SESSÃO DE 30 DE AGOSTO
DE 1861
Tenho a palavra, e eu já
usei dela ontem e hoje. Mas usarei ainda outra vês
para ver se as explicações dos Srs. ministros me
satisfazem.
Agora contento-me em
perguntar quais são as causas por que nas igrejas
portuguesas pertencentes ao patriarcado de Lisboa se não
têm podido fazer sufrágios por alma do conde de
Cavour? Quais são e donde têm provindo os obstáculos
que uma comissão, encarregada deste louvável
empenho, tem encontrado para realizar esse pensamento
religioso e patriótico?
Depois dos Srs.
ministros haverem por bem responder a estas perguntas,
eu pedirei de novo a palavra, ou, por outra,
continuarei no uso dela, para responder aos Srs.
ministros, se assim o julgar conveniente.
O SR. MINISTRO DA JUSTIÇA
(MORAIS CARVALHO): - Peço a palavra.
O SR. PRESIDENTE: - Tem
a palavra.
O SR. MINISTRO DA JUSTIÇA:
- ……………........
O ORADOR: -
Entristece-me e embaraça-me a narração que o Sr.
ministro acaba de fazer das negociações que a comissão
dos italianos se viu na necessidade de empreender, no
reino de Portugal, onde caracteres públicos muitas
vezes têm sido mal tratados pela cúria romana e
sobre os quais têm caído excomunhões iguais, para
que o governo, que deve ser respeitador destes
caracteres e das épocas em que se ilustraram no serviço
do país e da liberdade, satisfaça ao seu nobre
pedido. E com mágoa vejo que o ministro da justiça
de Portugal, tratando-se de um assunto em que ele deve
ser o primeiro entendido, sobre o qual deve esclarecer
todos os seus colegas, no qual deve entender mais do
que todos os outros, o remete ao procurador geral da
coroa a quem hoje se remete tudo, a quem o Sr.
ministro particularmente envia negócios da sua
especial competência, fazendo injustiça aos seus
conhecimentos jurídicos e dando um triste documento
da sua coragem governativa!
Ao procurador da coroa!
Para quê? Que falta ao Sr. ministro da justiça para
resolver este negócio? A ciência do direito canónico?
O conhecimento da história? A notícia das exorbitâncias
romanas, das intrigas que há nesta questão, do propósito
de macular injusta e iniquamente de nódoas
anti-religiosas um carácter que morreu abraçado à
religião de seus pais? (Apoiados.)
Ao Sr. ministro da
justiça não falta nada disto, e não lhe falta mesmo
o ter padecido e emigrado para um país estrangeiro,
mas amigo nosso, onde ganhou fortuna honrada por estes
mesmos princípios, por estas mesmas ideias que vem
agora tristemente renegar a troco de um poder efémero:
e principalmente efémero quando é ocupado por homens
sem coragem, nem religião - a religião das suas
ideias e dos seus princípios.
Nem o cansaço da câmara,
nem o estado dela e a altura da sessão permitiam que
eu me deixasse inspirar por sentimentos que dominam
todos os espíritos neste assunto, e fazem brotar do
coração de todos os homens liberais e amigos do seu
país um brado de indignação pelo procedimento
mesquinho do governo a respeito dele.
Sinto que o Sr.
ministro da justiça tendo notícia dos passos dados
pela comissão dos italianos para conseguir que se façam
sufrágios pela alma do conde de Cavour, começasse a
sua história num certo ponto e não a tivesse
referido desde o seu começo.
Antes que os italianos
diligenciassem obter licença para se fazerem sufrágios
pelo conde de Cavour na igreja de S. Luís, já tinham
tentado obtê-la para que os sufrágios se fizessem na
igreja do Loreto, procurando essa igreja, como era
natural, por ser de origem italiana e de admiração
italiana, e dando nessa escolha mais uma prova da
firmeza do seu patriotismo.
