António Arroio
– «A região de Aveiro é uma pequena Holanda em clima e luz ocidentais.
Provavelmente pela extensa superfície de evaporação de centos de
hectares de água salgada, toda esta região se distingue do norte do País
pela luz irisada que a banha e de momento a momento muda de tom. Por
vezes julgamo-nos aí transportados a uma região ideal...».
Oliveira Martins
– «Paisagem deliciosa e original, indecisa entre o mar e a terra, e que
nos enche de vivo prazer quando dominamos desde os altos de Angeja à
raiz das montanhas».
Vergílio Correia
– «É preciso ir a Aveiro e à sua mancha geográfica para conhecer os
moliceiros, os barcos de altas proas reviradas, decoradas de mil
figurações policrómicas que não têm parceiras em qualquer outra parte do
Mundo».
Luís de Magalhães,
em uma página suprema, de grande prosador, define e descreve a ria
nestes termos cheios de precisão e beleza:
«Com os seus nateiros fecundantes, a ria
é para toda esta zona lacustre uma grande força criadora de riqueza e de
uberdade. Todas estas terras em roda, numa extensão de muitos
quilómetros quadrados, vivem dela. Os seus fundos dão-lhes, com a mais
inesgotável abundância, os moliços, essa vegetação sempre renascente de
algas que os alcatifa, e os lodos ricos em elementos fertilizantes, por
meio dos quais se tem transformado em campos produtivos essa amplíssima
região arenosa, Nas suas praias, ceifa-se o junco, que é a fofa cama dos
gados nos estábulos, e a fresca esteira das casas térreas. Das suas
marinhas, as maiores e mais importantes do País, sai um sal precioso,
que é um dos principais artigos de exportação do comércio de Aveiro. E
do norte ao sul, de ao pé de Ovar ao pé de Mira, em todos os seus braços
e ramificações, nas suas cales profundas ou nos seus amplos espraiados,
o peixe e os moluscos abundam, numa grande variedade de espécies.
«De cada um destes produtos que ela
oferece ao homem, deriva uma indústria: e cada uma dessas Indústrias,
que se exercem sobre a água, criou o seu barco próprio.
«Os moliceiros e os pescadores da
Murtosa são os que mais a povoam. Toda a semana, durante alguns meses,
vivem sobre essas águas, apanhando o moliço ou lançando as redes,
dormindo na proa dos seus barcos, cozinhando neles ou perto deles, em
terra, a sua frugal caldeirada. Ao sábado, porém, a ria fica deserta, os
barcos somem-se, todas essas frotas de centenas de velas dispersam:
moliceiros e pescadores vão para casa. A semana é da água; o
domingo é da terra. Mas logo na segunda-feira, voltam para a sua faina.
Em toda a vastidão das duas grandes bacias, a da Torreira ao norte, a da
Costa Nova ao sul, as velas brancas despontam de novo, como asas de
gaivotas, e os cascos negros das bateiras avançam ao bater
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dos remos como bandos de grandes palmípedes
cortando as águas a nado.
«Se, para cada uma destas indústrias, os
barcos diferem, embora ligeiramente, o tipo dos seus tripulantes não é
também o mesmo. Toda essa gente usa, é certo, ainda que já muito
adulterado, o tradicional vestuário da região: a carapuça de lã,
a camisa e as curtas manaias de algodão branco, a
faixa preta, o gabão de briche
(1),
a grossa camisola de malha azul, interessantemente tecida. Os chapéus
redondos, as boinas, as camisolas e as ceroulas de castorina em xadrez,
adoptadas pelos embarcadiços, e os sesimbrões corrompem já, duma
forma abominável, a pureza do lindo traje clássico. Todavia, apesar
disso, um pescador da Murtosa, um mercantel de Aveiro, um moliceiro da
Gafanha ou de Mira – não se confundem. Serão ramos étnicos diferentes?
Haverá neles características especiais de sub-raças? A diversidade das
profissões e a sua curiosa localização em diferentes zonas e terras,
originar-se-ão em desconhecidas estratificações de velhos elementos,
colonizadores, cuja história lentamente caiu num irreparável olvido? Eis
o que [não] é fácil averiguar – mormente para quem não tem a menor
competência em questões etnológicas. Contudo, um observador acostumado
ao trato destas gentes, facilmente lhes extrema o tipo e a fisionomia.
Aveiro – Aspecto crepuscular da Ria
«O homem de Aveiro ou de Ílhavo é duma
nobre esbelteza de linhas, impelindo à vara uma rápida bateira – é um
dos mais belos espectáculos que se pode oferecer a quem olha, como
artista, o corpo humano e aprecia a beleza, a elegância ou a energia das
suas atitudes. Ora, erectos e firmes sobre a proa do barco, no movimento
de lançar a vara, esses homens parecem de longe, nos seus trajos
brancos, serenas estátuas de mármore; ora, correndo inclinados sobre a
borda, a percha contra o peito, o tórax saliente, os rins violentamente
dobrados, toda a rija musculatura das pernas
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contraída em relevos poderosos, eles
oferecem por vezes aos nossos olhos essas linhas admiráveis em que o
cinzel helénico fixou, como num cânone imortal, toda a
estética do nobre esforço humano. E este traço de beleza física bem pode
ser uma herança atávida de sangue ítalo-grego. Além da tradição
persistente duma remota colonização de gente do Arquipélago ou da Grande
Grécia, certas afinidades de estatura, linhas de rosto, cor da pele ou
dos cabelos, timbre da voz, e uma grande semelhança no trajar –
aproximam bem estes belos homens e as suas formosas companheiras do tipo
de algumas populações marítimas italianas, e, em especial, do pescador
napolitano.
