Os museus de arqueologia, etnografia e arte existentes na
Beira são, dentre os museus da província, dos mais importantes de
Portugal. Interessa capitalmente o conhecimento do Museu de Machado
de Castro, em Coimbra, por conter a mais notável galeria de
escultura que possuímos, e o do Museu de Grão Vasco, de Viseu,
como depositário de uma variada colecção de pintura, particularmente
preciosa pelo núcleo de obras-primas, grandiosas, do seu patrono
(2). Além destes
espólios de Arte, fundamentais, a Beira contém o Museu Regional de
Aveiro, com valiosas vestes litúrgicas, bons exemplares de pintura
antiga e moderna, destacando-se naquela um retrato da princesa Joana, de
mão
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magistral desconhecida, e um belo S. João
Evangelista, uma composição, em barro, talvez de Machado de Castro, de
primeira ordem e, na igreja anexa de Jesus, além de um muito
interessante tecto apainelado, o sumptuoso sarcófago – verdadeira
obra-prima no seu género – da princesa beatificada Joana; o Museu
Municipal de Ílhavo, oferecendo à apreciação delicados espécimes de
porcelanas, da indústria perita e artística local, ao lado de uma muito
sugestiva documentação etnográfica relativa à actividade e indumentária
da população piscatória da região da ria de Aveiro; o Museu
Municipal da Figueira da Foz, possuidor de abundantes achados
arqueológicos, pré-históricos e proto-históricos; o Museu Municipal
de Castelo Branco guarda de magníficas tapeçarias de
Arrás e alguns quadros portugueses de valor, do séc. XVI; e,
finalmente, de recente fundação, o Museu Regional da Guarda, com
interessantes testemunhos arqueológicos, alfaias litúrgicas, mobiliários
antigos, mostruários de numismática e uma incipiente galeria de pintura
(3).
No capítulo de arte sumptuária e sacra,
importa, em Coimbra, transpor o limiar da capela de S. João de Almedina,
anexa ao Museu de Machado de Castro, de que faz parte: o tesouro de
ourivesaria e peças
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indumentais diocesanas que aí se guarda é
das colecções mais preciosas da Europa, no género, segundo o parecer de
alguns julgadores tidos por sóbrios no elogio. Entre as inestimáveis
peças de arte medieval contidas nesse espólio, admira-se o belo
cálice românico de D. Sancho (séc. XII), a crossa, dádiva de
S. Bernardo ao primeiro prior de Santa Cruz, a não menos bela relíquia,
a imagem em prata da Virgem que foi pertença de Isabel de Aragão, a
Rainha Santa, a Cruz de Alcobaça em estilo gótico flamejante (séc. XIV),
uma custódia Renascença (1527) e alguns formosos cálices manuelinos. No
corpo central do grande museu de Coimbra, na galeria de escultura,
destacam-se pela singularidade e valor, o célebre Cristo gótico,
em madeira, do séc. XIII, as estátuas, em tamanho natural, em barro
(impressionantes, não obstante as suas mutilações), dos Apóstolos que
constituíam a Ceia, de Udarte, uma magistral Deposição no Túmulo
dum artista não identificado, uma imagem de Santa, talvez de Tomé
Velho e diversos retábulos, em pedra de Ançã, do grande escultor João de
Ruão que, como nesta obra já foi indicado, (vol. I, págs. 88-89), tendo
vindo para Coimbra, no tempo do rei Venturoso, para colaborar na
reconstrução da igreja-panteão de Santa-Cruz, nesta realizou
(atribui-se-lhe) a sua insuperável obra: o celebrado púlpito,
enquanto ao lado, verosimilmente, o seu émulo, o não menos famoso mestre
Nicolau Chanterene, remataria as admiráveis estátuas jacentes dos dois
primeiros monarcas portugueses.
Em arquitectura existem, através
da Beira, não menos valiosos títulos de cultura artística,
representativos das diferentes épocas e estilos de arte portuguesa.
