SESSÃO DE 8 DE JUNHO DE 1839
Vou falar sobre este assunto,
depois de se ter realizado um grande facto e cumprido
uma promessa importante. Quando nós tratámos a questão
de fazenda nas Cortes Constituintes, um ilustre
deputado, que está presente, disse-nos que para a
resolver era conveniente que deixássemos arejar esta
casa, que a urna fizesse novas escolhas, e que
trouxesse ao parlamento todos os homens eminentes na
ciência das finanças. Este facto está realizado,
esta promessa cumprida. Uma tal consideração muito
me embaraça ao encetar o meu discurso, e não menos
me acanha a presença do ilustre autor daquele repertório
financeiro.
Sr. presidente, a estes embaraços
de timidez e respeito acresce outro muito mais sério.
Tenho de tratar uma questão, e na verdade ainda não
sei qual ela é. Cada um dos ilustres oradores tem
elogiado o seu projecto, todos lhe têm dado as honras
de salvadores; uns têm falado na conveniência de
emitir papeis sobre a décima, outros na
impossibilidade de realizar tal medida; uns na
vantagem do empréstimo, outros nos inconvenientes
desse empréstimo; e no meio de tudo isto ainda
pergunto a mim mesmo: qual é a questão?
A questão, Sr. presidente, é a das nossas
finanças, que não começou com esta legislatura, mas
que já apareceu no Congresso Constituinte; é a questão
que atormentou todas as câmaras da Carta; é a questão
de que estão dependentes todas as outras questões; a
questão que não é dos partidos, mas dos
portugueses; a questão que já matou uma Constituição,
e que há-de matar outra; a questão finalmente que há-de
esmagar todos os homens públicos, e perder para
sempre este país, se a não quiserem ver como ela é.
Diz-se, Sr. presidente: «Mas que
temos nós a discutir?!
Pois não é ordem do dia um pedido de meios
que o governo nos faz?» Sim, mas este pedido é
apenas um sintoma do grande mal que rói as entranhas
públicas, e eu não me posso cingir a considerar só
esse pedido do governo, porque os gritos do país
revoltam-se contra as disposições do regimento, e me
aconselham e pedem que indague a causa verdadeira de
seus sofrimentos.
Ameaça-nos alguma guerra? Temos
alguma invasão próxima? Estão embrulhadas as nossas
relações diplomáticas? Trata-se de algum grande
melhoramento material para o país? Não. Então para
que se apresenta o governo a pedir um crédito que está
fora do quadro das despesas ordinárias do Estado?
Sintoma do mal, porque numa nação, onde a fazenda
está regularizada, não aparecem tais pedidos, senão
nos casos que acabei de apresentar - e nenhum deles se
dá actualmente entre nós.
Sr. presidente, eu não historiarei
as nossas finanças, porque isso seria ocioso: esta
história é já hoje popular, e serve de tema de
conversação nas grandes reuniões, e de triste
entretenimento para as práticas domésticas nos lares
das nossas aldeias. Algumas das suas passagens andam
até nas nossas cantigas nacionais, e eu espero que da
vulgarização destas notícias se colham os mais
vantajosos resultados...
A questão, a meu ver, reduz-se aos
seguintes termos: quanto temos com que pagar,
quanto temos a pagar, e como se há-de pagar.
Sr. presidente, eu não quero
repetir aquele trecho eloquente de Brougham sobre os
pesados tributos que vexam o povo inglês, mas sem dúvida
nós também pagamos para ser cristãos, pagamos para
termos direitos civis, pagamos para defender a nossa
propriedade, pagamos por habitar, pagamos por
trabalhar, pagamos por vestir, pagamos por comer,
pagamos por andar, e até pagamos por nos enterrarmos.
Talvez que as forças produtivas do
nosso país possam suportar mais alguns tributos; mas
é preciso reconhecer que a multiplicidade deles é um
dos obstáculos ao aumento da sua renda. Seria mesmo
mais fácil torná-la maior para o fisco, reduzindo o
número das contribuições. Isto, porém, envolve uma
reforma geral do nosso sistema de imposição, que
agora daria em resultado o desarranjo total das nossas
finanças. Eu sei que se podem fazer grandes prognósticos
sobre o nosso futuro melhoramento financeiro, e
apregoarem-se lisonjeiras esperanças de prosperidade.
Mas questões desta ordem não se tratam por
conjunturas; é mister limitá-las aos dados
existentes, e às conclusões infalíveis que deles se
podem tirar. Qualquer pode hoje profetizar que o nosso
Portugal ainda há-de fazer o pasmo da Europa, ou ser
miserável colónia do estrangeiro: e para prova duma
e doutra hipótese não faltarão razões plausíveis.
Além disto, as escolhas da urna
recaem, com pouca diferença, sobre as mesmas pessoas.
Os homens públicos, que têm figurado desde a
restauração para cá, e as suas opiniões, são
conhecidos, e deste círculo de notabilidades não é
de esperar que saiam as indicações eleitorais. Nós,
os deputados deste lado da câmara, que na
Constituinte lançamos tributos, temos parado nessa
operação, e não estamos resolvidos a exigir do país
mais sacrifícios. o lado direito é impossível que
tome a tarefa, que para nós acabou, sem manifesta
contradição com as suas profissões de fé; e eu
glorifico muito os ilustres deputados que este ano
sancionaram os tributos, que nós tínhamos votado, não
obstante as censuras, que, por tal motivo, tão
desapiedadamente nos fizeram. Já se vê, pois, que os
factos, a economia e a política se conspiram para
provar que os nossos rendimentos públicos não podem
receber aumento.
Também do preço do dinheiro,
sobre que o ilustre deputado por Braga fundamentou
muitas considerações importantes acerca do nosso país,
poderia eu deduzir observações mais profundas a
favor da minha opinião. Certamente um país, onde o
dinheiro está a seis e sete por cento, no estado
actual do comércio, não pode dar grandes esperanças
de desenvolvimento.
Entre os quadros esperançosos, que
se fizeram do nosso estado, apresentou-se um
expediente de engrandecimento, contra o qual cabe aqui
pronunciar-me solenemente. Um ilustre deputado propôs,
como meio de aumentar a nossa renda, certa reforma nos
direitos das pautas, que não mate a nossa indústria,
mas que Ievante de novo o comércio que fazíamos pela
raia de Espanha. São as próprias expressões do
Sr. deputado.
Antes do estabelecimento das
pautas, é certo que nós fazíamos um comércio de
contrabando em fazendas inglesas para a nação
vizinha. Mas, Sr. presidente, eu revolto-me contra o
princípio económico que sacrifica a nossa indústria
aos lucros de uns poucos de especuladores; eu
revolto-me contra o princípio que tira o trabalho às
classes pobres para ir alimentar um comércio furtivo
e criminoso; eu revolto-me contra o princípio que
quer fundar a riqueza do país na contravenção de
todas as leis duma nação vizinha e aliada! E as
fazendas inglesas, que entravam nos nossos portos,
para serem transportadas para Espanha, depois de
ultimada a guerra em favor do sistema constitucional,
não acharão tão favorável acolhimento nos portos
do país, que as armas e auxílios da Grã-Bretanha
tanto ajudaram a libertar? Não se pagarão os
ingleses com vantagens comerciais, que há tanto tempo
desejam obter em Espanha, dos auxílios e despesas que
com ela têm feito? É bem sabido que esteve a
concluir-se ainda há pouco um tratado de comércio
entre a Espanha e a Inglaterra, em virtude do qual
ficavam as fazendas inglesas com uma vantajosa entrada
nos portos de Espanha, e o que então se não
conseguiu, há de certo efectuar-se quando soar o último
tiro da guerra que devasta o país vizinho.
A Espanha, atento o desenvolvimento
industrial que tem apresentado no meio dos horrores da
guerra e da agitação de três revoluções, dá
esperanças de um progresso material incalculável,
logo que tenham desaparecido as causas que até aqui o
têm retardado; e talvez que, por vergonha nossa,
dentro em pouco tempo ela tenha estabelecida a sua
independência industrial, para que nós marchamos com
passos mui vagarosos.
À vista destas considerações,
bem se vê que a ideia de reformar as pautas para
sustentar o contrabando com a Espanha, ao mesmo tempo
que vai de encontro a todas as ideias de moral, de boa
fé e honra nacional, é impolítica e imprevidente; e
eu, que não quis amarrar às vinhas do Alto Douro o
viçoso arbusto da nossa indústria, não lhe quero
ver cortar os melhores ramos, para cobrir os mulos de
meia dúzia de contrabandistas.