«Se o homem propriamente da água, o
pescador, o marnoto, o mercantel, tem assim a elegância ágil e flexuosa
dum tritão, o barqueiro-lavrador, gafanhão ou mirão, talvez oriundo da
Beira e descido remotamente das suas montanhas em demanda de terras
melhores, ostenta, ao contrário, a maciça e tosca rudeza dum sátiro. É
pesado, lento, desgracioso, de feições ordinárias e incaracterísticas.
Um é bem o filho da onda, fluída e movediça; o outro o da gleba, espessa
e imóvel. Em compensação, é um trabalhador robusto e infatigável. Das
suas rudes mãos saiu uma das maiores maravilhas da agricultura
portuguesa: a transformação paulatina, mas obstinada, de desertos areais
estéreis em fertilíssimas campinas. A esses homens se deve a definitiva
conquista pela terra desses velhos domínios marinhos. Eles semearam o
pinhal que fixou a duna, colheram o moliço que a adubou, nivelaram e
surribaram a areia, lançaram à leiva o milho, o feijão e a batata,
cozeram o adobe ao sol para fazer o seu lar – e lutando contra o vento e
a duna instável e ameaçadora, navegando e lavrando, moirejando e
amealhando formaram essas importantes povoações rurais, que, numa linha
de muitas léguas, se estendem sem interrupção ao longo da ria.
«Como em todas as paisagens onde a
água predomina, a diversidade e os contrastes de expressão são aqui
extremos. No grande espelho da ria, a atmosfera reflecte os seus
variados aspectos, transmitindo-lhos. Se a nortada sopra desabrida e
rija, esse lago torna-se num mar revolto, cujas maretas dum verde
pardacento cachoam em carneiradas espumantes. Os barcos abordam,
lançam ferro ou amarram aos mourões, e ficam bailando doidamente sobre a
vaga: e só um ou outro, acossado de vendaval, corre ao largo
vertiginosamente, com o pano nos rizes, e deixando atrás de si uma longa
estria branca. Se reinam as frescas brisas mareiras e o tempo é claro,
as águas, apenas suavemente arrepiadas, são como uma seda azul moirée,
lantejoulada de oiro pelos ralos do sol; e tudo em volta, praias,
campos, pinhais, casarias claras, palheiros sombrios, velas brancas,
cascos alcatroados de barcos, nos aparece com uma expressão de calma
feliz numa divina espiritualização luminosa. Mas nas manhãs ou tardes de
completa calmaria, quando nem uma folha de erva treme, toda essa
vastidão aquática é como uma placa enorme de aço brunido, onde tudo se
espelha em imagens invertidas, com a precisão de linhas e a intensidade
de cor dum esmalte brilhante e quente: as velas panejam em moles pregas
ao longo dos mastros, as varas ou os remos abrem feridas de prata na
epiderme fluída da água, todos os ruídos – um ranger de remo, uma
vibração longínqua de sino, uma toalha melancólica de cantiga, um toque
de búzio, anunciando a passagem do barco do moleiro – passam como
boiando com lentidão na água morta e expiram suavemente nessa ambiência
de inefável serenidade. E, conforme a hora e o cenário do céu, essa
paisagem elisiamente calma, ao mesmo tempo movimentada e silenciosa,
oferece tonalidades diversas: ora é toda em nuances de sanguínea,
com toques e relevos de oiro; ora em tons de azul, frescos e
transparentes como os das marinhas dos azulejos
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de Delft; agora é o verde que predomina em gradações sucessivas, desde o
verde negro dos pinhais ao verde marinho das águas paradas; depois é o
alaranjado dos poentes; depois o violeta dos crepúsculos; depois os
cinzentos desbotados; os pálidos tons de pérola, as aguadas de nanquim
da noite que começa.
«E se há luar, se a lua-cheia, surgindo
atrás da cumeada das serras longínquas, vem banhar toda essa extensão de
águas e de planícies – então os aspectos que ela oferece têm qualquer
coisa de maravilhoso, de irreal, como uma visão criada por um sortilégio
mágico. Entre o céu e a ria, a linha da terra fronteira é apenas um
longo e fino traço escuro, um delgado filete de sombra. Os astros que
cintilam no espaço cintilam também nas águas, como se o firmamento se
desdobrasse ou se prolongasse em abismo aos nossos pés. E de leste a
oeste, sob a incidência do luar, um grande leque de prata tremeluzente
abre o seu enorme triângulo luminoso sobre a água, a que a aragem apenas
dá uma ligeira crispação. É um esplendor! Então, num grande silêncio, em
que só o monótono rumor do mar se ouve, uma pequena bateira de pesca
movida a remos, um moliceiro velejando lentamente, uma
mercantel impelida à vara, atravessam lá ao longe, essa zona
iluminada, num destaque nítido e cortante de pequenas sombras chinesas.
E dir-se-ão gnomos, negras gôndolas misteriosas, deslizando sem ruído,
numa laguna de águas argentinas…»
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(1)
– É o chamado gabão de Aveiro ou varino.
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