DISCURSO DO DR. AUGUSTO DE CASTRO
O Sr. Dr. Augusto de Castro começou o seu discurso por justificar
a insistência com que procurou recusar-se à aceitação
do honroso convite para usar da palavra naquela sessão
comemorativa, pois, a seu ver, só um tribuno poderia
enaltecer dignamente, pelo prestígio da eloquência,
a gloriosa memória desse que foi o grande tribuno romântico
de Portugal, o mais fulgurante dos oradores
portugueses de todos os tempos.
Depois de definir a Eloquência e lembrar, numa síntese magnífica,
como a faculdade especial de receptividade e de
repercussão, que faz da palavra humana um instrumento
criador e musical de imagens e emoções, é um
produto das primeiras vibrações para sempre geradas
na alma, o orador acentuou a circunstância de a
persistência do convite lhe ter recordado as suas
obrigações de filho espiritual daquela região. E
evocando os seus antepassados, linhagem de homens que
ilustram Aveiro; evocando tudo - disse - «o que, nas
primeiras imagens da minha vida, me liga em amor, em
saudade e em filial enlevo a estes horizontes, onde,
numa capela florida de aldeia, aprendi a amar Deus com
modéstia, a Pátria com orgulho e a Vida com alegria»;
declarando obedecer às razões sentimentais que mais
fundo calam no espírito, o Sr. Dr. Augusto de Castro
afirmou:
«Eu posso compreender o que, no génio e na alma de José Estêvão,
pertence ao génio, à natureza e à alma da terra
aveirense, porque colhi essas imagens, como ele, na
inspiração e no culto da minha infância. Esse
passado nele foi uma floresta; em mim, foi apenas
canteiro dum pequeno jardim. E em nome desse passado -
Aveiro dos meus primeiros anos, Aveiro da aldeia em
que fui criado, Aveiro dos meus pais e meus avós -,
é em nome dessas raízes do coração e dessa herança
que venho aqui falar.»
O ORADOR É A PALAVRA E É O HOMEM. E É COM O HOMEM QUE A MAGIA DA PALAVRA FALADA VIVE E MORRE
Prosseguindo, o Sr. Dr. Augusto de Castro disse:
«José Estêvão foi a voz impetuosa, fremente, lírica -
vendaval, clarão, rubra chama, doce
harmonia - de tudo o quanto nesta inquieta
fulgurante alma da luminosa região aveirense,
paisagem de açudes, de marés, de pinhais, de
socalcos, de vinhedos, murmurantes sombras e apoteose,
verde e viva, de planície, de salgueiros, de
ribeiros, de praias - de tudo o quanto neste clima e
nesta paisagem é expressão da natureza, graça,
fogo, rudes campos, seiva da terra, claros montes,
rugido do mar, extensão de areais e colinas -, de
tudo quanto no florido, por vezes encapelado e
ardente, horizonte de Aveiro é glória e batalha de
luz, feitiço de água, paixão, sinfonia e
deslumbramento de cor, claridade musical e empolgante
do Espaço.
Por todos os títulos do nascimento, das origens familiares, do
sangue e da vocação, José Estêvão foi um
aveirense, e até à morte ficou português de Aveiro,
como a eloquência de Mirabeau foi sempre a imagem e o
espelho das areias e dos abismos do Loire em que
nasceu, como António Cândido bebeu nas fontes e nas
cascatas do Marão essa poesia da contemplação e a
majestade da distância, que foram o dom supremo da
sua eloquência.»
E acrescentou:
«A glória de um grande orador é efémera - porque a sua projecção,
feita de actualidade e de prestígio, viva e momentânea,
é feita de um conjunto de qualidades, de dons
pessoais de presença, de sugestão verbal, em que,
desde a emoção da palavra até aos efeitos da dicção
e do gesto, desde o fulgor do texto até ao calor da
inspiração, tudo se associa para o prodígio da criação
viva da eloquência.
A oratória é, de todas as formas literárias ou estéticas, a única
que, como uma fonte borbulha, fio de água que corre
torrente que se precipita, dando a ilusão de brotar e
nascer à nossa vista, e se perde e morre no eco
passageiro da sua própria gestação - maravilha de
transmutação, de irradiação e de fusão humanas.
Íntegra, actual, só a memória dos contemporâneos a perpetua. Um
discurso - não é apenas o tema e a oração - é
também o orador. Como a fama dos grandes actores, a
imortalidade da palavra falada só se repercute através
dos auditórios e da lembrança dos seus contemporâneos.