Sr. presidente, viver de
contrabando não é sistema que tenha sido objecto de
considerações estadísticas; mas viver de indústria
é hoje o grande pensamento de todos os homens públicos
da Europa, porque a indústria é a política e a
economia deste século. (Apoiados.)
Em presença das obrigações
naturais do governo, a que o ilustre deputado aludiu
para corroborar os seus princípios económicos,
obrigações que são conhecidas no mundo desde Nemrod
até Washington, e nas quais se ligam aos deveres da
moralidade os cálculos de interesse público, esses
mesmos princípios são solenemente condenados e
rejeitados, e só quem estuda a teoria governativa na
nomenclatura administrativa de um país é que pode
descer a tão mesquinhas e desairosas considerações.
Sr. presidente, os governos já eram governos antes
que o ministro do reino em Espanha fosse chamado
ministro del fomento.
Sabemos, pois, que a nossa cifra de
receita, dentro do prazo em que a questão financeira
tem de ser resolvida, não aumenta; e por isso já
conhecemos com que temos que pagar. Agora vamos saber
quanto temos a pagar.
Sr. presidente, consentir que um país
lute na desgraça por longo tempo, e adiar o remédio
a seus males, é uma crueldade; mas quando essa desgraça
começa a ser conhecida, e todos os espíritos se
preparam para os sacrifícios que ela demanda, correr
outra vez o véu do engano e destruir os efeitos de
investigações proveitosas é uma impiedade horrível!
Sr. presidente, o orçamento de
1828, apresentado pelo Sr. Manuel António de
Carvalho, mostrava um déficit corrente de quatro mil
contos, e seis mil e tantos contos de déficit
acumulado, que lá muito propriamente se denomina dívida
flutuante. Não mencionarei o orçamento do Sr.
Francisco António de Campos, porque não quero
argumentar com documentos que os meus adversários dêem
por suspeitos. O orçamento do Sr. José da Silva
Carvalho traz um déficit de oito mil e quinhentos
contos, que, com o déficit do ano a que pertencia,
que é de três mil contos, monta ao total de onze mil
e tantos contos. O orçamento do Sr. Passos dá um déficit
corrente de seis mil e sete centos contos; com mais o
déficit do ano a que pertencia, que é de três mil
contos, chega a nove mil e tantos contos. Finalmente o
Sr. Manuel António de Carvalho apresenta agora um déficit
acumulado de dezasseis mil contos. Nestas somas não
figura a dívida ao Banco, de quatro mil contos.
Dir-se-á que ela tem hipoteca; mas vendida esta
hipoteca pelo preço que têm agora as espécies em
que ela consiste, que são inscrições de quatro por
cento e apólices de cinco, ainda fica um saldo contra
o tesouro de mil e tantos contos, e esta quantia deve
portanto ser adicionada a todos os orçamentos, porque
em todos eles falta esta soma. Grande parte dos quatro
mil contos de déficit que vem no orçamento do Sr.
Manuel António de Carvalho desapareceu pelo ponto
que, em 1833, muito louvavelmente pôs nas despesas públicas
o Sr. José da Silva Carvalho. Além disto, ainda nas
dívidas até aqui mencionadas não vem incluída a dívida
anterior a 33, que está descrita no orçamento do Sr.
Francisco António de Campos, pela quantia de dez mil
contos, dívida para o pagamento da qual no ministério
do Sr. José da Silva Carvalho se reconheceu direito,
porque se mandou liquidar e classificar.
Seja pois o nosso déficit o termo
médio da soma destas quantias. E como, Sr.
presidente, se atenuou este grande déficit?
Negando-se a autenticidade de todos os orçamentos;
cortando todas as verbas deles com a mesma facilidade
com que uma velha passa as contas do seu rosário;
chamando-lhe dívida sossegada, e fazendo sobre ela
uma progressão arbitrária para deduzir um argumento
de absurdo; e, finalmente, propondo economias.
Sr. presidente, o que é o orçamento
de um país? É o registo das suas hipotecas, o tombo
de seus bens, o seu livro de razão. E pode duvidar-se
ligeiramente de tais documentos? Quando se nos diz: «Nos
vossos arquivos só há um montão de papeis que não
merecem fé alguma» - que base podemos tomar para as
nossas reformas, que fundamento para os nossos cálculos,
que princípio para as nossas esperanças?! Esta dúvida
da verdade dos orçamentos é uma decepção
sistematizada, e depois dela o nosso trabalho uma
futilidade. Esta discussão tem sido o triunfo do Sr.
Manuel António de Carvalho. Um ilustre deputado,
querendo combater a emissão de bilhetes sobre a décima,
apresentou, como primeiro argumento, as palavras do
Sr. ministro da fazenda, que eu não sei se pelo mesmo
ilustre deputado já tinham sido censuradas. Disse o
Sr. ministro, por várias vezes, que só se devia
pagar em dinheiro, e esta ideia favorita do seu
sistema foi produzida pelo Sr. Roma como uma razão
decisiva contra a emissão de bilhetes. Outro Sr.
deputado, que acoimou de falsos todos os orçamentos,
deu as honras de verdadeiro ao orçamento apresentado
agora pelo Sr. Manuel António de Carvalho,
chamando-lhe com bastante ênfase o orçamento real:
mas esta distinção foi certamente devida à sua
pequena cifra, porque o ilustre deputado está
interessado em dar só como exactos os orçamentos de
pequena soma. Mas que orçamentos são estes, que se
aumentam ou diminuem à vontade e capricho? Quando o
Sr. Passos apresentou oito mil e quinhentos contos de
déficit, escreveu-se em alguns jornais que tal déficit
era pequeno, que o tinham dissimulado, porque na
realidade era muito mais subido. Onde estão estas
penas que então assim escreveram?
Sr. presidente, já eu disse que não
entravam no déficit dos dezasseis mil contos os
quatro mil que se devem ao Banco, dívida que se pode
reduzir a mil contos, feita a venda da hipoteca; nem
os mil e dez do empréstimo de 1828; nem os dez mil
contos, que hão de crescer pelas futuras liquidações.
Pretende-se fazer um encontro nestas dívidas com o
que se nos deve: e primeiro apresenta-se a dívida da
Espanha. Sabe o Sr. deputado se ela se recebe? Sabe as
dificuldades diplomáticas que se têm levantado a tal
respeito? Eu também não as sei, mas presumo que de
tal dívida não receberemos um real. Talvez que este
negócio tenha ainda de correr pelas mãos do Sr.
deputado, e teremos de ouvir da sua boca o desengano,
que eu agora antecipei. Também se apresenta a dívida
do Brasil como um recurso certo, e eu vejo no orçamento
uma nota, que diz que os processos sobre esta liquidação
estão no mesmo estado em que estavam há quatro anos,
e por certo este facto não é muito indicativo de
facilidade de cobrança.
Disse o ilustre deputado por Braga:
«Se o nosso déficit fosse tão grande como aparece
nos orçamentos, dobrando ele todos os anos por uma
progressão aritmética, devia hoje ter subido a uma
quantia, que aliás não atinge; e de aqui se deve
concluir pela inexactidão dos orçamentos.» Sr.
presidente, pois todo o nosso déficit dobra
anualmente? Não há nele uma parte constante, invariável,
que não tem incremento? O déficit corrente vai
dobrando todos os anos, mas ao déficit acumulado não
acontece assim, de modo que o ilustre deputado
estabeleceu a sua progressão sobre uma cifra que lhe
não podia servir de fundamento, e tirou de um cálculo
erróneo o seu argumento de absurdo. E as operações
mistas, Sr. presidente? O mesmo ilustre deputado
confessa que, desde que conhece a nossa praça, não
sabe que entre nós se tenham feito outras: e se todas
elas têm influído sobre os déficits correntes,
amortizando parte deles, como não tomou o ilustre
deputado em conta a diminuição a que por tais
motivos devia atender?
O ilustre deputado, falando do déficit
dos dezasseis mil contos, disse: «Para que foram
desenterrar essa dívida que estava sossegada?» Oh!
Sr. presidente, dívida sossegada!!... frase nova,
invenção de decência, que nós ainda não conhecíamos
o ano passado, quando se falou em bancarrota... Dívida
sossegada?! Dívida bancarroteada é mais claro.
