1º
Centenário da morte de José Estêvão
DISCURSO DO DR. FRANCISCO DO VALE GUIMARÃES
Se é verdade aquilo em que acredito, José Estêvão está a
ouvir-me.
Sabe assim das razões que me forçaram a aceitar, à última hora,
a tarefa ingente de falar dele, ao abrir as comemorações
centenárias; sabe que tive de vencer-me para aqui estar
neste momento e na circunstância, pois tudo me dizia
inteligência e sentido de medida que não devia cometer
esta temeridade. Principalmente por respeito a Ele e também
porque sobre Ele já depuseram, e sem poderem ser igualados,
todos os que no decorrer de cem anos ascenderam à galeria
dos magos da oratória.
Muitos deles proferiram seus discursos aqui, na nossa terra, aqui
mesmo, à sombra protectora e inspiradora desta bela estátua,
em que, como uma vez escrevi, movimento e pujança viril se
unem para lhe dar alta expressividade, estátua que os
aveirenses, embebidos nas ideias do Tributo e tomados de
veneração, reconhecimento e amor, ergueram há setenta
anos, penosa mas alegremente. Esses sentimentos, vividos em
plenitude pelos maiores, têm-se transmitido de geração em
geração e são hoje tão firmes como foram ontem, e dizem
por si da actualidade de José Estêvão e do seu ideário.
Ele sabe do meu constrangimento - que é quase vergonha. Mas
conhece a sinceridade da minha admiração pelo que foi e
pelo que fez.
Conhece a minha viva simpatia pelos seus ideais e a influência que
exerceram na minha formação cívica, ideais por que bateu
- correndo todos os riscos, da integridade vil à cabeça a
prémio, e consentindo em todos os sacrifícios, da tortura
física e da fome às saudades da Família e da Pátria
grandes amores da sua vida - ideais por que se bateu, dizia,
até ao heroísmo nos campos de batalha, até ao fascínio
na Imprensa, até à ênfase na tribuna.
Ele sabe da minha sinceridade. E porque foi profundamente tolerante
e generoso, compreensivo e humano, estou certo da sua
absolvição. É o que me dá serenidade e coragem, me anima
e me estimula a erguer a voz fraca e paupérrima para o
rememorar aos aveirenses e com todos dizer-lhe neste dia:
-
Foste o maior Dom da nossa terra e dela permaneces a
maior Glória.
Aveirenses:
O património espiritual de um povo integra, a par dos feitos notáveis,
das tradições, da ascensão civilizadora ou cultural, os
homens que pela acção ou pelo talento foram obreiros ou
mentores da sua fisionomia histórica.
José Estêvão foi obreiro e mentor - o mais eficiente e aberto, o
mais avisado e clarividente.
Ficou na História como Orador. A oratória em todos os tempos
representou a suma dignidade da expressão falada. Arte
complexa, implicando virtudes de eleição - do poder dialéctico
à cultura, da capacidade imaginativa à força convincente
da prontidão do raciocínio à sua imediata elocução, do
saber dizer à ênfase oratória, da dicção vibrante e máscula
e majestosa à não menos viril e imponente presença física.
A convergência de tantos atributos é graça de que só raros
participam. A História o comprova.
José Estêvão ocupou lugar entre os maiores do Mundo.
O preclaro aveirense e grande advogado Cunha e Costa, num dos
arroubos oratórios que o celebrizaram, ao perorar no centenário
natalício, figurou no Olimpo magna assembleia dos deuses da
palavra, da antiguidade clássica aos nossos dias, presidida
por José Estêvão. Todos eles, em frases formosíssimas,
lhe prestaram homenagem e todos ficaram suspensos e rendidos
quando, ao encerrar a sessão, Cunha e Costa faz o Tribuno
declamar o passo mais empolgante do discurso de Charles
et George.
Outro aveirense, também ilustre, respeitante e temido em todo
Portugal, com soma de meritórios serviços à terra, Homem
Cristo, cujo centenário do nascimento ocorreu há três
anos sem que, inexplicavelmente, os aveirenses, como
desejavam distingui-lo com a consagração a que tem jus - e
nessa aspiração comungavam mesmo muitos dos que podiam
guardar ressentimento -, esse extraordinário polemista, com
a imensa autoridade da sua erudição histórica, apelidou-o
do maior orador do Mundo após a Revolução Francesa.