Foram à igreja dos
italianos e aí repeliram-nos, porque outra autoridade
eclesiástica, mas que não oficia nessa igreja, nem
tem jurisdição nessa paróquia, admoestara o pároco,
director dela, para que negasse os sufrágios. E essa
nega era fundada sobre o que dizia um jornal de Roma,
cujo extracto o Sr. ministro da justiça aqui trouxe;
sendo na verdade para admirar que S. Ex.a não
tratasse de o ler como lhe competia, para não o vir
citar erradamente, asseverando que nele se contêm
asserções que lá não estão.
Se o jornal de Roma
tivesse um carácter oficial, fosse uma espécie de
manifesto eclesiástico do chefe da igreja católica,
e encerrasse as asserções referidas pelo Sr.
ministro da justiça, eu, como bom católico, curvava
a cabeça; contudo esse jornal não diz que haja dúvida
alguma sobre a sinceridade da fé católica dos últimos
momentos do conde de Cavour, nem tão pouco que haja
nenhum impedimento canónico para que Se façam os
sufrágios.
O SR. MINISTRO DA JUSTIÇA:
- Apoiado.
O ORADOR: - Mas S. Ex.a
afirmou que o jornal dizia isto; e a consequência é
que, ou houve grande temeridade da parte de S. Ex.a em
citar um documento desta ordem sem lhe saber o texto,
ou houve o propósito de lhe inserir asserções que lá
não estão para sanar o seu inqualificável
procedimento.
Eis aqui está o grande
artigo que o Sr. ministro elevou a uma contestação
canónica, e sobre o qual assentou que os párocos,
que se haviam recusado a celebrar sufrágios públicos
pelo conde de Cavour, tinham uma justificação pleníssima.
O SR. MINISTRO DA JUSTIÇA:
- Nego.
O ORADOR: - Então S.
Ex.a é o primeiro excomungado.
O SR. MINISTRO DA JUSTIÇA:
- Nego que tal dissesse.
O ORADOR: - É
excomungado na igreja católica, como está já sendo
excomungado na igreja liberal. (Riso.)
O nobre ministro aludiu
àquele artigo como fundamento da recusa a que na
igreja do Loreto ou em qualquer outra se fizessem os
sufrágios públicos pela alma do conde de Cavour e
disse, como devia dizer infalivelmente, que aí se
declarava haver dúvida a respeito desses sufrágios,
e que portanto a corte de Roma não julgava puro o
consentirem-se.
Vou ler o artigo. A
recusa funda-se no seguinte:
«Muitos jornais têm
falado de sufrágios que pretendem haver sido
ordenados publicamente por sua santidade pelo eterno
descanso do falecido conde de Cavour. Não admira que,
entre tanta hipocrisia deste século, se haja estudado
o meio de assim dar a entender que um homem que
confessou em pleno parlamento haver conspirado por
espaço de doze anos...»
Há cá mais altos
criminosos: também nós temos conspirado por mais de
doze anos e por muitas vezes. Isto não é denunciar
ninguém especialmente, porquanto com todos nós se
tem dado este caso, nem é porque deseje fora da
igreja católica quem está nestas circunstâncias: é
por me parecer que procedem tristemente os que sendo
colegas em opiniões, princípios e tendências, e
excomungados também, estendem o braço secular para
reforçar essa excomunhão.
Continua o artigo:
«... haja concluído a
sua carreira mortal com todas as aparências de um bom
católico. Era conveniente mostrar por este modo que
ele obrara justamente quando invadiu a propriedade
alheia, e usurpava e desprezava os mais sagrados
direitos...»
O conde de Cavour
morreu com aparências de cristão Essas aparências
foram julgadas leais, verdadeiras e significativas,
especialmente pela única autoridade eclesiástica que
as podia testemunhar e autenticar: pelo seu confessor.
