Mário Castrim - CETA

Monólogo sobre o asfalto

(Na rua, um homem esgaravata cuidadosamente, com um toco de madeira, sobre o asfalto coberto pelas folhas outonais. Finalmente levanta-se. Fala para alguém que o terá interpelado).

 

Pois, já ando nisto há duas horas e meia, e nada. Não, não se trata de dinheiro, antes fosse. Foi a chave do carro, a chave do depósito da gasolina.

Ontem, andei quase toda a tarde à procura de lugar, corri tudo, fui quase até Verdemilho. Já começava a entrar em pânico quando me aparece este niquinho. Nem olhei para trás! Ah, eu sabia que Deus não ia desamparar-me. Arrumei. Hoje vim buscá-lo. Consigo tirá-lo sem tocar em ninguém. Não é por me gabar, mas guio bem que me farto. Lá consegui tirá-lo, graças a Deus. Olhe, é aquele azulinho, que ali está. E, de repente, dou por falta da chave do depósito. Deve ter caído por aqui. Ando nisto há duas horas, a levantar folhinha por folhinha. É uma chavinha pequenina, amarelinha. E o diabo é que todas as folhas agora são amarelas.

 

(Ouve-se uma buzina)

 

Não, não moro longe. Aí uma hora. Talvez nem tanto, não quero exagerar. Talvez aí uns três quartos de hora. Acha muito? O senhor não é de Aveiro. Vê-se logo. Olhe, já me disseram que há quem more perto da estação e vá deixar o carro no Parque dos Restauradores. Qual parque dos Restauradores?! Qual é que havia de ser?! Em Lisboa! Está visto! Como é que vão buscá-lo? Como é que hão-de ir? Vão no Alfa, de manhã. É um bocado carote, mas compensa. Já viu a sorte que eles têm em morar perto da estação? Sempre podem levantar-se dez minutinhos mais tarde e nisto, quando se é casado, mais dez minutos na cama, de manhã, dá cá um jeitão...

 

(Retoma a busca)

 

Tenho de encontrar a chave agora, dê lá por onde der. A mulher e os filhos têm de ir até à Barra e ficaram à minha espera, quase prontos. Parece que estou a ouvir a minha mulher: «Onde é que aquele homem se terá metido, que nunca mais aparece? Deve ter encontrado algum compincha e já nem se deve lembrar que existimos...»

 

(Atira com o graveto para o chão)

 

Chiça! Estou farto de ser explorado! Estou farto de ser o burro de carga.

 

(Ouvem-se buzinas de carros)

 

Já viu? Ela trata-me como se tivesse nascido para a servir, a ela e aos filhos! Antes de entrar ao serviço, tenho de ir ao supermercado, tenho de lhe fazer os recados todos — comprar os botões, deixar a roupa na lavandaria, comprar os xaropes ou os comprimidos ou a pomada para o Zezinho. Você já viu a quantidade de farmácia que os pequenos, hoje em dia, consomem? E parece que estão cada vez mais doentes, mais enfezados, e os remédios cada vez mais caros. Gasto em remédios quase tanto como em gasolina.

Está a ver? A mulher trata-me como se fosse o criado de fora, o chofer particular, além de ser o criado de quarto... Está a perceber, não está? A minha sorte é não ter jardim, se não ainda me obrigava a aparar-lhe a relva. Aparava-lhe tudo! É uma vida infernal, assim uma espécie de governo com maioria absoluta...

Seja como for, procurar mais a chave é que eu não procuro. É que tenho vergonha, sinceramente, de as pessoas passarem e me verem aqui de cu para o ar. Às vezes dão-me ganas... Até me apetece morder-me a mim mesmo.

Você tem carro? (Ouve-se um motor de arranque e carros a passar) Não? Por isso é que você está com esse ar tão prazenteiro. Mas se calhar tem pena. Pois é! As pessoas vêem o anúncio na televisão. Olhem para este carro... Um verdadeiro sonho... Ter este carro é possuir a suprema felicidade... ZZZZZZZ, pelo meio do deserto, na gasosa, passar pelas dunas, espirrar areia, voar por cima das palmeiras, ZZZZZZZZ, agora estamos na Grande Muralha Chinesa, vejam como os chinesinhos gostam, até os padres budistas, ZZZZZZZZ, falta uma ponte, mas isso não quer dizer pescoço, carrega-se no pedal e o carro levanta voo, ZZZZZZZZ, aterramos do outro lado e agora, na estrada, as curvas apertadas, guinamos para a esquerda, guinamos para a direita, e o carro lá vai com a maior suavidade, ZZZZZZZZZZ, metemos os travões, as rodas param à beirinha, à beirinha, mesmo à beirinha do abismo e tudo isto com um consumo de cinco litros aos cem.

 

(Limpa a cara com o lenço)

 

Tudo alambicado. E a cores, ainda por cima! Ai, ai. Desde que tenho o carro, só tenho o carro, e nem a cabeça tenho, porque o carro se meteu dentro da minha cabeça e ocupou-a toda, toda, toda, sem deixar um bocadinho para nada.