Muitos chamaram-lhe o Demóstenes português. E, quando prematura e
inesperadamente se fina, a Câmara dos Deputados
unanimemente deliberou que a sua cadeira ficasse revestida
de crepes por oito dias - caso único na história, como único
também é o ter votado a construção de uma estátua, a
colocar, como aconteceu, frente ao Palácio de S. Bento,
para se lembrar ter sido Ele o maior daquele cenáculo. Foi
há anos retirada essa estátua para o interior do Palácio,
por motivo de obras. Legitimamente se espera regresse ao seu
lugar de honra, o único que lhe convém. E inegavelmente é
este o momento próprio.
Foi assim na oratória José Estêvão; mas também nos seus
discursos, nos seus artigos, nas suas polémicas, nos seus
manifestos eleitorais ressuma o homem de princípios e o
doutrinário que se reconhece e confessa como tal em muitos
passos.
Eu e Eduardo Cerqueira vimos há longos meses a seleccionar, para
os trazer a lume numa edição comemorativa, discursos que
até ao presente se encontram esquecidos no Diário da Sessões
(e contam-se às centenas), proferidos a propósito das
pequenas e grandes coisas do dia-a-dia da vida política e
administrativa do País. A sua leitura permitiu-nos
experenciar, muito mais do que os discursos incluídos nas
edições de 1878 a 1909, à parte a validade intemporal das
suas concepções (não é esta agora a questão), o que há
de permanente, no sentido de coerência ou integração numa
estrutura básica que informa todos os aspectos do seu
pensamento nos mais variados campos - do político ao sociólogo,
passando pelo económico e administrativo. É como se Ele,
vivendo uma constante necessidade de identificação consigo
próprio, se encontrasse a si mesmo em cada juízo expresso.
Impressiona, na verdade, por um lado, a segurança, equilíbrio,
visão e acendrado patriotismo com que abordava as grandes
questões nacionais, a forma como dominava a história e a
ela ia buscar orientação para as soluções que
preconizava e, por outro lado, a inteira fidelidade ao corpo
de doutrina que formava o seu ideário. Dentro deste espírito
de sujeição ao seu pensamento político, José Estêvão não
ascendeu às cadeiras do País - Ele que conquistou a cátedra
universitária, em competição com o consagrado economista
Eugénio de Almeida - porque nunca admitiu transigências
aos princípios que eram seus, como nunca poupou à mais
rude crítica os governos, mesmo os saídos do seu próprio
partido, sempre que se desviavam, o que era quase regra, dos
objectivos do seu programa. Daí sentar-se normalmente na
bancada da oposição, indiferente ao fascínio do Poder e
às sugestões das boas situações, sem se dobrar mesmo
perante a violência e a intriga e sem mal dizer a apertada
mediania em que viveu e morreu. Mas a sua pobreza de bens
materiais foi largamente compensada pela riqueza da herança
espiritual que legou aos vindouros e que o tempo não
consome, válida hoje como ontem, válida hoje como amanhã.
Ele próprio se fez arauto das gerações futuras, quando expressou
a sua participação integral e a sua fé nos ensinamentos
da juventude, independentemente de se irmanar com ela na
idade cronológica.
Disse Ele:
«Pertenço à seita da mocidade - a essa seita que o socorre sem
se ver comunicar o que se comunica sem se corresponder, a
essa seita cujos símbolos são os próprios sinais da
juventude, cujos estatutos são os puros sentimentos da
natureza, seita a que a Europa deve tudo que tem de
grandeza, de civilização e de
liberdade - seita cujos princípios eu defenderei
sempre, mesmo depois de as cãs me alvejarem na cabeça.»
Orador, político, doutrinário, professor, advogado e oficial do
exército, condecorado com dois graus da Torre e Espada
de valor, lealdade e mérito, pela bravura e ciência
militar nos sucessivos combates em que tomou na luta pela
liberdade - fundador de asilos e de outras obras de assistência
José Estêvão empolgou a nação inteira.
Toda ela o conhecia admirava e respeitava. E, agradecida, colocou o
seu nome em centenas de ruas e praças de cidades, de vilas
e de aldeias. Poucos portugueses, postumamente, terão
recebido tantas provas de gratidão, tantas e tão
significativas espontâneas homenagens, na sua maior parte
provindas das classes populares - as que mais e melhor o
compreenderam, o seguiram e veneraram.