(Apoiados.) E naquele acto supremo da religião,
consagrado por Deus e pela igreja, não pode intervir
mais nenhum ser humano, mais nenhuma autoridade eclesiástica,
sem destruir esse santo princípio e essa santa unção
da igreja católica. (Apoiados.) Seria tirar
toda a sublimidade do sacramento da penitência, que
se compreende, porque todo aquele que tem espírito
elevado e alma humana compreende quais são os seus
destinos além da situação terrestre.
O segundo fundamento da
recusa é o seguinte:
«Quanto, porém tem
sido asseverado pelos sobreditos jornais acerca dos
sufrágios públicos ordenados por sua santidade nesta
capital do mundo católico é completamente falso. E
ainda que o santo padre, enquanto aquele ministro foi
vivo, não cessasse um só instante de orar a Deus
para que lhe concedesse a graça de voltar ao bom
caminho, contudo, se depois da sua morte ofereceu sufrágios
por aquela alma, de certo o fez secretamente, e nunca
da maneira que se pretende, pois o facto de se
ignorarem as circunstâncias, que acompanharam os últimos
momentos do falecido, impede que se façam quaisquer
manifestações públicas.»
Pergunto: a dúvida
sobre a sinceridade da fé católica impede o
permitir-se que os sufrágios da religião se façam
em público e só consente que se façam em segredo?
Isto é que eu quero saber. O impedimento proveniente
da dúvida sobre a sinceridade da fé católica em que
morreu o conde de Cavour serve só para estorvar os
sufrágios públicos e não os íntimos? (Apoiados.)
A relação entre a alma do moribundo e Deus, que o há
de julgar, os actos de consciência numa no último
bocejo, não hão de ter o mesmo carácter espiritual
que tem outros desta natureza?
Este ponto não sou
capaz de discutir. Mas parece-me que a razão canónica,
religiosa e espiritual pela qual sua santidade houve
por bem, com aquela benignidade que o caracteriza,
permitir sufrágios públicos por alma do conde de
Cavour, estes mesmos princípios podiam levar as
autoridades eclesiásticas a permitirem que nas
igrejas de outro qualquer país esses mesmos sufrágios
se celebrassem com a pompa que a religião manda. (Apoiados.)
Suponho isso; mas não entro na questão, porque não
me tinha proposto a tratá-la, nem mesmo saberia tratá-la.
Os pobres italianos...
pobres aqui só, e pobres há bem poucos anos noutra
parte, hoje ricos, mas ricos da maior riqueza que pode
ter um homem de alma e de sentimentos, (apoiados)
levantados de uma existência oprobriosa, desembaraçados
dos sofrimentos seculares, que apesar de, por muitos
trabalhos de espírito, ser tão gloriosa a sua
nacionalidade, experimentaram, porque os calcavam os pés
de ferro de uma geração que jamais seguiu o caminho
liberal; esta nação, agora rica das suas tradições,
do seu dia de emancipação, do seu futuro e dos
sentimentos de simpatia de todas as nações que a
antecederam no caminho da liberdade, que hão de
seguir o seu exemplo e que hão de ir nesta senda
infalível; (apoiados) estes pobres italianos
foram primeiro à sua igreja, à igreja italiana, e, não
obstante o maior e melhor acolhimento dos padres
italianos, não obtiveram nada, talvez por sugestões
diplomáticas, que deviam envergonhar os governos
desta terra, e que não sei se foram conhecidas pelo
Sr. ministro dos negócios estrangeiros e mereceram a
sua aprovação.
Estes pobres italianos
foram depois bater às portas da igreja de S. Luís,
da igreja francesa. Andaram amigos nossos. filhos do
nosso sangue, católicos como nós, num país como o
nosso, na presença daquele governo (apontando para
o banco dos Srs. ministros), andaram a mendigar
uma igreja, não portuguesa, mas primeiro italiana,
porque a escolheram, e depois francesa, porque só lá
julgaram que podiam obter licença para fazer os sufrágios!
Destas duas escolhas a
primeira é desculpável, e a segunda é ofensiva; e
para um governo que tem tino e senso político, é
contraria ao nosso timbre e aos interesses da nossa
nacionalidade. (Apoiados.)