O discurso publicado constitui sempre uma pálida e
incompleta reprodução do milagre da sua criação e
da vibração humana que o gerou. Há uma fonogenia na
voz, como há uma misteriosa fotogenia física. Briand
empolgava as assembleias de Genebra, falando numa língua
que uma grande parte dos seus auditores não percebia.
A voz do cantor como a do tribuno possui estranhos segredos
emotivos, inexplicáveis sortilégios psíquicos que
ultrapassam todos os valores e todas as escalas do som
e todos os recursos da harmonia da palavra. E, além
da impressão, quase plástica, da voz, há, no
mecanismo da eloquência, uma verdadeira irradiação
da figura e da presença do orador, a evocação e
sugestão do gesto, todo o palco e cenário, que são
também instintivos instrumentos de prestígio oratório.
A posteridade de Demóstenes ou de Cícero pertence a uma tradição
só indirecta e reflexa. Nenhum de nós ouviu Garrett,
ouviu Passos Manuel, ouviu Bossuet. Ler o padre António
Vieira não pode ser comparável a tê-lo ouvido. Eu
ainda ouvi António Cândido, ainda ouvi António José
de Almeida, José de Alpoim, João Arroio, João
Franco, Alexandre Braga, Leonardo Coimbra, que foram
grandes oradores do meu tempo, e ainda posso ouvir
Cunha Leal, derradeiro abencerragem dessa tradição
oratória. E conservo essa impressão tanto na memória
do meu espírito como na memória dos meus olhos e dos
meus ouvidos. Não posso separar nenhuma dessas
representações e imagens. O orador é a palavra - e
é o homem. E é com o homem que a magia da palavra
falada vive e morre.
EVOCAÇÃO DO GÉNIO ORATÓRIO DE JOSÉ ESTÊVÃO
É impossível evocar o génio oratório de José Estêvão apenas
pelo texto literário de algumas das monumentais peças
oratórias que estão reunidas nas colectâneas dos
seus discursos. A palavra escrita não pode transmitir
a vibração ardente e viva, torrente sobre-humana do
empolgante génio verbal, como uma labareda que
tremula, cresce, se transforma em relâmpago e
tempestade, se espraia, ondula como um fogacho de luz,
se precipita em clarão, se alonga, cresce, se apaga
no horizonte e morre em cinza, ainda incandescente e
palpitante.
É preciso ressuscitar o tribuno, a sua figura tocada pela auréola
do milagre criador. É preciso, pela imaginação,
reviver a apoteose, o momento emotivo de que a palavra
foi apenas o esplendor e o eco; recriar o cenário, a
comunicação psíquica que produziram o incêndio, a
explosão de que o orador foi apenas o prolongamento e
a centelha.
É preciso, quando se recorda José Estêvão, ressuscitar aquela
tarde célebre de 13 de Fevereiro de 1840, quando o
orador entrou na sala do Parlamento para responder a
Garrett, que falara na véspera.
José Estêvão tinha 31 anos. O seu grande renome ia apenas começar.
Garrett era, sob o manto do seu esplendor literário,
então no apogeu, o maior orador da Câmara. A palavra
de José Estêvão começa com um murmúrio, toma
asas, ressoa na sala ainda fremente da oração de
Garrett, na véspera. À expectativa segue-se a
surpresa, o entusiasmo. Ao mármore do génio do autor
de «D. Branca» e das «Viagens na Minha Terra»
segue-se a palavra, já moldada em bronze, do novo
tribuno, que trazia da chama dos areais e das colinas
da sua terra natal o rubro e sonoro ardor. A sala
ouve-o e aclama-o, Garrett abraça-o. Nascera em
Portugal a maior voz do seu tempo.
É impossível falar de José Estêvão sem ressurgir também a memória
dessa tarde histórica em que, na sala de sessões do
Parlamento português, se viu erguer-se a figura
majestosa do grande orador e pedir a palavra para
pronunciar o seu célebre
discurso do Porto Pireu.
A soberba cabeça do tribuno, o seu olhar, em que
perpassavam por vezes lampejos de águia, tinha o
fulgor dos grandes lances humanos. Mais do que um
homem que se erguia, era uma força da natureza
irrompendo, dominadora, uma grande vaga rolando,
abatendo-se, prenúncio da tempestade que se avizinha.
Adivinha-se na sua fronte iluminada o clarão ardente
da inspiração. E José Estêvão começa a oração
sublime, que parece evocar o génio de Demóstenes.
Raras vezes a nobre palavra portuguesa teve, mesmo na boca de
Vieira, acertos e apóstrofes mais nobres. É,
primeiro, o elogio da «ordem»:
«Não há outro poder na Terra senão a ordem». «Quem abateu os
mares, quem enfrentou os ventos, quem fez singrar os
escaleres, quem deu a mão ao soldado para saltar em
terra, quem tangeu os clarins, quem limpou o fuzil,
quem fez rodar o canhão?».