Nesta terra de Aveiro, o seu retrato, em fotografia e em desenho e
em gravura e sobretudo em louça decorativa, ocupava lugar
de honra em centenas de casas, mormente nesses inconfundíveis
lares do nossos pescadores, marnotos e mercanteis, como vi
ainda em criança e tanto impressionou o meu espírito em
formação.
Espero que as fábricas aveirenses da especialidade, tão
impregnadas de aveirismo - e o aveirismo já o disse e
escrevi algumas vezes e agora repito, integra no seu conteúdo
ideológico os ideais de José Estêvão - Espero que as Fábricas
Aleluia, honra de Aveiro e com especial projecção na
sua vida social, artística e cultura; Ártibus,
outra que ilustra e dá fama à terra; Faianças de S.
Roque, tão característica e apreciada, - comemorem
este centenário, lançando no mercado, a preços populares,
louça decorativa com a efígie do imortal Aveirense. Será
essa mais uma homenagem, revestida aliás de significado.
Aveirenses:
O Mundo Ocidental já este século sustentou duas guerras na defesa
dos grandes princípios que entroncam em Cristo. Recente e
presentemente tem corrido e corre o risco de se envolverem
em novas contendas, porque o homem está mais uma vez
ameaçado - por doutrina que contém em si o gérmen duma
afrontosa tirania.
Pois bem: os princípios por que se bate o Ocidente, agora como nas
últimas guerras, são precisamente aqueles por que há cem
anos lutou José Estêvão.
Há duas semanas proclamava o presidente Kennedy:
«O preço da liberdade foi sempre muito caro.»
Este pensamento faz-nos voltar ao Tribuno que conheceu bem na sua
própria carne o preço elevado da liberdade.
Foi ele, portanto, arauto de uma doutrina eterna. E dela foi
pregoeiro, enobrecido por alto sentido de equilíbrio,
perfeita consciência e medida de responsabilidade.
Apesar da sua fogosidade, do seu ímpeto oratório,
escapando-se-lhe as palavras em caudalosa corrente quantas
vezes sem a possibilidade de as controlar, em momento algum
da sua agitada vida pública foi demagogo ou deu largas a
ressentimentos. São de rara nobreza - lição magnífica
que aproveitaria a tantos em todas as épocas - atitudes
suas, como a de suspender um discurso só por lhe ter
parecido ouvir, no parlamento, aplausos das galerias, como a
de se não recusar a avistar-se com o Duque de Saldanha em
momento delicado da vida nacional - com o Duque de Saldanha,
que, como o próprio José Estêvão confessa num dos seus
manifestos aos eleitores de Aveiro, o perseguira e «nenhum
sofrimento da minha carreira política me custara tanto como
essa perseguição».
E que dizer da defesa do «Portugal Velho», órgão absolutista
acusado do crime de abuso de liberdade de Imprensa e que Ele
defende, vestindo a sua toga de advogado? Proferiu, então,
discurso que é edificante exemplo da pureza e sinceridade
dos seus princípios e da nobreza do sentimento de tolerância
que cultivou no mais elevado grau. Nunca pregou a subversão,
a indisciplina e a desordem. E, no discurso sobre a maneira
de combater as conspirações, recomenda que as armas para
as sufocar só sejam entregues àqueles cidadãos que dêem
garantias de bom uso delas.
É uma constante da sua vida o entranhado amor à liberdade e à
ordem. Problema ainda hoje delicado em todo o Mundo e que
tanto tem prendido a atenção de filósofos e políticos,
Ele o equacionou há mais de cem anos em termos lapidares,
num dos seus discursos sobre a criação da Câmara dos
Pares:
«Porque eu não conheço a liberdade sem ordem, nem ordem sem
liberdade, infelizes de nós se esta diversidade de tendências
fosse real e verdadeira.»
E mais adiante, como que profeticamente, proclama:
«Temo que a liberdade se desacredite no nosso país, e que, quando
procurarmos o povo português, o achemos entregue ou à inacção
da indiferença ou ao frenesim da anarquia. De qualquer
destas desgraças não há-de a responsabilidade cair sobre
mim.»