Foram à igreja
francesa, e não sei se foi o pároco dessa igreja que
pediu a licença... Creio que foi a comissão. Não
sei, mas tenho aqui a licença.
Essa mata toda a questão
diplomática e põe em relevo o triste e miserável
expediente de remeter um negócio destes ao procurador
da coroa, (apoiados) provando que o Sr.
ministro, que eu considerei superior a esse empregado,
nem procurador da coroa pode ser nomeado quando sair
do ministério!
A licença é
terminante, claríssima:
«Il.mo Sr. Capelão. -
Dou o consentimento que V. S.a me pediu...»
Não conheço todos os
regedores de paróquia da minha terra, mas, chamados a
intervir nesta questão, não sei de nenhum a quem,
mostrando-se este papel, não desse cheiro do modo
como convinha proceder.
«... para que na
igreja de S. Luís dos Franceses celebrem os italianos
um ofício pelo repouso eterno do conde de Cavour. -
Manuel, cardeal patriarca.»
Este patriarca não é
dos italianos, nem dos franceses. Dá o patriarca
licença para que em Portugal, na igreja dos
franceses, se façam ofícios por alma do conde de
Cavour, que era italiano; quer dizer - põem-se fora
as autoridades, o território português, não aparece
o patriarca de Lisboa, nem sei mesmo a que país
pertence Manuel, cardeal patriarca, que deu licença
para que na igreja dos franceses façam os italianos
sufrágios por alma de um italiano.
Já se vê que esta
licença é obnóxia ao nosso carácter, contrária à
nossa dignidade.
E depois disto, o facto
de mandar todo este negócio para o procurador da
coroa é completo, é miserável e vem provar que o
Sr. ministro da justiça, na sua pasta, dentro das
suas atribuições, sabendo muito bem até onde elas
cegam, tem feito neste objecto (como em muitos) o
suficiente para matar o nosso timbre e enxovalhar-nos
à face da Europa!
Quero persuadir-me de
que S. Ex.a não lhe deu este alcance. Era uma coisa fútil:
enviou-a ao procurador da coroa, como quando está
enfadado manda dizer às partes que não recebe ninguém.
Desta maneira ofende
directamente os meus comitentes; o que não posso
tolerar, e o que sinto, porque semelhante procedimento
é indigno do carácter pessoal de S. Ex.a.
Se S. Ex.a declara que
tudo estava preparado para se dizer a missa, que havia
padre que se prontificava a dizê-la, que S. Ex.a o
designou, e que não havia a menor dúvida em que se
fizessem os sufrágios, houve então por certo outros
motivos, outras circunstâncias que impediram a
realização desse pensamento. Sinto dizer a S. Ex.a
que isto é indigno da sua lógica, e está abaixo do
seu carácter.
Os italianos, depois de
um longo processo, de que não posso dar conta à câmara,
foram expulsos do Loreto pelas insinuações do núncio
e do jornal de Roma, - expulsos até! E ainda não o
tinham sido da igreja de S. Luís, porque aí
encontraram um clérigo que estava pronto a dizer a
missa, e teve a franqueza de declarar: «Pertenço a
uma ordem religiosa, e não julgueis que vou
sacrificar o espírito dessa ordem a causa da Itália,
que é excelente. Sou lazarista primeiro que tudo, e
como tal obedeço a sua santidade. Digo a missa às
sete horas da manhã sem convite nenhum, e de maneira
que faça a menor bulha possível.»
Dizer uma missa como
envergonhado do sufrágio dela, impondo a obrigação,
a quem a manda dizer, de que não chame a orar a Deus
aqueles que têm interesse pela alma de quem ela se
diz, é uma condição humilhante que ninguém pode
aceitar. A comissão rejeitou a missa, porque tal
condição era contrária ao espírito do catolicismo
e da cristandade.