Sr. presidente, esta dívida
sossegada, se gozasse da paz em que o ilustre deputado
a julga, não estava eu agora aqui a falar, nem s. sª
tinha tido o trabalho de fazer o seu discurso de
ontem, nem os ministros ali estavam à espera da sua
sentença. Dívida sossegada! Sim, mas quanto nos não
incomoda ela, quanto complica o nosso estado e
compromete o nosso futuro!
«Temos a fazer muitas economias e
reformas», disse também o nobre deputado. Eis aqui o
primeiro princípio em que concordamos, ainda que não
absolutamente. O ilustre deputado excluiu do seu piano
económico o corte de ordenados; eu também os não
quero diminuídos até à mesquinhez, mas não acho
político estabelecer um princípio de economia para o
serviço público, e excluir os indivíduos desta
regra, porque deste modo se daria a suspeitar que o
princípio se quebrava diante das pessoas, e os
contribuintes, com quem este assunto toca de perto, não
se contentariam com um sistema que tem tantos visos de
parcial.
Apresenta-se-nos o orçamento da
guerra como o campo das grandes economias. Concordo;
quero que se façam economias. Mas parece-me que já
se fala no orçamento da guerra... em tom de guerra.
Convém advertir, que neste ramo de serviço público
há duas classes distintas; uns que trabalham, outros
que não trabalham: os primeiros têm pouco, os
segundos têm de sobejo, e é preciso tirar a uns para
dar aos outros. Por esta ocasião lerei um trecho
curioso do orçamento do Sr. Manuel António de
Carvalho em 1828; diz ele:
«Por uma simples inspecção da despesa se verá
também que só o exército e a marinha absorveram réis
6.093:227$291, isto é, quase toda a receita ordinária
da nação. O tesouro (forçoso é dizê-lo!) não
pode formar juízo algum certo sobre esta importante
despesa, porque as repartições, que a fizeram, não
dão contas há bastantes anos, e por isso os
documentos, que comprovam esta grande parte da despesa
pública na conta do mesmo tesouro, são os simples
conhecimentos de recibo dos tesoureiros daquelas
repartições. Escusado é, senhores, demorar-me em
reflectir sobre um mal, cujas transcendentes e
funestas consequências são a todos bem patentes.»
Isto, Sr. presidente, era em 28. E
de então para cá, o que se tem feito? Temos
melhorado? A câmara vai sabê-lo. Eis aqui o que eu
leio no orçamento deste ano. Trata-se da despesa. «A
segunda demonstra a importância da dívida dos
diferentes ministérios no referido dia 30 de Junho de
1830, com distinção (menos quanto ao ministério da
guerra) da que pertence à época, que decorreu do 1º
de Agosto de 1833 até 30 de Junho de 1837, e da que
é própria do ano económico de 1837 a 1838.»
Pelo primeiro documento vê-se o
estado da nossa administração militar em 1828, e
pelo segundo os progressos que tem feito de então
para cá, pois que ainda neste ano se não pode fazer
um orçamento regular do ministério da guerra. Esta
é a conclusão, que se pode tirar do que acabei de
ler; eu espero, porém, que, se o Sr. ministro da
guerra se demorar no seu lugar por algum tempo, quando
acabar o seu ministério há-de deixar melhorada esta
parte da administração do estado.
Sr. presidente, deixando pois o
brilhante panorama de cifras lisonjeiras, que
apresentou o ilustre deputado por Braga, abraço-me
cheio de magoa com o nosso pobre país, que ouve a
toda a hora a voz impertinente dos exactores da
fazenda, os queixumes dos seus miseráveis empregados,
e sobre isto os discursos insofríveis dos seus
oradores, que lhe anunciam uma prosperidade, que ele não
desfruta e em que não acredita. Sim, senhores, esta
voz lisonjeira não poderá ser acreditada no meio das
nossas pequenas povoações, onde a geração actual
um dia praguejará contra as instituições liberais,
que a vão deixando sem a instrução que o governo
absoluto lhe não negou; esta voz não poderá ser
acreditada nas repartições públicas, onde os
empregados gemem carregados de trabalho e de miséria;
esta voz não poderá ser acreditada nos quartéis dos
nossos soldados veteranos, que as feridas gloriosas de
cem batalhas não puderam salvar dos horrores da fome;
esta voz não poderá ser acreditada nos corredores do
tesouro, aonde as viuvas e filhas dos nossos beneméritos
oficiais esperam para ir meter na voragem da usura o
preço do sangue e da honra de seus chorados
protectores!
Se as minhas frases são
aterradoras, se as minhas proposições são falsas,
porque motivo essa voz poderosa não cerca já, como a
da trombeta sagrada, a Jericó da agiotagem, não faz
já cair seus muros, e não arvora sobre as ruínas
deles a bandeira da alforria governativa, da ordem e
da prosperidade pública?
Os signos estão riscados, as ervas
juntas, a hora aziaga passou; por que razão não
meneia pois o mágico a sua vara, e não começa o
sortilégio?
O ilustre deputado, a quem me
refiro, achou excelente o projecto da minoria da
comissão, e adoptou-o; mas, depois de ter feito do país
uma pintura tão brilhante, estranha esta sua conclusão.
Julgar que a minoria podia apresentar o seu projecto
sem o fundamentar no mau estado das nossas finanças,
é ofender a sua lógica ou suspeitar das suas intenções;
e para o ilustre deputado se esquivar a este desaire
é preciso que carregue com o peso de uma contradição
desgraçada.
Nós, que acreditamos no orçamento
e na exactidão aproximada das suas verbas, que temos
visto morrerem neste país todos esses sistemas
afamados, sem nada produzirem; nós, Sr. presidente,
que estamos reduzidos aos recursos de nossas cabeças
apoucadas, temos motivo para nos arrojarmos a esta
medida. Mas quem, vendo o país num estado tão próspero,
lhe presta o seu apoio, é cruel sem motivo, e quer
fazer violência sem razão.
Diz o ilustre deputado: «A medida
não é oportuna». Pois para quando fica ela
guardada? Para daqui a alguns anos? Não, que então
chegará o momento de se realizarem os bons presságios
que o Sr. deputado nos fez; e não sendo para agora
por inoportuna, nem para o futuro por desnecessária,
não terá jamais razão de ser, porque o passado não
é nosso.
A questão, porém, não está na
exactidão rigorosa das cifras, mas na proporção dos
nossos recursos com os nossos encargos; e deste modo a
investigação minuciosa da importância do orçamento
é uma ociosidade, porque, se nós diminuirmos até à
mais ínfima quantia a nossa dívida, permanecendo
ainda menor a nossa receita, ficamos sempre no mesmo
estado. Aqui somos chegados ao terceiro termo da questão:
ao exame do modo por que havemos de pagar.
Sr. presidente, no primeiro
instante quisemos acudir a nossos males com empréstimos
estrangeiros: para isto concorreram muito certamente
as teorias de economia política, que ontem aqui
ouvimos. Disse-se então, como ontem se disse: «O
dinheiro está em Londres a 3 por cento; porque não
havemos de lá ir buscá-lo, se lá está mais barato?»
Mas os juros hão-de ir de cá, onde o dinheiro está
mais caro...
O ORADOR: - Eu não afirmo que o Sr. deputado
tivesse dito isto, porque não falou em empréstimos;
mas eles são uma consequência da teoria que
estabeleceu.
Eu também conheço a doutrina do
equilíbrio monetário; dizem os economistas que todo
o mundo comercial é semelhante a um lago, no qual o
numerário, como a água, procura sempre nivelar-se.
Os princípios e as demonstrações estão nos livros,
mas os factos estão-nos mostrando, por exemplo, que
no Porto está o dinheiro a 4 por cento, e em Lisboa a
9. E porque se dá este fenómeno? Não o quero agora
averiguar. Ainda que o equilíbrio monetário fosse
uma lei económica, enquanto ela se realiza, pode
morrer o país em que o numerário tenha escasseado.
Sr. presidente, depois que os
nossos governantes despregaram as vistas da praça de
Londres, voltaram-se para a nossa, e começaram nela
as operações mistas.
O ilustre deputado por Braga
disse-nos que, desde o começo do século actual, só
temos feito na nossa praça destas operações e que
elas têm sempre accionado sobre a nossa dívida
flutuante. E como não tem sido amortizada essa dívida
por esta série de operações, que todas têm
absorvido alguma parte da sua soma? Este facto, que de
todos é sabido, é assaz significativo, e só ele
importa a condenação do sistema em que temos vivido.