 

(Ouvem-se buzinas de carros)

 

É a gasolina, é o seguro, é a direcção, são as velas, são os platinados, já deito os platinados pelos olhos, é o condensador que entupiu, ou é o motor de arranque, ou é isto, ou é aquilo, e agora até foi o estupor do relógio que parou, e depois é o tu que guias sem cuidado nenhum, é o tu que ias dando uma panada naquele, não te lembras que levamos aqui o miúdo, és um chofer de trampa, sim, sim, foi isso mesmo, foi isso que ela disse, que sou um chofer de trampa e que o carro é uma porcaria, que ninguém na empresa tem uma porcaria destas senão tu, já viste a triste figura que nós fazemos, com um calhambeque destes?! Quando vamos nisto, toda a gente em Aveiro fica a olhar para nós, nunca mais te aumentam e tu não fazes nada para isso, se pensasses mais no teu futuro em vez de te meteres nessa história das greves...

 

(Pausa. Esconde a cara entre as mãos, ao mesmo tempo que se ouvem buzinas de carros. Retoma o monólogo com ar de queixa.)

 

Olhe que deixei de comprar jornais. Nunca mais comprei um livro. (Falando mais baixo) Até fome... É o que lhe digo! Até fome! Almoço? Está bem, está! Almocinho sentado? Nem pensar! Um bolo, um croquete, um café, e viva o velho! E olhe que sempre detestei croquetes. Agoniavam-me. Mas o que é que eu hei-de de fazer? E é tudo ali, ao balcão, em pé, como os cavalos. Casa-se um homem para afinal comer de pé!...

 

(Ouvem-se buzinas de carros)

 

Claro que eu cá não me descoso. Um homem, em Aveiro, tem vergonha na cara. Se chega algum colega, alguém conhecido, olá, pá, então por aqui? É verdade, pá, isto cá pela figadeira não está nada bem! Não me posso meter em almoçaradas. Tem de ser uma coisa levezinha...

Quero lá saber da chave. (Voltando-se para o asfalto.) Ai tu queres ficar aí, minha menina?! Então fica, a ver se me importo. Fica por aí, chavezinha da minha alma, chavezinha querida. Não penses que me fazes sofrer. Vai, vai, vai dar uma volta ao quarteirão.

 

(Ouvem-se buzinas de carros)

 

Você sabe, meu caro senhor, não é só a gasolina, o condensador, os platinados, os seguros, os toques, os remoques. É a saúde. É os nervos. Ah, com um carro, que sensação de liberdade! Tretas! Tretas e mais tretas! Você levanta-se. É sábado. É verão. Quer ir à Barra dar uma banhoca, monta no cavalinho com a mulher e os filhos. E aí vamos nós no fresquinho da manhã, (Começa a cantarolar uma ária conhecida) indo eu, indo eu, a caminho de Viseu... Ó Zezinho, então tu não cantas com o papá? Deixa lá o miúdo, que ele está com tanta vontade de chegar à praia que nem lhe apetece cantar...

Resultado: metemo-nos na bicha, chegamos à Barra domingo à tarde, depois de uma noite de insónia e de raiva dentro da caranguejola, já sem sol, e temos de nos meter de novo na bicha. Entramos em casa na segunda-feira, mais mortos que vivos. Claro que na Barra sempre apanhamos um banho, mas um banho de poeira, porque as ruas estão todas abertas, todas esventradas, com toda a gente a ver quem faz mais prédios em cada grão de areia. Por este andar, qualquer dia, nem o farol escapa! Já viu o arranha-céus que se fazia daquilo? Punha-se a luzinha no telhado, e pronto, estava o farol substituído.

 

(Ouvem-se buzinas de carros)

 

Os automóveis estão a comer a cidade. Eu cá, se fosse candidato a presidente da Câmara, prometia três coisas: um carro para cada pessoa; beliches nos passeios, para arrumar os carros; e as ruas subterrâneas para os desgraçados, os pobretanas que não têm carro, nem onde cair mortos...

Sempre vou procurar a chave mais um bocadinho. Deve estar escondida por aí, debaixo de alguma folha. Logo o raio das folhas haviam de cair todas nesta altura! E depois, as chaves não são más pessoas, a gente enerva-se às vezes e diz coisas que... enfim... Mas não é por mal. Aliás, eu sempre me tenho dado muitíssimo bem com todas as chaves. São umas brincalhonas, lá isso é verdade! Uma vez perdi em casa a chavinha da pasta. Procurei tudo, revirei a casa dos pé à cabeça. E sabe onde fui encontrá-la? Imagine só! No bolso do casaco! É verdade, deixa cá ver , deixa cá ver... Não volte o diabo a tecê-las!

 

(Vira e revira os bolsos dos avessos, à procura da chave)

 

Não! Infelizmente não! Desta vez não está cá!

 

(Recomeça a busca no asfalto)

 

Não posso aparecer em casa sem a chave. Ia ser um domingo desgraçado. A minha mulher tem razão. O que é que os outros iam dizer se nos vissem a pé? Nem quero pensar nisso!


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