E segue-se a visão esplêndida do Pireu, a visão do país no
princípio do século XIX, a invasão francesa quando
«a flor da nossa juventude, o ouro dos nossos cofres,
a paz dos nossos campos, a gala das nossas cidades, o
sangue dos nossos soldados, a devoção dos nossos
povos se empenhavam na destruição do poder colossal
do imperador. Sabido é como a Inglaterra considerava
pouco esses esforços, depreciava o valor desses
sacrifícios e caluniava a gentileza das nossas
armas?…».
As apóstrofes imortais desse discurso, traçando, na História, o
cortejo das ingratidões, das ruínas, das perfídias
dum momento nacional, ficarão, na vida portuguesa,
como um dos mais fulgurantes clarões da eloquência
de todos os tempos.
Mas o mais dramático momento da palavra de José Estêvão terá
sido, sem dúvida, a fulgurante oração pronunciada
em 1857, quando do episódio nacional do «Charles
et George».
A história deste lance, que atingiu a consciência do
País e feriu profundamente a dignidade e a soberania
nacionais, é conhecida. Um navio português
aprisionara nas águas de Moçambique um navio francês,
«Charles et George», que se preparava para recolher
e transportar um carregamento de negros. De acordo com
o tratado para a abolição do comércio da
escravatura, assinado entre a França, Inglaterra e
Portugal, no caso do aprisionamento dum navio
empregado no tráfico de escravos, o navio apreendido
fica propriedade do Governo aprisionador. O Governo de
Moçambique, considerando boa presa, segundo a lei
internacional, o «Charles et George», remeteu-o para
Lisboa, com todos os documentos do processo. A França
de Napoleão III reagiu, reclamando contra a
legitimidade do acto português e, num movimento de
insultuosa arrogância, mandou ao Tejo uma unidade da
sua esquadra arriar a nossa bandeira e, desprezando os
nossos direitos, retomar, em plenas águas
territoriais portuguesas, a posse do navio.
A afronta atingiu em cheio os brios nacionais. E foi o verbo
vingador de José Estêvão que levantou a injúria,
atacando violentamente a França:
«A águia imperial - disse - enfadada da sua força de inacção,
saudosa de aventuras, ávida de glória, veio do seu
ninho de pedra, desses penhascos artificiais de
Cherburgo, até às margens do Tejo, só guarnecidas
da sua natural beleza e de venerandas recordações; e
veio aqui (grande e nobre façanha!) repor a bandeira
francesa em um navio de onde nós a havíamos
arrancado para que não continuasse a manchar-se,
cobrindo o tráfico de escravatura.»
José Estêvão havia de morrer cinco anos depois. Essa monumental
peça oratória foi quase o testamento nacional do seu
génio. Pela voz do tribuno, ainda húmida das lágrimas
e sufocada pela dor recente da morte de Luís Cipriano,
seu pai, falou a velha alma de Portugal, denunciando
ao mundo a felonia e o ultraje. Essa voz que, se ainda
pudesse fazer-se ouvir, saberia hoje, diante dos
ataques e das injustiças, mais uma vez lançados e
desencadeados na hora nacional que atravessamos, ser a
grande intérprete da honra e dos direitos de Portugal
- essa voz azorrague, veemência e dor -, foi buscar
às sombras e às energias do Passado a força, o ímpeto
e a amargura da alma portuguesa temperada em todas as
provas da História. Era quase o canto do cisne, e
esse canto dolorido, fremente, ferido, vibrou, naquela
assembleia do Parlamento, como o clamor, a vingadora
expiação da Raça.
É dessa admirável oração, que o bronze e o mármore da palavra
esculpiram, a famosa passagem que, à distância de
105 anos, nos surge ainda como um clássico monumento
de ressoante grandeza literária:
«As ondas tocadas da tempestade batem furiosamente no penhasco que
as assoberba. Nesta lida, atropelam-se, amontoam-se;
sobem umas sobre as outras e repetem assim os ataques,
redobram os arremessos, até que galgam a altura onde
a resistência as levou e, de lá, fatigadas e
desfeitas em espuma, caem no mar de onde saíram, no
mar de onde eram, no mar que lhes dera a força, no
mar em que se tornam. O mar é a humanidade, como ele
larga, vasta, imensa; como ele, querendo sempre saltar
fora das suas barreiras, fugir às leis que a dominam
e, voltando sempre, apesar da sua inquietação, aos
princípios da harmonia natural a que perpetuamente
está sujeita e para conservar os quais foi criada. E,
serenada a tempestade, que resta dos penhascos em que
as ondas já não batem, que o mar apenas roça, que já
não atraem as nossas vistas pela luta que sobre eles
se travava?».