A agiotagem mais perniciosa é, porém,
a que se faz sobre aquela parte da dívida flutuante,
que consiste nos ordenados e mais despesas ordinárias
do serviço público. Ora sobre esta parte da dívida
flutuante, que é diminuta, é que especialmente se têm
feito as operações mistas. E porque motivo não têm
elas absorvido, ao menos, esta parte da nossa dívida?
Este facto, que também ninguém ignora, ainda é mais
significativo, e de major interesse explicá-lo.
Alguém supõe que a causa deste
fenómeno é o terem-se feito as operações mistas
sobre antecipações, de modo que, consumindo-se nelas
parte da renda pública destinada para as despesas
correntes, anulava-se a amortização, que por outro
lado se fazia na dívida da mesma espécie. Mas
note-se que muitas dessas antecipações não têm
sido completadas, porque a necessidade de resgatar as
rendas públicas tem obrigado algumas vezes a pagá-las
por via de recursos extraordinários. Tal aconteceu
com as antecipações sobre as alfândegas, que foram
pagas pelo contrato com a companhia Confiança.
Qual é, pois, a causa da impotência
das operações mistas para extinguir a nossa dívida
flutuante, proveniente da despesa corrente do serviço
público? É que esta dívida anda sempre por um preço
mais subido do que podem suportar estas operações, e
por isso é delas sempre excluída, deduzindo-se daqui
a incontestável verdade de que nunca as operações
mistas hão-de extinguir a nossa dívida flutuante,
nem mesmo aquela pequena parte que consiste nos créditos
da despesa corrente.
Há mais de meio século que, em
volta do paul da agiotagem, temos levantadas as máquinas
hidráulicas das operações mistas; há mais de meio
século que elas trabalham no seu esgotamento. E o
paul sempre cheio e sempre infeccionando o país!
Vamos a hipóteses: suponhamos, mas
não concedamos, que a nossa dívida flutuante
proveniente das despesas do serviço público é de
seis mil contos, e que queremos sobre ela fazer operações
mistas com duas partes em papel e uma em dinheiro. O
valor nominal da operação fica em nove mil contos de
réis; seis mil em papel e três em dinheiro. Se esta
capitalização for com um juro de 5 por cento,
preciso dispor de setecentos contos para pagar esse
juro.
O Sr. ROMA: - Há engano no cálculo,
são quatrocentos.
O ORADOR: - Há engano? Pois sejam
quatrocentos. Pergunto: onde havemos nós de ir buscar
esta soma para fundar a nossa dívida? Consumiremos
nesta operação todo o excedente da Junta do Crédito
Público sem pagarmos os juros da dívida estrangeira?
Isto seria uma barbaridade sem desculpa, porque deixaríamos
uma parte mui respeitável dos nossos credores sem
pagamentos, e não concluiríamos uma operação que
regularizasse as nossas finanças.
Mas dizem-nos: «Nós não
precisamos de dinheiro para pagar as despesas
correntes, e por isso fazemos uma capitalização só
sobre papeis.» A maior parte, porém, desses papeis
tem um preço tal, que não podem ir à capitalização,
senão com juro de 20 por cento, e então, mesmo que
se capitalizem só seis mil contos, capitalizando-os
por tal preço, ainda fica maior a soma dos juros.
Mas, Sr. presidente, ainda não está
tudo nisto, porque, embora houvesse meios para fazer
esta capitalização, ela nunca podia ser voluntária.
Com efeito, se se capitalizasse esta parte da dívida
flutuante, haveria sem dúvida uma crise comercial; e
se o Tesouro Público estivesse hoje habilitado para
dar um juro a toda essa dívida, extinguindo-se deste
modo as transações do ágio, que ora sobre ela se
fazem, tal medida havia de ser tomada como uma
calamidade, porque assim acabava um certo viver
comercial no qual até aqui estavam empregados muitos
capitais, e a que estava encostada a fortuna de muita
gente. (Rumor na câmara.)
Espantam-se? Se, instantaneamente,
todas as pessoas que têm tomado dinheiro a juros
fossem entregar os capitais que haviam pedido
emprestado, que sucederia? Uma deslocação de
interesses, uma desordem nas transações e uma variação
extraordinária nas rendas. Em Franca, numa questão
como esta, na questão da conversão do 5 por cento,
tem aparecido este fenómeno; os credores do estado opõem-se
à medida, porque lhes faz mais conta terem os seus
capitais a juro do que receberem o seu importe e
ficarem sem uma renda fundada. Pensarão acaso os Srs.
deputados que é sempre fácil empregar dinheiro, que
não muito melindroso deslocar as indústrias? Há-de
deixar-se acabar às mãos lavadas um género de comércio
no qual, debaixo de coberta enxuta e bem
acondicionado, se ganham sempre 20 por cento? É
impossível que haja alguém que largue sem custo
interesses e regalias, e em uma e outra coisa é fértil
o comércio da agiotagem, porque um rebatedor, além
de seus lucros, é dentro do seu balcão um bei de
Argel. (Riso).
Diz-se porém: «Pagando nós em
dia, acabará o valor desses papeis, e nós então os
capitalizaremos, porque o seu pequeno preço os
convidará à operação.» Bem: se vós pagais em
dia, pondes ponto; e se pondes ponto, estais no nosso
princípio; e se não pagais em dia, os papeis não se
depreciam e não podeis fazer a capitalização.
Respondei a isto. Os agiotas têm-vos cercado de toda
a parte com o seu sistema, têm-vos preso numa rede,
de modo que não é possível que vos livreis dela sem
a rasgar em alguma parte. Não tendes meios para lhes
proporcionar lucros iguais àqueles que recebem do comércio
da agiotagem, e, ainda que os tivésseis, os agiotas não
se quereriam aproveitar deles, com a pena de perderem
para sempre os seus estabelecimentos comerciais.
Sr. presidente, desenganemo-nos: não
podemos regularizar as finanças do país, sem tomar
uma medida de força. Esta minha proposição, que eu
repito bem alto, e pela qual respondo, é apoiada por
argumentos irrespondíveis, pela experiência de meio
século, e pela confissão do ilustre deputado por
Braga, que com razão se presa de ter voto nestas matérias,
e que num momento de sinceridade deixou escapar a sua
aprovação aos nossos princípios.
O Sr. GOMES DE CASTRO : - Obrigado.
O ORADOR: - O nobre deputado não
se pode ofender com esta alusão, porque, como homens
públicos, todos temos ocasiões em que é dever não
sermos sinceros; a sinceridade é sempre uma virtude
nas relações particulares, mas uma franqueza em política
pode às vezes ser um grande crime (Apoiados).
Já hoje tenho falado muitas vezes
em agiotagem, e ainda agora me vou entreter com ela:
mas antes disso sempre perguntarei ao ilustre deputado
pela Guarda porque motivo chama ele um anacronismo à
palavra agiota?
Sr. presidente, pois no século do
ágio, no século em que os agiotas são potentados,
no século em que as fortunas públicas e dos estados
lhes andam nas mãos, será anacronismo falar em
agiotas?
O Sr. J. A. DE CAMPOS: - Não aludi
à palavra, aludi ao estigma.
O ORADOR: - Ao estigma! Bem sei:
refere-se às leis da usura. Pois se elas estão
revogadas pelos poderes da terra, ainda estão
vigentes para as almas nobres; e eu hei-de ser sempre
anacrónico nos sentimentos de indignação, que voto
à classe que trafica com a miséria e com o suor de
seus semelhantes.
Eu bem sei, Sr. presidente, que já
não posso troar contra a agiotagem, porque o ilustre
deputado por Braga me roubou o meu posto, e escureceu
a minha antiga glória, depois que seu pincel flexível
nos pintou, ao mesmo tempo, Portugal nadando em delícias
na Ilha dos Amores, e os seus empregados presos às
galés em Argel, a que o ilustre deputado
engenhosamente comparou o fado de rebater soldos e
ordenados. Muito sinto que este quadro, aliás belo,
fosse injurioso para a nação, porque, se ela gozasse
de tantas fortunas, certamente não havia de tratar tão
mal os seus criados.
Sr. presidente, a agiotagem é hoje
uma conspiração; (Atenção) sim, uma conspiração,
repito! Se uma junta de paróquia pede que se não
aprovem as bases do novo sistema administrativo,
repara-se que ela faça tais representações, e
perdoa-se-lhe com caridade o seu arrojo. Se aparece
algum requerimento da guarda nacional a pedir uma
medida, que entende justa, repara-se no vestido dos
apresentantes e clama-se contra sua ousadia: mas a
agiotagem representa, a agiotagem insulta, a agiotagem
proclama, e a agiotagem insurrecciona! ... (Apoiados.)