Também nos aspectos económicos e sociais os pontos de vista de
José Estêvão têm perfeita actualidade:
«A propriedade é o primeiro elemento da civilização e a mais
forte coluna da liberdade.»
Disse isto depois de confessar a sua pobreza, mas logo a seguir
acrescenta:
«Fortalecer é um privilégio com a propriedade, isso razoável é;
mas fortalecer a propriedade com o privilégio, é inútil e
perigoso.»
E a seguir:
«Se se pretende estabilizar um corpo, que, cercado de privilégio
se esforce sempre por conservar no país as instituições
que lho garantem, já se vê que esta estabilidade é um
verdadeiro sacrifício das massas. O sacrifício das massas
é tirania.»
Advoga o equilíbrio social quando sustenta e prevê que a classe média
tende para absorver todas as outras e que
«Por uma lei constante, a democracia marcha à conquista de todas
as instituições sociais»,
outra questão que o Ocidente debate sem se afastar dos termos em
que Ele a apresentou.
Com estas rápidas alusões ao pensamento político, económico e
social de José Estêvão, pretendi comprovar a afirmação
anterior de que é ainda pelo seu ideário que o mundo
civilizado, o mundo cristão a que Portugal pertence, luta e
sofre e não desarma porque tem a consciência, de que se
abrandasse a vigilância seria presa da perversão, do
direito da força, do mais grosseiro materialismo.
Aveirenses:
Ao lado da figura nacional esteve sempre em José Estêvão o homem
de Aveiro. Esta sua e nossa terra acompanhou-o em todos os
momentos. No seu coração e na sua inteligência ela vivia
na primeira fila das suas preocupações.
Sonhou-a em grande. Com a visão rasgada dos homens superiores, viu
nela as potencialidades precisas para ser um dos principais
centros económicos de Portugal. Mas era indispensável dotá-la
dos meios que lhe permitissem realizar o seu próprio
progresso. Daí a sua luta de gigante pela construção do
Porto de Mar. Daí a sua campanha, única pelo vigor e
persistência que lhe emprestou, a favor da passagem da
linha férrea pela cidade, quando o projecto da Companhia a
traçava muito afastada de Aveiro. Campanha memorável essa
em que não afrouxou quando lhe ofereceram cem contos - hoje
muitos milhares - para renunciar a ela. Venceu. Mas não viu
nem uma nem outra dessas obras vitais. Foi, porém, já pelo
caminho-de-ferro, que o seu corpo veio de Lisboa para aqui,
onde o receberam os seus contemporâneos em soluços de dor
e desespero.
Deve assim a nossa terra a José Estêvão o abrir das grandes
coordenadas que a transformaram no que é hoje e no que virá
a ser amanhã - ainda maior, ainda mais rica, ainda mais
progressiva, ainda mais livre, ainda mais independente.
Ao lado destes grandes serviços, muitos outros constam no rol de
José Estêvão. Recordo apenas a estrada para a Costa Nova
- a primeira e até ao presente a única rasgada no meio da
Ria, e o Liceu, o Liceu que durante quase um século o teve
como patrono.
Foi sempre, em todos os momentos, e em todas as circunstâncias, o
Aveirense.
Ele próprio, em manifesto dirigido aos eleitores de Aveiro, ainda
hoje verdadeiro modelo, expressão eloquente do seu grande
carácter, dizia:
«Os títulos em que fundo a minha candidatura são a inocência da
minha vida política, e a minha constante dedicação pelas
coisas da nossa terra.»
Aveirenses:
De quanto disse é legítimo concluir que não é um centenário de
morte aquele que estamos a comemorar.
Ao contrário, festeja-se alguém que, agigantando-se, transcendeu
a própria «Bios», a vida no seu sentido biológico.
Cremo-lo vivo, vivo na lição patriótica, cívica e humana que a
todos deu; vivo na pureza dos seus ideais e das suas acções;
vivo na sua coerência e na sua subordinação ao direito e
à justiça. Vivo, a ensinar-nos a amar mais ainda a nossa
Aveiro e por seu intermédio a Pátria, que desejamos una,
íntegra e perene.
A pedir-nos, a todo o momento, que amemos mais ainda a tolerância,
a generosidade, a paz, a ordem e a liberdade.
Tenho dito.»
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