E a palavra do grande orador português interroga simplesmente:
«Onde estamos nós? Onde está a França que nós conhecíamos?
Choremos todos por ela, que o nosso pranto é pela
civilização!».
«O nosso pranto é pela civilização» - dizia José Estêvão. E
a elegia do tribuno podíamos repeti-la hoje: «… o
nosso pranto é pela civilização».
LIBERDADE E PÁTRIA
Sempre atentamente escutado, o Sr. Dr. AUGUSTO DE CASTRO prosseguiu
o seu discurso traçando o grande quadro evocativo das
origens que moldaram a inteligência e a vida de José
Estêvão e as circunstâncias que as criaram e as
conduziram, definindo a época de exaltação
nacional, de febre cívica, de fervor literário em
que se integraram a vida e o génio do tribuno. E
acentuando que a Liberdade e a Pátria foram os
grandes estímulos, os ideais quase exclusivos desse
período da História - o quadro generoso, romanesco e
dramático em que se formaram as gerações do início
do século XIX, a que José Estêvão pertenceu -,
afirmou:
«Apesar de todos os percalços, de todas as sombras, dos erros e
das quimeras dessas gerações, é impossível deixar
de as considerar hoje, na distância que nos separa,
sem nos inclinarmos diante da inspiração e da
estatura dos homens e, no meio das vicissitudes dos
factos e dos conflitos, perante a grandeza das ilusões,
das intenções e dos combates.
Se a liberdade por que eles se bateram foi por vezes apaixonada e
mais verbal do que profunda e consciente, os homens
que encarnavam essa liberdade sabiam bater-se - e
sabiam respeitar-se. Quando Passos Manuel defendia José
Estêvão, seu adversário; quando José Estêvão
vinha espontaneamente apoiar, numa hora difícil, a
candidatura e a figura de Garrett, seu émulo e seu
rival na tribuna e nas ambições parlamentares, as
refregas, as oposições, por vezes ardentes e
injustas, mas nunca mesquinhas, os contrastes das
ideias e dos homens iluminavam-se duma tolerância e
duma compreensão humanas, de que o tempo nos fez
perder o exemplo e a grandeza.
Nesse ambiente de excessos, em que as ideias se batiam de capa e
espada, José Estêvão foi, a par dum grande homem -
e esse pertence à memória e ao património da Nação
-, aquilo que CARLYLE considerava mais difícil ainda,
«um homem». E esse, na sua simplicidade humana,
pertence, não me cansarei de o repetir, à região em
que o seu carácter se formou, que foi seu lar, em que
fundou família, em que veio ao Mundo e onde para
sempre repousa.»
Insistindo em que Aveiro foi o cenário da vida de José Estêvão,
o Sr. Dr. AUGUSTO DE CASTRO declarou mais adiante:
«Foi aqui, nesta paisagem salina, verde e areia, batida pela luz
crua do dia e pela música dos pinhais e das várzeas
de oiro, paisagem de poentes de água e de maresia,
que ele ensaiou, perto das nuvens e à sombra das
estrelas, as asas da sua palavra esculpida no voo das
águias e no esplendor das marés. Aveiro foi o ponto
de partida e o calmo porto de chegada da sua vida.
Aveiro foi a sua casa - e foi a sua alma.
É por isso que, se a glória de José Estêvão pertence à Pátria
inteira, que ele serviu e amou, a memória, a soberba
lição, a emoção, o rastro humano da sua existência
ficaram e estão aqui, ligados ao seu berço e ao seu
túmulo.
Um século após a noite em que o grande tribuno morreu em Lisboa,
a comemoração da sua morte é um facto nacional. Mas
a evocação dessa data, em que a sua vida deixou de
pulsar, só aqui, na sua terra natal, é um acto
maternal de saudade. Minutos antes, José Estêvão
recebera os sacramentos. Morria em Deus. Trouxeram
para Aveiro, encerrado numa urna, mandada fazer por
sua viúva, o coração do excelso orador. Aqui
descansa à espera de que no seu jazigo seja escrito o epitáfio que
António Feliciano de Castilho escreveu para esse
efeito. E para que em tudo aquele destino fosse
português, a casa em que viveu e os seus bens foram
disputados em hasta pública.