Sr. presidente, quem, senão os
agiotas, espalhou pela guarnição da capital uma
proclamação incendiária? Foram eles que disseram à
força armada: «Vai-se fazer ponto nos pagamentos:
olhai que querem bancarrotear as vossas dívidas:
estai pois alerta.» A calúnia, aproveitando-se deste
acontecimento, lançou ao lado direito da câmara a
imputação de semelhante atentado, que ele de certo não
cometeu; eu afirmo a sua inocência, até com o meu
juramento.
Sr. presidente, a agiotagem tem
invadido todas as repartições públicas, e procurado
ilaquear todos os poderes do estado: já se atrevem a
entrar no palácio, e a atacar as prerrogativas da
coroa, pedindo a conservação de ministros!...
(Apoiados.) Que o tivesse feito alguém que não
fossem agiotas, e já sobre esse temerário teriam caído
horrorosas imprecações
A agiotagem é, pois, uma conspiração
forte e permanente; e este facto, junto aos raciocínios,
às lições da experiência e aos princípios económicos
e comerciais, que já expus, corroboram a minha
profunda convicção de que, sem uma medida violenta,
se não podem organizar as finanças públicas.
Se nós tivéssemos tido governos
com sentimento da sua dignidade, já há muito tempo
que esta conspiração teria sido esmagada, porque
nenhum governo, que conhece e preza a sua missão,
consente que haja um poder ilegal, que o reja e
domine.
Sr. presidente, os publicistas
dividem os poderes a seu bel-prazer, e marcam a sua
independência, como se tivessem sobre eles senhorio
absoluto; mas quantas vezes as nomenclaturas e as
extremas, que se acham nos livros, se baralham e
confundem na realidade dos factos! Os poderes, diz a
Constituição, são o judicial, o legislativo e o
executivo, e todos eles são independentes em suas funções.
A despeito, porém, desta determinação, os
acontecimentos ora roubam a eficácia a tais poderes,
ora os reúnem em uma só mão, ora os fraccionam e
multiplicam, porque o poder é um facto, que subjuga e
conquista a vontade da lei e a doutrina dos sábios.
Há entre nós um poder, em que a
Constituição não fala e para cuja independência não
providencia. Entretanto ele é o maior que conhecemos.
Refiro-me ao poder agiota! Tem-se ele ligado ao poder
legislativo, e esta terrível acumulação vai-nos
sendo fatal. É preciso separá-los, quanto antes.
(Riso.) Isto é uma simples teoria!... Não acho
conveniente que quem se entretém no comércio da
agiotagem seja encarregado de fazer leis.
A dificuldade toda, dizem os nobres
deputados, é pagar em dia, e sem isto a operação
lembrada pela minoria da comissão há-de ser
desastrosa.» Vamos averiguar este ponto, porque se
tem com ele iludido muita gente. Eu, que acredito nos
orçamentos, vejo que não existe tal dificuldade; e
vou prová-lo. O Sr. Manuel António de Carvalho pede
para a despesa de cada mês 600 contos; multiplicando
eu (e sei multiplicar muito mal) esta quantia por 12
meses, obtenho em resultado 7:200 contos. Observo que
há quatro artigos de rendimento no nosso orçamento:
próprios, impostos directos, impostos indirectos e
rendimentos diversos. A verba proveniente dos próprios
não a considero, porque em atenção a mui diversas
razões é prudente acreditar que algumas das parcelas
que a compõem se não realizarão, e que outras, ao
menos, não produzirão toda a cifra em que estão
previstas no orçamento; entretanto este artigo
importa em réis 384.787$523, quantia que eu diminuo
do cômputo da receita pública para este meu cálculo.
Segue-se o segundo artigo, impostos directos, que
importa em 2.393:932$510 réis; no terceiro, impostos
indirectos, há 4.042:082$007 reis; e no quarto,
diversos rendimentos, há 1.400:814$193 reis. Somando
todas estas parcelas, acho 8.281:616$233 reis. Ora o
Sr. ministro pede 7:200 contos. Por consequência, é
inquestionável que, se separarmos a despesa corrente
da despesa atrasada, podemos pagar em dia, e ainda nos
sobram meios, porque a cifra pedida pelo Sr. ministro
da fazenda é menor que o total dos nossos
rendimentos, calculados pelo mínimo. Mas objecta-se
ainda: «Põe-se ponto, e o ponto é imoral. Oh! Sr.
presidente, eu já aqui desenrolei a negra lista das
nossas bancarrotas; não há administração que as não
tenha feito, e de toda a espécie (apoiados); fez-se
bancarrota em nome da Carta, bancarrota em nome da
Revolução, e bancarrota em nome da Ordem. (Riso). A
administração da Carta fez bancarrota formal sobre a
dívida de 33, bancarrota sobre o papel moeda,
bancarrota na conversão do 4 por cento, e bancarrota
com milhares de indivíduos, cujos créditos, por
diversos pretextos, deixou de considerar. A administração
patriota fez bancarrota sobre os títulos azuis e
decretou uma conversão forçada. O ministério da
Ordem foi o mais bancarroteiro (riso): bancarroteou
solenemente a dívida externa, e depois por simples
portarias fez umas poucas de bancarrotas mais
pequenas. Primeiro, mandou pagar um mês indistinto.
Este expediente, baralhando toda a contabilidade,
tornando impossível a prestação de contas, fez
sobre a praça toda a impressão aterradora duma cessação
de pagamentos, e levantou o preço de todos os
descontos, de modo que prejudicou todos os
estipendiados do estado, e meteu a desordem na
administração sem dar nenhuma das vantagens, que
daqui se poderiam colher. Depois disto, mandou-se
suspender o pagamento do mês indistinto, e
determinou-se que daí em diante se pagasse um mês de
36 e outro de 37. Finalmente, houve ordem para cessar
este sistema de pagamentos e começar a pagar de
Janeiro de 1838 em diante.
Eis aqui como o governo, por
portarias, sem sistema, sem um grande fim de
utilidade, sem ter em vista um grande princípio orgânico,
tem feito diversas cessações de pagamentos. E o
corpo legislativo, poderoso por sua missão, obrigado
pelo seu mandato, instruído pelos factos, recua para
salvar o país diante de um fantasma, que o executivo
tem muitas vezes acometido por capricho, por
patronato, e porventura por interesse de seus
ministros; porque há quem diga que alguns ministros têm
regulado os pagamentos de modo que recebam com prontidão
os seus ordenados.
Mas o crédito público?! O crédito
é um meio de existência para as nações; elas
procuram ter crédito para viver, e não vivem para
ter crédito.. Um inglês, que quebrou, desforra-se
das injúrias da sorte, dando um tiro em si. Então
querem que o país se suicide por não poder pagar as
suas dívidas? Querem que a nação portuguesa se
deixe tomar da hipocondria britânica?
Perguntou um ilustre deputado se o
fazer ponto seria um remédio universal. Não será;
mas confundir a noção de empréstimos com a de
antecipações, discorrer epigramaticamente sobre
todos os projectos de fazenda, e envolver todos os
princípios orgânicos de administração em sofismas
desgraçados, certamente não é um remédio
universal, e entretanto o ilustre deputado receitou-o
como tal para os nossos apuros financeiros.
O mesmo ilustre deputado interpelou
também a minoria da comissão pelo modo seguinte: «Porque
motivo não capitalizais vós?» - Sr. presidente,
este argumento é um triunfo para nós; o ilustre
deputado que em 39 nos diz: «Se não capitalizais,
fazeis bancarrota», em 38 dizia-nos: «Se
capitalizais cobris-vos de imoralidade, e faltais à fé
dos contratos!» - Eis aqui como a inconsequência
presta homenagem à verdade. Não capitalizamos, Sr.
presidente, porque, além de outras considerações,
temos muito presentes as doutrinas que ouvimos ao
ilustre deputado, quando se assentava naquelas
cadeiras (apontando para o banco dos ministros); não
capitalizamos, porque temos dinheiro para pagar. É
sabido que se capitaliza uma dívida, quando se não
pode pagar o seu importe; mas a minoria da comissão dá
ao governo meios para pagar parte da dívida atrasada,
e só depois de esgotados esses meios é que pode ter
lugar a capitalização para a que restar; de modo que
a capitalização, segundo o sistema da minoria da
comissão, é uma operação ulterior, para a qual
ainda não chegou o ensejo.
