(Na rua, um homem esgaravata cuidadosamente, com um
toco de madeira, sobre o asfalto coberto pelas folhas outonais. Finalmente
levanta-se. Fala para alguém que o terá interpelado).
Pois, já ando nisto há duas horas e meia, e nada. Não,
não se trata de dinheiro, antes fosse. Foi a chave do carro, a chave do
depósito da gasolina.
Ontem, andei quase toda a tarde à procura de lugar,
corri tudo, fui quase até Verdemilho. Já começava a entrar em pânico
quando me aparece este niquinho. Nem olhei para trás! Ah, eu sabia que Deus
não ia desamparar-me. Arrumei. Hoje vim buscá-lo. Consigo tirá-lo sem
tocar em ninguém. Não é por me gabar, mas guio bem que me farto. Lá
consegui tirá-lo, graças a Deus. Olhe, é aquele azulinho, que ali está.
E, de repente, dou por falta da chave do depósito. Deve ter caído por aqui.
Ando nisto há duas horas, a levantar folhinha por folhinha. É uma chavinha
pequenina, amarelinha. E o diabo é que todas as folhas agora são amarelas.
(Ouve-se uma buzina)
Não, não moro longe. Aí uma hora. Talvez nem tanto,
não quero exagerar. Talvez aí uns três quartos de hora. Acha muito? O
senhor não é de Aveiro. Vê-se logo. Olhe, já me disseram que há quem
more perto da estação e vá deixar o carro no Parque dos Restauradores.
Qual parque dos Restauradores?! Qual é que havia de ser?! Em Lisboa! Está
visto! Como é que vão buscá-lo? Como é que hão-de ir? Vão no Alfa, de
manhã. É um bocado carote, mas compensa. Já viu a sorte que eles têm em
morar perto da estação? Sempre podem levantar-se dez minutinhos mais tarde
e nisto, quando se é casado, mais dez minutos na cama, de manhã, dá cá
um jeitão...
(Retoma a busca)
Tenho de encontrar a chave agora, dê lá por onde der. A
mulher e os filhos têm de ir até à Barra e ficaram à minha espera, quase
prontos. Parece que estou a ouvir a minha mulher: «Onde é que aquele homem
se terá metido, que nunca mais aparece? Deve ter encontrado algum compincha
e já nem se deve lembrar que existimos...»
(Atira com o graveto para o chão)
Chiça! Estou farto de ser explorado! Estou farto de ser
o burro de carga.
(Ouvem-se buzinas de carros)
Já viu? Ela trata-me como se tivesse nascido para a
servir, a ela e aos filhos! Antes de entrar ao serviço, tenho de ir ao
supermercado, tenho de lhe fazer os recados todos — comprar os botões,
deixar a roupa na lavandaria, comprar os xaropes ou os comprimidos ou a
pomada para o Zezinho. Você já viu a quantidade de farmácia que os
pequenos, hoje em dia, consomem? E parece que estão cada vez mais doentes,
mais enfezados, e os remédios cada vez mais caros. Gasto em remédios quase
tanto como em gasolina.
Está a ver? A mulher trata-me como se fosse o criado de
fora, o chofer particular, além de ser o criado de quarto... Está a
perceber, não está? A minha sorte é não ter jardim, se não ainda me
obrigava a aparar-lhe a relva. Aparava-lhe tudo! É uma vida infernal, assim
uma espécie de governo com maioria absoluta...
Seja como for, procurar mais a chave é que eu não
procuro. É que tenho vergonha, sinceramente, de as pessoas passarem e me
verem aqui de cu para o ar. Às vezes dão-me ganas... Até me apetece
morder-me a mim mesmo.
Você tem carro?
(Ouve-se um motor de arranque e
carros a passar)
Não? Por isso é que você está com esse ar tão
prazenteiro. Mas se calhar tem pena. Pois é! As pessoas vêem o anúncio na
televisão. Olhem para este carro... Um verdadeiro sonho... Ter este carro
é possuir a suprema felicidade... ZZZZZZZ, pelo meio do deserto, na gasosa,
passar pelas dunas, espirrar areia, voar por cima das palmeiras, ZZZZZZZZ,
agora estamos na Grande Muralha Chinesa, vejam como os chinesinhos gostam,
até os padres budistas, ZZZZZZZZ, falta uma ponte, mas isso não quer dizer
pescoço, carrega-se no pedal e o carro levanta voo, ZZZZZZZZ, aterramos do
outro lado e agora, na estrada, as curvas apertadas, guinamos para a
esquerda, guinamos para a direita, e o carro lá vai com a maior suavidade,
ZZZZZZZZZZ, metemos os travões, as rodas param à beirinha, à beirinha,
mesmo à beirinha do abismo e tudo isto com um consumo de cinco litros aos
cem.
(Limpa a cara com o lenço)
Tudo alambicado. E a cores, ainda por cima! Ai, ai. Desde
que tenho o carro, só tenho o carro, e nem a cabeça tenho, porque o carro
se meteu dentro da minha cabeça e ocupou-a toda, toda, toda, sem deixar um
bocadinho para nada.
