de intersecção dos Iiernes com os terceletes. As
nervuras partem de quartelas esculpidas apoiadas nos quatro ângulos da
capela.
O retábulo proveio do convento franciscano de Serém (pág.
594). O primitivo altar foi há poucos anos transferido para uma ermida
dedicada a Nossa Senhora de Lourdes, erguida muito perto da
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da Trofa, numa pequena eminência que domina o pitoresco e profundo vale
do rio Vouga.
[Importará
frisar que os algarismos do epitáfio de Duarte de Lemos que indicam como
data da fundação e morte do fundador respectivamente 1584 e 1585 estão
viciados (cfr. D. João de Castro, artigo em “O Primeiro de Janeiro”,
27-6-1926). Trata-se de uma alteração que dá origem a um anacronismo
histórico que as próprias tradições locais contribuem para reforçar.
Segundo a letra da inscrição alterada e essas tradições, a estátua
orante não representaria o terceiro senhor da Trofa mas sim o quinto;
também de nome Duarte de Lemos, e que ficou na história como partidário
acérrimo que foi de D. António Prior do Crato. Houve como que a
sobreposição de duas narrativas históricas e a substituição duma
tradição por outra: a das lutas nos mares do Oriente pela da luta pela
Independência nacional, idealizando-se, desta forma, a figura do
primeiro Duarte de Lemos. O fundador do moimento deixa assim de ser o
rude capitão que tivera na Índia tantas disputas com o grande
Albuquerque, para ser aquele que a fim de não saudar Filipe II de
Espanha, se precipitou com a sua montada do alto da ponte de Coimbra. A
adulteração não teve seguramente outro fim. Na data da construção o
número que presumivelmente era um 3 foi transformado em 8, e na da
morte, o terceiro algarismo sofreu idêntica corrupção. De resto a parte
do letreiro referente à ascendência basta para se impor a rectificação.]
Do solar dos Lemos, que existiu, parece, próximo da
capela monumental da Trofa, nada resta.
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(1)
– Notícia redigida com elementos da monografia O Panteão dos Lemos na
Trofa do Vouga (1928), do Prof. Aarão de Lacerda, com autorização do
Autor.
(2)
– Vergílio Correia, reconheceu na imagem do Salvador que está
sobre a porta de entrada da igreja o estilo e a técnica do Salvador
da Ceia de Udarte, de Coimbra, sustenta desde 1928 o parecer de que a
própria estátua orante deve atribuir-se ao mesmo Udarte.
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