O Sr. ministro disse à
comissão, creio eu: «Entendam-se com o padre, que o
governo não se opõe.» E fez isto como uma alta
concessão! o governo, como liberal ousado nas suas
opiniões e sentimentos, declarou que, havendo quem
quisesse dizer uma missa por alma do conde de Cavour,
não o mandava meter em processo! Chegaram até aqui
as suas simpatias pela causa liberal!
Eles foram ter com o
padre. Mas este disse que não queria, por saber que não
lhe iria bem se ousasse contrariar as indicações,
posto que secretas e disfarçadas, dos seus
superiores. Parecia mais natural que o governo, que
resume o pensamento público, que o governo, estando
dentro das suas atribuições, o animasse com as suas
ordens para se dizer a missa. Mas o que ele disse foi:
«Digam lá a missa.»
De modo que os
italianos alcançaram de um lazarista uma missa às
sete horas, e o ministro da justiça era mais
lazarista que o padre, porque o padre queria dizê-la,
e o ministro comprometia-se a não obstar a que ela se
dissesse.
Aqui está a quanto
alcança a relação feita pelo Sr. ministro da justiça.
Os italianos, portanto,
bateram primeiro à porta da igreja italiana, que lhes
foi fechada: as razões já as disse. Bateram a porta
da igreja francesa, e foi-lhes aberta, mas de um modo
incivil e inconveniente, que não aceitaram. Bateram
à porta de muitas igrejas portuguesas, e todas lhes
foram fechadas: e o governo não lhes deu o menor auxílio
moral nem oficial, porque os párocos, que estavam
dispostos a fazer o ofício, temeram fazê-lo por
causa das imensas admoestações que se lhes faziam.
Eu declaro que, se
fosse padre, aprontava-me para dizer a missa por alma
do conde de Cavour; mas agora depois do Sr. ministro
mandar o negócio para o procurador geral da coroa,
havia de recear um pouco. Com a censura canónica eu
me haveria: mas com o braço secular e com o braço
canónico havia de recear um pouco.
A comissão ainda
tentou fazer o ofício na igreja da Encarnação.
Em todas estas
tentativas tinha padrinho: quando foi para a igreja
dos franceses, o padrinho não era francês e quando
foi para a igreja portuguesa, o padrinho era português
e esta presente.
Este padrinho tinha-se
munido de declarações verbais amigáveis do Sr.
patriarca de que na igreja da Encarnação se poderia
dizer a missa, e dirigiu-se ao padre da Encarnação,
que, como disse, declarou estar pronto para isso.
A comissão começou os
seus trabalhos e preparativos para que o ofício ali
se fizesse: mas quando foi depois conferenciar com o
padre sobre o lugar em que a cerimónia devia ter
lugar, disse-lhe o pároco que fora obrigado a
reconsiderar, e que já não dava licença: que não o
deixavam! O padre, creio eu, foi admoestado, e as
admoestações puderam mais do que o padrinho: os
italianos foram expulsos da igreja da Encarnação.
Voltaram de novo à
igreja do Loreto e requereram outra vês ao patriarca,
que disse: «Informe o pároco do Loreto.»
Souberam na igreja que
o pároco estava nas Caldas. E portanto que não se
podia informar o requerimento; e, como o vigário
geral declarasse não haver inconveniente em que o pároco
informasse das Caldas, fizeram o despacho para aí. O
pároco informou: O quê, não sei eu, nem a comissão
o sabe. O que sei é que, depois de tanta chicana, se
dirigiram ao governo para resolver o negócio, visto
que o Sr. patriarca lhes disse que lhe não pertencia
a resolução dele por estar entregue ao governo.
Pergunto ao Sr.
ministro da justiça: dúvida S. Ex.a (se o tem
presente) de exibir já o ofício que o Sr. patriarca
dirigiu ao governo sobre este negócio? Dar-me-ia
muito gosto se, interrompendo-me, me quisesse
responder...
O SR. MINISTRO DA JUSTIÇA:
- Estou pronto a mandar à câmara todos os documentos
a este respeito, não ocultando nenhum.