(Ouvem-se buzinas de carros)
É a gasolina, é o seguro, é a direcção, são as
velas, são os platinados, já deito os platinados pelos olhos, é o
condensador que entupiu, ou é o motor de arranque, ou é isto, ou é
aquilo, e agora até foi o estupor do relógio que parou, e depois é o tu
que guias sem cuidado nenhum, é o tu que ias dando uma panada naquele, não
te lembras que levamos aqui o miúdo, és um chofer de trampa, sim, sim, foi
isso mesmo, foi isso que ela disse, que sou um chofer de trampa e que o
carro é uma porcaria, que ninguém na empresa tem uma porcaria destas
senão tu, já viste a triste figura que nós fazemos, com um calhambeque
destes?! Quando vamos nisto, toda a gente em Aveiro fica a olhar para nós,
nunca mais te aumentam e tu não fazes nada para isso, se pensasses mais no
teu futuro em vez de te meteres nessa história das greves...
(Pausa. Esconde a cara entre as mãos, ao mesmo tempo
que se ouvem buzinas de carros. Retoma o monólogo com ar de queixa.)
Olhe que deixei de comprar jornais. Nunca mais comprei um
livro.
(Falando mais baixo)
Até fome... É o que lhe digo! Até
fome! Almoço? Está bem, está! Almocinho sentado? Nem pensar! Um bolo, um
croquete, um café, e viva o velho! E olhe que sempre detestei croquetes.
Agoniavam-me. Mas o que é que eu hei-de de fazer? E é tudo ali, ao balcão,
em pé, como os cavalos. Casa-se um homem para afinal comer de pé!...
(Ouvem-se buzinas de carros)
Claro que eu cá não me descoso. Um homem, em Aveiro,
tem vergonha na cara. Se chega algum colega, alguém conhecido, olá,
pá, então por aqui? É verdade, pá, isto cá pela figadeira não está
nada bem! Não me posso meter em almoçaradas. Tem de ser uma coisa
levezinha...
Quero lá saber da chave.
(Voltando-se para o asfalto.)
Ai tu queres ficar aí, minha menina?! Então fica, a ver se me importo. Fica por aí, chavezinha da
minha alma, chavezinha querida. Não penses que
me fazes sofrer. Vai, vai, vai dar uma volta ao quarteirão.
(Ouvem-se buzinas de carros)
Você sabe, meu caro senhor, não é só a gasolina, o
condensador, os platinados, os seguros, os toques, os remoques. É a saúde.
É os nervos. Ah, com um carro, que sensação de liberdade! Tretas! Tretas
e mais tretas! Você levanta-se. É sábado. É verão. Quer ir à Barra dar
uma banhoca, monta no cavalinho com a mulher e os filhos. E aí vamos nós
no fresquinho da manhã,
(Começa a cantarolar uma ária conhecida)
indo eu, indo eu, a caminho de Viseu... Ó Zezinho, então tu não cantas
com o papá? Deixa lá o miúdo, que ele está com tanta vontade de chegar à
praia que nem lhe apetece cantar...
Resultado: metemo-nos na bicha, chegamos à Barra domingo
à tarde, depois de uma noite de insónia e de raiva dentro da caranguejola,
já sem sol, e temos de nos meter de novo na bicha. Entramos em casa na
segunda-feira, mais mortos que vivos. Claro que na Barra sempre apanhamos um
banho, mas um banho de poeira, porque as ruas estão todas abertas, todas
esventradas, com toda a gente a ver quem faz mais prédios em cada grão de
areia. Por este andar, qualquer dia, nem o farol escapa! Já viu o
arranha-céus que se fazia daquilo? Punha-se a luzinha no telhado, e pronto,
estava o farol substituído.
(Ouvem-se buzinas de carros)
Os automóveis estão a comer a cidade. Eu cá, se fosse
candidato a presidente da Câmara, prometia três coisas: um carro para cada
pessoa; beliches nos passeios, para arrumar os carros; e as ruas
subterrâneas para os desgraçados, os pobretanas que não têm carro, nem
onde cair mortos...
Sempre vou procurar a chave mais um bocadinho. Deve estar
escondida por aí, debaixo de alguma folha. Logo o raio das folhas haviam de
cair todas nesta altura! E depois, as chaves não são más pessoas, a gente
enerva-se às vezes e diz coisas que... enfim... Mas não é por mal.
Aliás, eu sempre me tenho dado muitíssimo bem com todas as chaves. São
umas brincalhonas, lá isso é verdade! Uma vez perdi em casa a chavinha da
pasta. Procurei tudo, revirei a casa dos pé à cabeça. E sabe onde fui
encontrá-la? Imagine só! No bolso do casaco! É verdade, deixa cá ver ,
deixa cá ver... Não volte o diabo a tecê-las!
(Vira e revira os bolsos dos avessos, à procura da chave)
Não! Infelizmente não! Desta vez não está cá!
(Recomeça a busca no asfalto)
Não posso aparecer em casa sem a chave. Ia ser um
domingo desgraçado. A minha mulher tem razão. O que é que os outros iam
dizer se nos vissem a pé? Nem quero pensar nisso!