Ainda o mesmo ilustre deputado nos
argui de que descapitalizamos essa dívida.
Descapitalizamos, sim, porque lhe tiramos um juro de
vinte por cento, que está recebendo, não pela Junta
do Crédito Público, mas pela bolsa dos empregados;
descapitalizamos, sim, porque lhe tiramos o privilégio
de juntar, a lucros imoderados, a abjecção dos
servidores do estado e a escravidão do governo;
descapitalizamos, sim, porque lhe revogamos o
contracto nefando, que ela tem feito com a miséria pública
e a pomos debaixo da lei comum. E como se diz que nós
descapitalizamos esta dívida, se lhe damos um juro de
cinco por cento? Isto não é argumentar, é negar
factos.
Disse também o ilustre deputado
que «com o projecto da minoria da comissão se
prepara à agiotagem um carro triunfal.» Oh! Sr.
presidente, pergunte-se à agiotagem se ela quer
triunfar deste modo; tome-a o ilustre deputado pela mão,
alcatife-lhe a estrada de rosas, aplane-lhe o acesso
para esse carro de triunfo, e veremos se a leva lá!...
Como pôde o ilustre deputado conceber que a agiotagem
vai aumentar com o projecto da minoria da comissão?
Como pôde o ilustre deputado chegar à mansão onde
repousa a dívida sossegada, perturbar o silêncio dos
seus túmulos com o bulício das praças de comércio,
e ver aí, com essa dívida morta, transações mais
fortes e repetidas do que há com a dívida viva?
Segundo o sistema da minoria da comissão, a dívida
atrasada há-de ser parte paga, parte capitalizada;
uma não torna mais a figurar na praça, e a outra
figura como fundos do governo, podendo por consequência,
sem dano público, fazer-se sobre ela todas as transações
que se quiser. Onde está aqui o aumento de agiotagem?
A agiotagem prejudicial à administração pública,
destruidora da prosperidade geral, é a que se faz
sobre os ordenados dos servidores do estado; contra
esta é que se dirigem todas as minhas considerações;
a outra sossegue, tenha vida, medre, que não lhe
queremos mal por isso. Pagamento regular e pontual a
todos os servidores públicos, e agiotem como
quiserem. Para conseguir este grande fim queria eu,
sim, que entre o nosso passado e futuro financeiro se
levantasse um Adamastor, tão terrível como o pinta o
nosso poeta. E, assim mesmo, haveria Gamas corajosos,
que passassem o Cabo das Tormentas, para devastarem os
campos que devem sustentar as gerações futuras,
deixando a actual entregue à miséria, à baixeza e
à perdição!
O Sr. deputado exclamou para a
minoria da comissão: «Vós ides consumir a dotação
da Junta do Crédito Público, que sustenta o crédito
aos papeis da dívida atrasada, e além disto acabais
com os meios de fazer uma capitalização geral.» Sr.
presidente, aqui há uma falsidade de facto, uma
contradição manifesta e um sofisma perigoso. Para
destruir esta falsidade, não me foi possível
apresentar documentos irrefragáveis; mas correndo a
folha comercial, que está ao alcance de todos,
conhece-se perfeitamente que a nossa dívida flutuante
não aumentou nem diminuiu de valor no mercado com a
dotação da Junta do Crédito Público. Os soldos dos
reformados, o montepio das viuvas, os ordenados dos
empregados públicos não são rebatidos com menor
desconto, depois que nos cofres da Junta entram mais
alguns contos de réis. Para este efeito, a larga dotação
que lhe fizeram as Cortes Constituintes foi inútil, e
o crédito da Junta é um facto isolado, que nada
influi sobre os valores da dívida flutuante; os
papeis que a representam só melhoram de condição
com a probabilidade de alguma operação mista, e
ainda que a intentada agora tenha por fundamento o
remanescente da Junta do Crédito Público, sempre ela
se faria independente de tal circunstância, porque
para isso se antecipariam talvez as rendas públicas,
como foi costume por muito tempo.
Pelo que toca à impossibilidade da
capitalização da dívida flutuante pelo valor dos
papeis no mercado, impossibilidade resultante da
aplicação que agora damos ao remanescente da Junta
do Crédito Público, convém observar que só o anúncio
desta operação, em que o Sr. deputado falou, fez
baixar logo o preço de todos os papeis. E este
efeito, para evitar o qual o Sr. deputado ainda há
pouco queria que se conservasse intacta a dotação da
Junta do Crédito Público, aparece agora motivado
pela aplicação que a essa dotação quer dar. De
modo que s. s.ª, temendo o descrédito da dívida
flutuante, propõe uma operação financeira que dá,
como resultado infalível, este mesmo descrédito.
Não se quer que se ponha ponto, porque se quer
capitalizar; mas combate-se o ponto, e não se
apresenta a capitalização. Não consumais, em
atormentar o monstro, parte do veneno, que eu quero-o
todo para o matar. Nunca se intenta essa morte
anunciada, e ele livra-se sempre do tormento que lhe
preparam. Se o ilustre deputado apresenta a capitalização
como um princípio efectivo, como uma medida a votar,
nós desprezamos já todos os nossos projectos, e abraçamos
a sua ideia; mas se a apresenta como uma esperança
num futuro incerto, não podemos subordinar o grito
das nossas consciências às casualidades do tempo.
Notou ainda o ilustre deputado que
as Cortes Constituintes puseram o preceito de se não
antecipar mais, e que nós desde então não
antecipamos. (Nisto sejam dados louvores ao Sr.
ministro da fazenda, que tomou por artigo da mais
santa superstição esta grande resolução
financeira.) Mas acrescentou s. s.ª que também havia
outro preceito, igualmente importante e sancionado
pelo Congresso Constituinte, que era o de não fazer
empréstimos, preceito que nós agora transgredíamos;
e que, sempre que, nestes grandes princípios, se
faziam algumas distinções, estava tudo perdido. Sr.
presidente, este princípio do ilustre deputado é o
que de mais absurdo aqui se tem formulado. Qualquer
doutrina, por mais justa que seja, sendo
invariavelmente seguida nos negócios públicos, há-de
dar péssimos resultados e comprometer as suas próprias
exigências; há-de assassinar a moral em nome da
moral e sacrificar a palavras a prosperidade pública.
Tal doutrina importaria uma opressão tirânica sobre
os factos, sobre os homens e sobre as cousas; seria
finalmente um fatalismo político, mil vezes mais
pernicioso que o fatalismo filosófico; porque até o
homicídio, que é um grande crime, é às vezes um
dever. Segundo a sintaxe do padre António Pereira, só
a regra dos nominativos não tem excepção, e em
finanças não há sintaxe, nem nominativos.
Mas o projecto da minoria da comissão,
dizem, não aumenta, nem diminui a despesa. Não
diminui a despesa?! Oh! Sr. presidente, diminui
visivelmente dois mil contos! Esta quantia, que o
nosso projecto dá, vai ser empregada em alguma cousa;
não há operação de fazenda que não dê um
resultado, aliás ninguém a entenderia. Todo o mundo
compreende que não deve alienar os seus capitais, sem
um interesse conhecido. O que se procura saber, nestas
negociações, é as que são mais vantajosas, aquelas
em que se perde menos ou se ganha mais. Os mesmos
tributos são uma perda para os que os pagam; mas
perdem este caracter, se as vantagens governativas
valem os sacrifícios que eles exigem. Deste modo é
que deve ser avaliado o projecto da minoria da comissão;
aliena rendimento, como toda a operação financeira,
mas não se pode rejeitar por uma qualidade que é
comum a todos os projectos desta espécie.
Disse mais o ilustre deputado que
todas as rendas Públicas são do estado, e que a
distinção entre rendimento da Junta do Crédito Público
e rendimento do tesouro é pueril. Concordo em tese;
mas também é certo que depois que se estabelecem
estas diferenças por leis, e se constituem dotações
especiais destinadas para diversos fins e consignadas
a diferentes repartições, não é conveniente
confundi-las. Não se tirem fundos da Junta do Crédito
Público para as despesas Correntes, mas não se
cerceiem também os rendimentos das despesas correntes
para pagar com eles os encargos da Junta. Assim, não
lhe darei eu os cinquenta contos da urzela e só esta
exigência do projecto da maioria da comissão seria
bastante para eu o rejeitar. Declaro até com
franqueza que desejava muito conquistar as somas que
se acham na Junta do Crédito Público, para as
aplicar às despesas correntes, porque quaisquer que
sejam as apregoadas, mas desconhecidas vantagens dessa
rica instituição, não vejo que ela seja profícua
ao primeiro objecto de fazenda - o sustento dos que
trabalham. A Junta lá tem o novo tributo do tabaco, o
imposto adicional sobre as Ilhas, e todos os mais
rendimentos que as Cortes Constituintes lhe
decretaram, e que já tem percebido; contente-se com
isto, mas não venha ainda buscar o que pertence aos
empregados.