Apontemos, do pré-românico: a singular igreja moçárabe de Lourosa
(séc. X). Do românico, a venerável Sé Velha de Coimbra (séc. XII)
e as igrejas, aproximadamente da mesma idade, de Vouzela, de Ermida do
Paiva, de Tarouca e S. João de Tarouca (esta última contendo o túmulo do
Conde de Barcelos), de S. Pedro de Leiria (cfr. vol. II, pág. 658), de
S. Tiago e S. Salvador de Coimbra, de Salzedas, de S. Pedro (Valezim),
de S. Miguel e S. Pedro da Vila Corça (Monsanto), da Póvoa de Mileu
(Guarda) e pormenores subsistentes da primitiva traça da Sé de Viseu,
etc. Do gótico, destaquemos, logo após o mosteiro da Batalha (cfr.
vol. II, pág. 669), a sua réplica serrana: a majestosa Sé da Guarda
(1400-1550), a igreja
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de Santa Clara-a-Velha (1292), tão valiosa embora meia soterrada pelas
aluviões do Mondego, o claustro cisterciense da Sé Velha de Coimbra, a
igreja da Alcáçova de Montemor-o-Velho, pormenores do claustro de Celas
(séc. XIII) e da igreja de Santa Maria de Aguiar (Figueira de Castelo
Rodrigo), a igreja de Canas de Sabugosa (Tondela), uma capela lateral da
igreja de S. Tiago (Coimbra), as igrejas de S. Pedro (Arganil), de
Sernancelhe, de Vilar Torpim, de Escalhão e Oliveira do Conde, esta
contendo o belo túmulo de Fernão Gomes de Góis (1440), a Senhora de
Mércoles (Castelo Branco), etc. Do manuelino, a original abóbada
dos nós da Sé de Viseu (1513), a igreja de Santa Cruz de Coimbra e o seu
encantador claustro «do silêncio» (1520), a capela secularizada,
contígua, de S. João das Donas, a capela da Universidade dos antigos
paços reais (1522), parte da estrutura da Sé da Guarda, as capelas da
igreja de St.ª Eufémia (Penela), de Ega e de Redinha, pormenores das
igrejas de Ferreirim, das Misericórdias de Penamacor e Castelo Branco
(1519), a igreja dos Anjos de Montemor-o-Velho (1542), com o túmulo de
Diogo da Azambuja, etc. Da Renascença, indiquemos: a formosíssima
capela dos Reis Magos (1556), do panteão dos Silvas (S. Marcos), a
capela do Tesoureiro (1565), por João de Ruão, na igreja de S. Domingos
(Coimbra), a capela de Varziela com o seu notável retábulo, a igreja da
Góis, abrigo do mausoléu do Conde de Sortelha (1531), o portal do
convento de Celas (1540) e o da Misericórdia de Aveiro (1599), o panteão
dos Lemos, na Trofa do Vouga (1588), o claustro da Sé de Viseu (1543) e
o do paço episcopal da Guarda, os colégios coimbrões do Carmo (1542), da
Sapiência (1546), de S. Tomás (1547), da Graça (1548), de S. Domingos
(1570), de S. Bernardo (1570), do Colégio Novo (1596), etc. De feição
jesuítica, a representativa e fria Sé Nova de Coimbra (1598). Do
período filipino: a Porta Férrea da Universidade (1634), Do
restante do séc. XVII e do séc. XVIII, diversas expressões de barroco
e neo-cIássico se nos apresentam na igreja das Carmelitas (1648)
e Senhor das Barrocas (1732), em Aveiro, nos embelezamentos da sala dos
Capelos (1655), no debuxo do parque do Paço Episcopal de Castelo Branco,
na igreja e claustro de Santa Clara-a-Nova (1649-93), nos seminários de
Coimbra e Viseu, no coro e nave da igreja de Lorvão, panteão
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das infantas beatificadas Sancha e Teresa, na opulenta Biblioteca da
Universidade (1723), e ornamentação arquitectónica do Jardim de Santa
Cruz de Coimbra e, como remate do friso evolutivo, nas duas traduções do
espírito construtivo pombalino, o Laboratório Químico e a
harmoniosa concepção do Jardim Botânico (1773), hoje com a tranquila
estátua do seu fundador, Brotero, do cinzel do maior escultor português
moderno, o anteriano Soares dos Reis.