A hora da imortalidade chegara enfim, com a hora da paz. E é o
clarão dessa palavra, que foi das maiores que
iluminaram a língua portuguesa, que hoje ressoa na
iluminura desta sala. Palavra que, sendo de luta, foi
de concórdia; sendo de ardor e fé, foi de exaltação
e união; palavra sem ódio, palavra de liberdade e de
pátria; palavra em que ressoam os acentos da História;
palavra de Portugal…
O APELO DE JOSÉ ESTÊVÃO
Portugal fez-se em todas as vicissitudes da sua História pelo
milagre humano da vontade. «Somos independentes
porque o quisemos ser», proclamou Herculano. Nas
nossas fronteiras e nas nossas costas vieram
quebrar-se, durante oito séculos de existência, as
vagas e as tempestades do Mundo. O prodígio da Alma,
de que o nosso génio nacional foi exemplo e destino,
venceu sempre. Portugal não é apenas um produto da
história do Mundo. Portugal é um dos autores da História
Universal. Em 1940, ao inaugurar um dos pavilhões da
exposição de Belém, de que fui comissário
nacional, intitulei essa página «Portugal,
Historiador do Mundo».
Na época que a presença histórica de José Estêvão evoca e de
que ele foi uma das grandes figuras nacionais,
Portugal viveu, lutou, sofreu, sob os embates das ambições,
das ciladas, dos ataques estrangeiros. Os exércitos
de Napoleão tinham invadido o País. Wellington e os
exércitos ingleses tinham-se apossado de Portugal. O
Estado emigrara para o Brasil. A Nação estava só.
As lutas fratricidas, as emigrações e os exílios
tinham-se tornado moeda corrente. O estrangeiro forçara
as portas de Portugal. Emancipara-se o Brasil,
retalhara-se o País.
Dominada, exangue, fremente, a alma portuguesa estava lá, velha da
sua juventude de sete séculos. José Estêvão foi um
dos artífices dessa alma que sempre, através de
tudo, restituiu Portugal a Portugal.
Certamente, as horas de hoje não se assemelham nos seus
pormenores, no seu curso e no seu cenário, às horas
de que José Estêvão viveu o rescaldo, as provocações
e as dores. Mas o sentido da História é o mesmo e
repete-se. A pequena fortaleza sobre os ataques
alheios. A tempestade, soprando contra nós, ameaça a
pequena nau varrida pelos ventos - por aqueles
sinistros ventos que um dos pregoeiros da deserção
do Ocidente chamou «os ventos da História».
Mas esta Pátria, que conheceu Ourique, Aljubarrota, Montes Claros,
forjou-se de fora para dentro na tenacidade da fé e
na perseverança do heroísmo. É difícil de torcer.
Aprendeu a viver com calma na incerteza e sabe o preço
das vitórias.
Do fundo das sombras da História, neste momento do Destino que
vivemos, mais uma vez face à procela, a voz de José
Estêvão vem ainda exortar-nos. A voz do discurso de
«Charles et George» e do «Porto Pireu» chega-nos,
a mais dum século de distância, para nos repetir
estas palavras, escritas em Abril de 1861, no seu
manifesto aos eleitores de Aveiro, definindo a sua
posição e o partido «que começa a formar-se» e a
que ele se propõe, no futuro, pertencer. São estas
palavras que, ditas alguns meses antes da data da sua
morte, podem considerar-se o seu testamento político:
«Esse partido - anunciava ele - não se parecerá em carácter a
nenhum dos partidos existentes, nem se filiará nas glórias
de nenhum deles, nem será um engenho político,
incapaz de acção própria e embargamento da acção
dos outros, nem um grémio ocioso e solipso que afaste
e maltrate como apóstatas todos os que não se curvem
às suas idolatrias. Esse partido será a ligação de
todas as capacidades prestáveis para a governação pública,
tendo por intuito comum a civilização do País, em
todas as suas formas.»
Estas serenas palavras, incitando-nos ao partido da união e da
concórdia, ressoam nesta sala, vindas do túmulo de
José Estêvão, do homem que soube ser, em todos os
combates da sua vida, um «Cavaleiro Andante da Pátria»
- da Pátria que foi a grande
chama do seu génio e a razão por que esse génio
palpitou.
Essa
mobilização da consciência nacional para que, em
1861, a dois passos do fim, o grande orador apelava,
é hoje, mais do que nunca, um imperativo português.
Através
da memória e do silêncio dos Vivos, é a voz dos
Mortos que, neste momento, faz a ritual chamada de presença e de combate:
- Pátria!
E aquela voz, que foi a maior de Portugal do seu tempo, e em que
palpitaram os ecos de oito séculos de imortal palavra
portuguesa, responde, solidária da Morte:
- Presente!»
(Transcrito do «Diário de Notícias» de 5 de Novembro)
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