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Impressão geral da Ria (1)

«A ria é um enorme pólipo com os braços estendidos pelo interior desde Ovar até Mira. Todas as águas do Vouga, do Águeda e dos veios que nestes sítios correm para o mar encharcam nas terras baixas, retidas pela duna de quarenta e tantos quilómetros de comprido, formando uma série de poças, de canais, de lagos e uma vasta bacia salgada. De um lado o mar bate e levanta constantemente a duna, impedindo a água de escoar; do outro é o homem que junta a terra movediça e a regulariza. Vem depois a raiz e ajuda-o a fixar o movimento incessante das areias, transformando o charco numa magnífica estrada, que lhe dá o estrume e o pão, o peixe e a água da rega. Abre canais e valas. Semeia o milho, povoa a terra alagadiça, e à custa de esforços persistentes, obriga a areia inútil a renovar constantemente a vida. Edifica sobre a água, conquistando-a, como na Gafanha. Aduba-a com o fundo que lhe dá o junco, a alga e o escasso, – detritos de pequenos peixes. Exploram a ria os mercantéis, que fazem o tráfego da sardinha, os barqueiros que fazem os fretes / 505 / marítimos, os rendeiros das praias, que lhe aproveitam os juncais, os marnotos, que se empregam no fabrico do sal, os moliceiros, que apanham as algas, e finalmente os pescadores da Murtosa, que são os únicos a quem se pode aplicar este nome, e que entre outras redes usam a solheira, a rede de salto, a murgueira e a branqueira. O homem nestes sítios é quase anfíbio; a água é-lhe essencial à vida e a população filha da ria é condenada a desaparecer com ela. Se a ria adoece, a população adoece. Em 1775, com a barra entupida, os campos tornam-se estéreis e a cidade despovoa-se. A alma nesta terra é, na realidade, a sua água. Todos os limos, todos os detritos vêm carreados na vazante até à planície onde repousam. Isto é água e estrume, terra vegetal que se transforma em leite e pão. Palpa-se a camada gordurosa sobre a areia. E além de fecundar e engordar, a ria dá-lhe a humidade durante todo o ano, e com a brisa do mar refresca durante o Estio as plantas e os seres. Uma atmosfera humedecida constantemente envolve a paisagem como um hálito.

Ninguém aqui vem que não fique seduzido, e noutro país esta região seria um lugar de vilegiatura privilegiado. É sítio para contemplativos e poetas: qualquer fio de água lhes chega e os encanta. É sítio para sonhadores e para os que gostam de se aventurar sobre quatro tábuas descobrindo motivos imprevistos. É-o para os que se apaixonam pelo mar profundo, e para os medrosos, que só se arriscam num palmo de água – porque a ria é lago e mar ao mesmo tempo. Com meios muito simples, um saleiro e uma barraca, tem-se uma casa para todo o Verão. Pesca-se. Sonha-se. Toma-se banho. E esquece-se a vida prática e mesquinha. Dorme-se ao largo, deitando-se a fateixa ou abica-se ao areal: um fogaréu, uma vara, a caldeirada… Começam a luzir no céu e na ria ao mesmo tempo miríades de estrelas. Vida livre dalguns dias, de que fica um resíduo de beleza que nunca mais se extingue. É a ria também sítio para os que querem descobrir novas terras à proa do seu barco e para os que amam a luz acima de todas as coisas. É este talvez o ponto da nossa terra onde ela atinge a beleza suprema. Na ria o ar tem nervos. A luz hesita e cisma e esta atmosfera comunica distinção aos homens e às mulheres, e até às coisas, mais finas na / 506 / claridade carinhosa, delicada e sensível que as rodeia. A luz aqui estremece antes de pousar...» Raul Brandão

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(1) Por RAUL BRANDÃO, in Os Pescadores.
 

 

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