A Beira alia, pois, a posse de grandes
dons da Natureza, reservando aos olhos de quem a procura as mais
empolgantes perspectivas panorâmicas, à de valores humanos, estéticos
uns, históricos outros, de primeiro plano, discretamente existentes nos
seus monumentos e museus. E de tal modo os alia, que será ousado
asseverar qual dessas duas categorias de objectos de contemplação é a
que mais vale. Na realidade, se a Serra da Estrela é grandiosa, não o é
menos, no seu ambiente, a nave da Sé Catedral, que num dos seus flancos,
a mil metros de altitude, encontrareis na pequena cidade antiga da
Guarda; se os campos do Mondego têm o prestígio dos seus nostálgicos
encantos, consagrado pelas evocações de tantos poetas, não é menos
impressionante a serenidade das figuras dos retábulos e estátuas
tumulares que, na penumbra dos templos das margens desse rio, o viajante
achará fazendo uma demorada deambulação por Montemor-o-Velho, Varziela,
Tentúgal, S. Marcos, Oliveira do Hospital, Góis; se, enfim (para não
levar mais longe o confronto, tornando-o retórico), os cenários de
Gardunha, de Lafões, do Buçaco, vistos uma vez, desafiam o esquecimento,
menos sujeitas serão decerto, em alguns, à usura da memória, o vulto
singular da Sé Velha de Coimbra, a delicadeza imaginativa dos capitéis
de Celas, a plástica serenidade do Claustro do Silêncio ou a expressão
imponente de S. Pedro, do grande mestre pintor de Viseu.
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Portuguese architecture, 1908.
________________________________________
(1)
– Por SANT'ANNA DIONÍSIO.
(2)
– Se considerássemos Lamego, – como, muitos, por diversos motivos,
persistem em considerar, não obstante a delimitação provincial vigente,
– como parte da Beira, deveríamos aproximar o museu municipal dessa
cidade da paridade destes dois museus essenciais, tendo presente as
importantes tábuas sobreviventes do grande retábulo da Sé, da mão de
Grão Vasco (vide adiante pág. 49), as duas séries de belas
tapeçarias, uma flamenga, outra francesa, de grande valor, que conserva,
bem como os ricos paramentos e alfaias sacras de ourivesaria,
representativas da antiguidade e riqueza da diocese. Mas como já
apontámos, (pág. 3), o presente volume não inserirá a notícia descritiva
desta região (por alguns chamada a Beira Duriense, da qual Lamego
é a vetusta cabeça), hoje parcela integrada oficialmente na província de
Trás-os-Montes e Alto Douro.
(3)
– Completando a resenha, importará acrescentar que em Coimbra, na
Universidade, além da Biblioteca, pelos seus reservados, verdadeiro
museu bibliográfico, é a sua capela um privativo Museu de Arte; no
Buçaco, comemorando a batalha aí travada, há um Museu militar histórico;
e em Leiria, (cfr. vol. II, pág. 658) um estimável museu misto, de
etnografia e arqueologia.
O incremento dos valores dos dois museus
beirões mais importantes deve considerar-se primacialmente obra das
grandes dedicações pessoais dos seus primeiros organizadores, sendo de
elementar justiça recordar e fixar os seus nomes: António Augusto
Gonçalves e Almeida Moreira. (A moradia deste último foi, por sua morte,
convertida em museu). Os museus da Figueira, Castelo Branco e Aveiro
devem muito, por seu turno, aos seus fundadores, respectivamente, Santos
Rocha, Tavares Proença e Marques Gomes.
[O leitor interessado tem, neste tomo,
nos seus devidos lugares, com adequado desenvolvimento, os esquemas de
inventário e as noticias valorativas referentes a estes museus. Pelo
índice do volume se faculta a sua procura. As limitadas disponibilidades
de material de composição tipográfica concedidas à realização editorial
deste volume (limitadas relativamente aos amplos recursos técnicos
postos à mão do grande fundador desta obra na publicação dos dois
precedentes tomos) impossibilitam neste, além de outros aperfeiçoamentos
substanciais e de manuseamento, a colocação, nos sítios apropriados, de
muitas indicações de reciprocidade de consulta, tão cómodas ao leitor,
que nos anteriores volumes eram realizáveis. Que nos sejam relevadas,
pois, essas involuntárias deficiências.]
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