O ORADOR: - Bem. Hoje não
pode ser, amanhã já não há lugar; fica a interpelação
para Janeiro, e nesse tempo devido de que os sufrágios
se celebrem.
Creio que o documento
pelo qual o Sr. patriarca diferiu este negócio ao
governo não compromete o ilustre prelado e prende
consideravelmente a responsabilidade do governo. O
prelado não podia dizer que negava a licença, porque
essa estava dada por ele: os sufrágios são os
mesmos, e o Sr. patriarca concedia que se fizesse ofício;
e ofício supõe toda a pompa. As razões canónicas
eram as mesmas, não tinha sobrevindo nenhuma circunstância
extraordinária que fizesse determinar o prelado a
negar aquilo que uma vês tinha concedido.
Portanto o patriarca não
disse, porque não podia dizer: «Hoje concedo, amanhã
não concedo.» E para poder suprimir a licença
concedida, que casos se deram, que circunstâncias
ocorreram?
O patriarca disse: «Este
negócio é grave, porque é ao mesmo tempo um negócio
eclesiástico e temporal, e eu não quero temerária
ou precipitadamente dar uma licença, que possa por
qualquer modo perturbar as relações do governo com a
Santa Sé, que é também um poder temporal.» Isto da
parte do Sr. patriarca denuncia não só delicadeza,
mas conhecimento e compenetração do verdadeiro espírito
do seu dever, como autoridade eclesiástica no estado
civil de que faz parte.
O Sr. patriarca, antes
de dar a licença comunicou ao governo os seus escrúpulos
sobre se resultariam complicações entre o governo e
a Santa Sé da licença para se celebrar o acto
religioso numa igreja portuguesa. Se o Sr. patriarca
dissesse que tinha escrúpulos canónicos para a
concessão da licença, eu não discutia esta questão;
mas os escrúpulos canónicos estão mortos depois da
licença do Sr. patriarca para o acto religioso na
igreja francesa.
A questão, desde aí,
é toda civil e toda ministerial, e o governo escusa
de se esconder atrás das vestes prelatícias do Sr.
patriarca, nem de cobrir-se com elas, porque está a
descoberto neste assunto, e a responsabilidade é toda
dele.
Mas sempre me parece
que neste ponto há uma responsabilidade especial,
porque sei que há poucos meses estivemos e ainda
estamos em perigos da maior gravidade, pela estonteada
gerência da pasta dos negócios estrangeiros.
Estivemos em perigos graves, ainda estamos e estaremos
sempre, enquanto ela se conservar em mãos, não lhes
chamo traidoras, mas por tal modo escravas da sua
vaidade, que tudo lhe sacrificam.
No caminho que levou
este negócio, cumpre-me subsidiar o governo do modo
por que o posso fazer.
O Sr. ministro mandou
ouvir o procurador da coroa. Muito bem: vamos auxiliar
o procurador da coroa com um trabalho de outro
procurador da coroa, também português e de grande
reputação jurídica, porque sei quanto vale para um
jurisconsulto o peso dos conhecimentos sancionados
pelo maior peso dos factos.
Trata-se de uma
excomunhão, e sobre este ponto não entendo senão
que ela se deve temer e reverenciar, e que um bom católico
deve trabalhar toda a sua vida por não a merecer.
Pode. porém, vir injustamente, que na igreja católica
são conhecidas as excomunhões injustas: há destas,
e há-as válidas, assentes sobre um princípio
religioso.
Estremeço de tocar
neste assunto; e neste ponto não dou um passo senão
escudado em fortíssimas autoridades.
A excomunhão a que
aludo, segundo o próprio jornal de Roma, não versa
sobre motivos espirituais, religiosos e canónicos;
nem pode versar, porque neste ponto a religião é
providente. Todo o católico, morte perventa,
no caso de morte, se der sinais sensíveis, inequívocos,
apreciados como tais pelo seu confessor, de que
abjurou as doutrinas e erros em que andava, está
absolvido da excomunhão; mas para a absolvição ser
valida é preciso que seja dada quando ele estiver em
artigo de morte. Ou se haja ilustrado por obras contrárias
a esses princípios que professou, ou haja escrito
livros em contrário às doutrinas falsas que
sustentou, nada disso lhe aproveita se não tiver a
absolvição no caso de morte. Só é valida a absolvição
dada no caso de morte, in articulo mortis.