Sr. presidente, a nossa questão de
fazenda está reduzida aos termos seguintes: temos
meios para pagar toda a despesa corrente, mas não
chegam para amortizar a dívida flutuante; ou o Serviço
público nunca será pago em dia, ou para o conseguir
se há-de tomar uma medida violenta. Eis aqui a minha
proposição, e ela assenta sobre a teoria, sobre os
factos e sobre a história das nossas finanças.
Agora, Sr. presidente, se não se
quer ponderar estas considerações radicais, se os
espíritos não estão dispostos a profundar o
assunto, se há temor de carregar com a
responsabilidade de grandes medidas, e se a questão,
por qualquer destes motivos, se reduz a autorizar o
governo a levantar fundos, - então ela torna-se mais
fácil; e sobre ela farei também algumas reflexões.
Antes de entrar na matéria, não
posso deixar de combater um erro económico e uma
falsa teoria, que emitiu o ilustre deputado por Braga.
Sustentou s. s.ª, redarguindo ao Sr. Sá Nogueira,
que não havia inconveniente em dar livre faculdade a
cada um de emitir papeis de crédito, sem fiscalização
do governo, e que, tendo-se o mesmo Sr. deputado
pronunciado pela maior admissão dos que existem na
operação projectada, era contraditório consigo
mesmo querendo restringir os meios de os multiplicar.
Sr. presidente, a necessidade de
representar os valores reais das trocas no comércio
tem limites, e, passados eles, este meio felicíssimo
de operar transações torna-se um princípio de descrédito,
de desconfiança e desorganização no sistema monetário.
Os canais da circulação têm dimensões certas, e o
movimento, que por eles se faz, está naturalmente
marcado pela sua capacidade; quando se abusa dos meios
representativos do valor, ou esses canais se
engorgitam, ou sobrepujam os papeis, que neles se
introduzem; em um e outro caso verifica-se um grave
desarranjo na economia social. De sorte que dar a um
corpo ou indivíduo o direito ilimitado de emitir
papeis de crédito, seria depositar nas suas mãos a
sorte das fortunas privadas, e entregar-lhe as chaves
dos cofres públicos.
Quando se apresentou no Congresso
Constituinte um projecto para emitir papel com curso
forçado, qual foi a razão por que o Banco, cuja perícia
comercial eu reconheço, e que o nobre deputado com
justiça elogia, representou tão energicamente contra
essa medida? Foi porque, reconhecendo os princípios
que lembrei, previu que o papel emitido pelo governo
ia expelir da circulação muitas das suas notas, e
obrigá-lo a pagamentos em numerário por quantias que
ele não queria ou não podia gastar. Deste modo, o
abuso que o Banco tem feito da emissão de notas
obrigou-o a levantar-se contra uma medida do governo,
no exercício de seu poder legítimo. E isto prova que
o governo não pode ser privado do direito de sindicar
estes abusos, para que as suas faculdades ordinárias
não sejam cerceadas, ou não esteja reduzido ao apuro
de usar delas, sem pôr em risco a sorte de um
estabelecimento respeitável, à sombra do qual
repousam muitas fortunas.
Para que havemos, porém, de
meter-nos em argumentações de economia política,
quando o ponto controvertido está decidido pela nossa
legislação? Aqui está a lei do Banco (leu-a.) Não
fixa este artigo a quantia até à qual o Banco pode
emitir letras, mas reconhece ao governo o direito de
fiscalizar essa emissão no próprio interesse do
Banco. O governo pode dizer aos directores deste
estabelecimento: «Vós, como cabeças deste corpo,
estais sujeitos para o desempenho das obrigações,
que nessa qualidade vos incumbem, à lei que o criou,
e esta lei dá-me a faculdade de sindicar o uso que
fazeis de alguns dos arbítrios que ela vos concede;
mostrai-me pois as vossas contas, porque quero saber
se tendes abusado das vossas regalias. As fortunas
particulares, que se reuniram debaixo da vossa discrição,
foram aí chamadas por uma lei, e a lei não pode
deixar de as proteger.»
Em Inglaterra é proibido ao Banco,
pela reforma do seu código, que há poucos anos
apareceu depois dos mais profundos e valiosos
trabalhos sobre este assunto económico, emitir letras
além de uma quantia certa nele determinada, e o
cumprimento desta determinação verifica-se por meio
de investigações periódicas, que o governo manda
fazer naquele estabelecimento.
Já agora, leio outro artigo da lei
do Banco (leu.) Aqui terminantemente se declara que não
poderá o Banco fazer empréstimo ao governo sem
autorização das cortes. E quantos empréstimos tem o
governo contraído com ele sem esta autorização? E
que se tem seguido daqui? Que o governo, tendo
recebido favores do Banco, não tem força para fazer
executar a lei contra o Banco.
Pelo que toca à faculdade de
emitir notas concedida a particulares, essa também é
absolutamente proibida pelo código comercial.
Até aqui o erro económico.
Pretender que todo o mundo possa
emitir papeis de crédito, porque convém ter muitos
papeis de crédito para sobre eles fazer operações
de fazenda, é o mesmo que sancionar o princípio que
todos devem cunhar moeda para haver muito dinheiro.
Esta era a falsa teoria, a que me referi, e tão
falsa, que não precisa maior refutação.
Os meios propostos para se realizar
a autorização que se dá ao governo, são a emissão
de bilhetes sobre as décimas, o contrato de
adiantamento sobre eles, e finalmente a operação
existente.
O
ilustre deputado pela Guarda disse que a emissão
de papeis é um belo recurso, porque depende só do
governo. Que quer isto dizer? Se esta expressão se
toma no seu sentido literal, se por emitir papeis se
entende o lançá-los fora, despejá-los da janela
abaixo, esta operação nem mesmo depende do governo,
mas de qualquer contínuo, ou criado da secretaria...
Mas se a emissão de bilhetes quer dizer representação
de numerário, com pequena diferença do valor que
representa - então há que cuidar nos meios de os
acreditar; e isto não é fácil. Entretanto, não
rejeito absolutamente este recurso, porque a sua
proficuidade é atestada pelos factos.
A operação dos exchequer bils foi
excelente, e ela provou que quando nós estivermos no
nosso estado normal, ou nos tivermos aproximado mais
dele, e tiver desaparecido do mercado essa
multiplicidade de papeis, que o inundam, a antecipação
de créditos sobre os rendimentos de cada ano há-de
dar bom resultado. Quando por toda a parte se clamava:
bancarrota! quando tudo se encontrava num estado
indefinido e vacilante, e a guerra civil tinha apenas
acabado, sem acabar a probabilidade de a ver renascer
em breve, emitiram-se 500 contos de exchequer bils
sobre as décimas, e ao princípio desceram bastante;
mas depois que entraram a generalizar-se, e se
conheceu a efectividade da sua amortização, chegaram
até ao par não obstante as circunstâncias em que
esta operação foi intentada. A questão, porém, não
é esta: não
se trata de saber se estes papeis hão-de ter
desconto, mas se os empregados, que os hão-de
receber, os poderão negociar com menos perda do que a
que sofrem com a venda de seus recibos. A perda é
certa num e noutro caso; onde for menos, aí está a
vantagem.