Pergunto: foi ou não
foi absolvido o conde de Cavour em caso de morte? Foi
ou não foi absolvido neste caso completamente, em
termos de tirar todo o escrúpulo aos representantes
da religião católica? Foi: porque o padre que o
absolveu, chamado a Roma, declarou as circunstâncias
que acompanharam a morte do penitente, e não houve em
que condenar o seu acto, e em que declarar a sua
absolvição temerária. Creio que isto é um facto.
Mas qual era o
fundamento da excomunhão? O fundamento era todo
temporal, como declara o jornal de Roma era uma questão
meramente política, era a questão do poder temporal
era a ocupação de terras que pertenciam à tiara
pontifícia, era uma questão como mil outras que
entre nos se têm tratado, como aquela pela qual fomos
excomungados os que combatemos no Porto em prol das
doutrinas liberais, pela qual foi excomungada uma geração
inteira desde o rei até ao mais ínfimo peão.
Entretanto nós, acatando o acto, mas protestando que
não o merecíamos, fomos defendendo a liberdade, e
com ela a religião. (Apoiados.)
Mas vamos ao procurador
da coroa. Já disse que esta excomunhão só assentava
em motivos temporais. Vamos a ver o que dizia um
procurador da coroa, José de Seabra da Silva.
Agora entraram em luta,
no ânimo do Sr. ministro da justiça, os seus
sentimentos católicos e o seu respeito a tão
venerando nome, e ele está hesitando sobre qual será
preferível, se o ser segregado da comunhão da igreja
católica, se do grémio dos grandes jurisconsultos. (Hilaridade.)
Isto que diz este
jurisconsulto é sobre a aceitação da excomunhão em
Portugal, e nos outros países católicos, sobre a
oposição que lhe fez o poder civil; é a produção
das razões principais em que se sustentava a recusa
do assentimento a receber a excomunhão. Diz ele:
«E também este capítulo
se não aceitou, nem podia aceitar: primo,
porque a espiritualidade da excomunhão não podia
nunca jamais grudar-se nas temporalidades daquelas
terras e domínios, que os santos padres possuem como
príncipes temporais: secundo, porque nos casos
em que os sumos pontífices, como tais príncipes
temporais, se embaraçaram em dissensões e discórdias
com os outros soberanos também temporais, a
necessidade pública, que constitui lei suprema, de
defenderem os mesmos soberanos temporais a sua alta
reputação, os seus domínios, e as vidas e fazendas
dos seus vassalos, foi sempre a que precisamente
decidiu, não obstante as ditas excomunhões
espirituais, e por isso inaplicáveis às terras e
coisas temporais como acima digo. Sendo isto o que
(muito a seu pesar) foram constrangidos a praticar nos
casos ocorrentes os monarcas e soberanos das cortes
mais religiosas e mais ortodoxas e pias da Europa.»
Não sei quais são os
trâmites para levar estes auxílios aos pés do
governo todavia ele mandou ouvir o procurador da
coroa, e eu confio muito nesta autoridade, mais de que
no Sr. ministro da justiça, visto que S. Ex.a em
pontos de direito apela para ele. Seria bom entretanto
dar-lhe este subsídio, para ele reconhecer quais são
as tradições do nosso direito público, e como em
outras épocas governos de outra tempera e com outras
condições de existência respeitavam a opinião pública,
mantinham os direitos riais e provavam que eram um ser
moral e não um séquito inexplicável de subserviências
a todas as paixões e a todos os interesses.
Isto ao menos tinha um
pretexto nobre, desculpável: mas pode haver um
ministro beato que não compreenda semelhante
doutrina, o que é um mal...