A emissão das letras da companhia
Confiança é verdade que foi desastrosa. Eu não
tocaria neste objecto se sobre ele não tivesse uma
questão reservada com o Sr. deputado por Leiria, e não
visse que ele sacrifica cruamente o crédito da
associação, em que tão distintamente figura, às
exigências da sua actual posição parlamentar. No
meu primeiro ensaio oratório sobre finanças,
profetizei eu que as letras do Contrato do Tabaco
teriam sempre muito melhor preço que as da companhia
Confiança, e por isso insisti em que no contrato, que
com ela se fez, entrasse o maior número possível
daqueles créditos: o ilustre deputado, então
comissionado pelo Banco, contestou a minha proposição,
e asseverou que os factos a convenceriam de falsa,
prognosticando por esta ocasião a maior fortuna
mercantil às letras da companhia. Eis aqui o que
aconteceu: o Sr. João de Oliveira, carecendo de numerário,
dispôs de doze contos de reis das letras da companhia
e pagou com elas as pensões atrasadas a uma augusta
personagem, que empreendia uma viagem para visitar sua
família; e, como no país, onde se dirigia essa
personagem, era desconhecida a firma da companhia
Confiança, ela mandou as letras à praça e não
achou quem lhas negociasse. A companhia, vendo-se
assim ameaçada de ruína, apertou as mãos na cabeça,
e rogou ao governo que não emitisse mais letras,
porque não havia quem lhas quisesse: e se ao Sr. João
de Oliveira se não seguisse o actual ministro da
fazenda, que não é tão arrebatado em finanças,
certamente ela passaria por uma quebra formal e
vergonhosa. (O Sr. Roma faz sinais negativos). O facto
é que as letras da companhia foram à praça, e que
foi preciso recolhê-las, porque ninguém as conhecia,
e neste mesmo tempo as do Contrato estavam ao par, e não
havia quem as vendesse. Isto é incontestável, e isto
basta para o meu propósito.
O contrato das décimas tem grandes
inconvenientes, e não é possível fazê-lo sem que
se sancione uma usurpação das atribuições
governativas. E tal usurpação é, em todo o caso,
inadmissível: porque antes ter governo pobre, do que
governo governado.
A emissão de bilhetes, no número
que é indispensável para a operação que se
projecta, tem o inconveniente do descrédito: e a
ideia de lhe sustentar o valor no mercado à custa da
dotação da Junta do Crédito Público não é das
mais felizes.
Pois nós pagamos a cobrança dos
nossos tributos por um preço exorbitantíssimo, temos
no orçamento setenta e tantos contos só para as
despesas do lançamento da décima, e ainda para o
mesmo fim havemos de sacrificar alguma cousa do
rendimento da Junta do Crédito Público?!
Eu não saio desta câmara (e
hei-de sair no fim do mês) sem ter apresentado uma
indicação para se recomendar ao governo que, na
legislatura próxima, apresente uma lei geral de
cobrança de fazenda, que remedeie os conhecidos vícios
do sistema que actualmente temos. Uma igual recomendação
sobre obras públicas fez a Constituinte por proposta
minha, mas o ministério passado não a atendeu. Em
Inglaterra, quando as câmaras querem despertar a atenção
do governo sobre algum objecto de interesse público,
fazem mensagens à coroa. Nós não temos esse uso;
mas é preciso que a estas moções se dê por
qualquer modo a consideração que merecem, e que o
governo seja compelido dentro dos termos
constitucionais a dar-lhes atenção.
A operação sobre a décima, de
qualquer modo que se queira efectuar, tem pois
bastantes inconvenientes. Agora vamos à do empréstimo
ou operação mista.
Com efeito, parece-me que se não
pode realizar esse empréstimo na sua totalidade. Pelo
mapa n.º 17 do orçamento, vejo que se tem
amortizado, desde Setembro de 36 para cá, da dívida
às classes inactivas, novecentos e cinquenta contos.
O Sr. Manuel António de Carvalho, no pequeno orçamento
que agora apresentou, pede para as classes inactivas
cinquenta e oito contos mensais; desde Setembro de 36
até Junho próximo vão trinta e três meses, que,
multiplicados por cinquenta e oito contos, dão mil
novecentos e catorze contos. Esta soma é a dívida
total das classes inactivas de Setembro para cá: dela
tem-se amortizado novecentos e cinquenta contos, como
disse; portanto, restam novecentos e sessenta e quatro
contos, e estes pelo seu preço são os únicos que
podem entrar na operação. Mas para a mutuar na sua
totalidade são precisos mais valores desta espécie,
e já se vê que os não há, e que por este motivo
ela não é realizável. Diz-se que correm outros
papeis no mercado que têm o preço da dívida das
classes inactivas; estes, porém, que não são
muitos, não estão todos em Lisboa, e por este e
muitos outros motivos não podem entrar na transacção.
Depois destas ponderações,
ocorreu-me uma observação capital, sobre que
fundamento a minha opinião. Se se quer a concorrência
de todos os papeis no empréstimo projectado, para que
o governo faça uma operação vantajosa, porque
motivo para o mesmo fim se não há-de sancionar a
concorrência de todos os sistemas? Se o governo pode
realizar com mais vantagem os fundos de que carece,
jogando com os interesses dos diversos possuidores de
papeis, porque não há-de alcançar essa vantagem
jogando com os interesses dos que se acham afeiçoados
aos diversos meios que se propõem para realizar a
transação de que se trata? Sendo o governo
autorizado a usar promiscuamente de todos os arbítrios
que aqui se tem lembrado, até realizar a quantia que
se lhe votar, não fica ele assaz livre como
contratador, sem deixar de ficar assaz restrito como
poder? Eis aqui a que se reduzem as minhas ideias;
pelo que toca à autorização do governo, é dar-lhe
o arbítrio para realizar até esta quantia, ou pela
emissão de bilhetes sobre as décimas, ou pela operação
mista sobre a Junta do Crédito Público. (Apoiado).
Isto é o que me parece conveniente; ainda mais, o que
me parece indispensável depois da discussão que
temos presenciado. Um ilustre deputado diz: «A operação
mista é muito fácil, porque há papeis de diferentes
espécies que querem concorrer a ela.» Diz outro: «O
empréstimo não é realizável». Um argumenta que «a
emissão de bilhetes é impossível.» Redargue outro
que «hão-de concorrer como dinheiro.» A conclusão
que eu tirei de tudo isto é que nenhum destes
sistemas é eficaz, e que só a sua reunião poderá
dar ao governo os meios de que ele carece. Contudo,
esta conclusão pertence à câmara, é filha da
discussão, porque os discursos dos diversos oradores,
destruindo-se reciprocamente, têm prejudicado todas
as proposições que queriam sustentar.
O governo usará, pois, de um ou
outro sistema, ou de ambos promiscuamente, conforme o
aconselharem os interesses da fazenda. Esta ideia
tinha eu já comunicado ao ilustres deputado o Sr. José
da Silva Carvalho, e ele concordou com ela.
A questão dos papeis que devem
entrar na operação é secundária; mas, a respeito
dos mil e dez contos, tenho a observar que parte dessa
dívida é para mim sacratíssima, - para mim que não
tenho parcialidades financeiras, para mim que não sei
julgar as dívidas do estado pelo seu calendário. Sr.
presidente, a dívida de soldos e ordenados anteriores
a 28 é essencialmente legal, e nada tem com a data do
empréstimo, em que figurou: assim, a necessidade de a
considerar como tal foi reconhecida no orçamento do
Sr. Francisco António de Campos, e no do Sr. Silva
Carvalho, e no de todos os ministros da fazenda que
temos tido; e comparar a validade de um papel de crédito
com a legalidade de uma forca, e o lago de sangue que
cerca os patíbulos com a praça
em que circulam papeis, é um abuso notável de retórica!
Sr.
presidente, não há governo possível neste país,
sem que tome por base de seu sistema governativo a
organização das finanças. (Apoiado). Esta é uma
verdade de teoria e experiência, e nela está escrita
a sorte que nos espera. Com efeito, seja escrava ou
livre a urna, esteja ou não cercada de punhais, sejam
falsas ou verdadeiras todas as pinturas que do nosso
estado político se tem feito, é certo que havemos
todos de ser repelidos vergonhosamente pelo país, se
prolongarmos a decepção financeira que as nossas
administrações lhe têm causado; porque o país já
conhece os seus males, e só acredita em realidades.
Que se há-de dizer de uns poucos de homens, que vão
em todos os períodos eleitorais inquietar o país com
solicitações, subornos e promessas, e que, honrados
com a confiança de seus concidadãos, deixam já por
costume sem discussão os orçamentos da despesa pública?
Que confiança pode ter a doutrina, cujos apóstolos
professam tão descaradamente a fraude?!
Sr.
presidente, continuando assim, se não se verificar o
anunciado consórcio do despotismo com a bancarrota, a cujas núpcias
eu não queria assistir, há-de ele, mesmo ainda
solteiro, pôr-nos o pé no pescoço, exprobrar-nos a
nossa vergonhosa hipocrisia, e alardear, como
resultado dela, o seu horrível triunfo.
Sr. presidente, este país é rico,
tem muitos recursos; mas o seu tesouro inesgotável -
é a paciência!
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