O SR. MINISTRO DA JUSTIÇA:
- Peço a palavra por parte do governo.
O ORADOR: - O Sr.
ministro pediu a palavra por parte do governo. Diga-me
S. Ex.a qual é a substancia do ofício do Sr.
patriarca. Diga-me se ele não pôs nas mãos do
governo o meio de resolver esta questão. Diga-me se
ele se pode recusar a dar a licença, tendo-a já
dado. E se está persuadido de que, quando o governo o
insinue, como se costuma fazer em tais casos, ele não
dará mediatamente a licença, e se por um princípio
de consciência, sem ordem do poder temporal, a quem
é obrigado a obedecer, salvos os assuntos puramente
religiosos, pode negá-la. Se o patriarca pudesse
insurgir-se contra o poder temporal em assuntos que não
são religiosos, o ministro seria o espectador imbecil
de todas as desordens e de todas as discórdias políticas.
A missa não se diz,
porque não estamos em 1834. A missa não se diz,
porque estão mortos ou amortecidos os caracteres que
restam daquela grande e nobre luta;
porque se vai extinguido a geração que
queimou a pólvora, sofreu o cadafalso, as fomes e a
miséria para fazer triunfar estes princípios, que o
Sr. ministro renega; porque há ministros neste país
que pensam que uma nação pequena deve aceitar as
tristes condições do seu estado, e que o meio de a
fazer levantar não é associá-la a todas as causas
simpáticas, e ter um governo que possa mais do que
ela.
Estamos aqui sessenta.
Afora o Sr. ministro da justiça, não há um só que
amanhã, sendo ministro, não resolva o negócio sem
nenhuma contenda com a corte de Roma, sem nenhum
desagrado com o núncio. Nem é coisa para desagradar,
nem para ofender a consciência de ninguém,
abrirem-se amanhã as portas de um templo, e ir a
população de Lisboa desabafar ali os seus
sentimentos de mana em honra de um homem que não
faltou nem à igreja nem a Deus.
O conde de Cavour era
um grande homem, era o tipo dos homens de Estado. (Apoiados.)
Não sei se esta relutância, esta frieza que há em
se lhe concederem as honras fúnebres, da parte do
ministro, é por ser o tipo de uma confrontação
desastrosa para S. Ex.a!
O conde de Cavour tinha
as primeiras qualidades de um homem de Estado desta época:
tinha uma alta inteligência, um grande desprendimento
de si, e sobretudo sentia o que pensava.
(Apoiados.) O homem que não ilumine os
seus actos intelectuais com o sentimento, e não o
tenha diante dos olhos, o homem que não reuna em si
sentimento e cabeça, não pode dirigir um povo. Ele
tinha estas qualidades, e por isso tomou sobre si uma
causa sobre todas nobre - a causa da Itália, a
reivindicação do esquecimento ingrato de todas as nações,
a reconquista do solar da civilização primitiva, -
porque tudo ali se passou, e ali é que nós fomos
buscar as ideias liberais, entrando naquele alcácer
com o Tito Lívio e o Virgílio na frente.
E triste é a sorte em
circunstâncias destas, quando os elos dos
acontecimentos humanos se desencadeiam entre nós,
quando temos a fortuna de presenciar esta obra da geração
actual, e ver satisfeitos tantos direitos, pagas
tantas dívidas, levantadas tantas esperanças: triste
é a sorte do país que, tendo de presenciar todos
esses acontecimentos, tem a desgraça de ver almas
frias e corações adormecidos, que não sabem
elevar-se à altura deles e acompanhá-los nos seus
efeitos e reflexos, se os podem ter, sobre a nossa
nacionalidade e futuro!
- Peço a Deus que se
diga uma missa por alma do conde de Cavour; e aos
poderes públicos que nos façam o não menor benefício
de nos dar outro governo, digno de nós e da época em
que vivemos. (Vozes: - Muito bem). |