[Vê-se, ao fundo, parte da ria e das
salinas, com montículos de sal que brilham sob a luz forte de um sol de Agosto.
Do lado esquerdo, vêem-se os palheiros da Costa Nova; do direito, o farol da
Barra. Este cenário pode ser pintado ou obtido por meio da projecção de 3
slides sobre fundo branco. Entrando da esquerda, avança para o palco um lençol
branco, agitado por braços que vêm sob ele. Do centro, emerge a cabeça da
Mãe Ria, uma cabeça com fitas verdes que lembram o moliço. Agita os braços,
coadjuvada pelos elementos que se mantêm debaixo do lençol. Avança
lentamente. Desce as escadas de acesso ao palco e percorre lentamente a fila
central, até ao fundo da sala, sempre agitando-se o lençol. Regressa
lentamente ao palco e posiciona-se ao centro. Começa a falar pausadamente para
os espectadores, como quem vai reflectindo sobre as palavras proferidas.]
RIA - A Ria de Aveiro. A Mãe Ria. Eu...
Eu, com este corpo imenso de 40 quilómetros, a esbracejar por essas terras...
Essas terras... Tantos braços... Tantos braços... Já nem sei se sou uma ria
ou se sou uma aranha.., uma aranha que tivesse vindo do mar.., ou do céu.., das
estrelas.., sim, é isso das estrelas... Por causa da luz... Lembram-se? Raul
Brandão disse que nos meus olhos é que há a verdadeira luz de Portugal.
Coitados dos meus olhos... Ontem tão cheios de luz, hoje tão cheios de
ramela...
Sinto-me sem forças. Antigamente, quando
estava cansada, comia do meu berbigão e ficava logo boa. Agora já ninguém
quer saber do meu berbigão...
Sinto que vou morrer...
(Saem as carpideiras de baixo do
lençol, ficando pela primeira vez patentes ao público. Mantêm-se em grupo e
deslocam-se para o lado direito. Voltadas para a Mãe Ria, começam a falar em
coro)
CARPIDEIRAS -
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Ai a nossa Ria!
Ria bem-amada!
Ria louvada
cantada
a luz dourada
os olhos de serpente
Ai Ria, quando estiveres enterrada,
ai, ai, o que vai ser da gente? |
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RIA - Não quero ouvir estas bruxas... Não
quero ver estas velhas a chorar... Gosto do sal do suor do meu corpo, mas não
gosto do sal das lágrimas... Lágrimas, só as de alegria. A propósito de sal,
onde estás tu, minha filha, Maria Salina...
(Entra no palco Maria Salina. Vem
vestida com uma saia branca, muito leve e de formato cónico, desde o peito até
ao chão, cujas pérolas brancas brilham sob a luz dos projectores, evocando os
cristais dos montes de sal)
SALINA - Estou aqui, mãe.
RIA - Que linda que tu eras... Parece que
te estou a ver...Tão branquinha... Tão pura... Aquela pureza salgadinha que os
homens tanto apreciam... Que bem que tu dançavas! Já não sabes dançar?
SALINA - Não me deixam, mãe. Atiraram
para dentro da sala centenas, milhares de enguias que se agarram aos pés.
RIA - Que pena! Fazias uns bilhetes postais
tão bonitos...
SALINA - Também eu estou como tu, Mãe
Ria... Às vezes ainda procuro dançar... deslizar.., sonhar talvez... Mas
faltam-me as forças...
RIA - Falta-te a corda, minha boneca de
luz...
SALINA - Tenho medo, Mãe Ria!
CARPIDEIRAS -
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Aí a nossa Menina
o nosso diamante de água fina
a nossa lamparina
a nossa dançarina
da madrugada
tão fria, tão quente
ai, ai, quando estiveres enterrada,
ai, ai, o que vai ser da gente? |
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RIA - Aquelas bruxas! O que elas estão a
pedir é uma boa caralhada... E daí, talvez não... Já lhes faltam os dentes
para roer as caras de bacalhau. Pfff!, caras de bacalhau... As que andam por aí
parecem feitas de plástico. Filho, meu filho Moliceiro, onde estás?
(Surge do lado direito, fazendo deslizar
lentamente sobre o palco um modelo pintado em cartão de um moliceiro. Atravessa
lentamente o palco, balançando suavemente até ao lado esquerdo, onde se
posiciona)
MOLICEIRO - Aqui, mãe.
RIA - Antes não estivesses. Era sinal de
que andavas a trabalhar.
MOLICEIRO - Já me deixei disso. Ninguém
me quer. Acho até que já perdi o jeito. Ninguém me quer. Agora só sirvo para
os concursos de proas.
RIA - Pois foi. Com tanto moliço, acabaste
por dar em misso...
MOLICEIRO - E que saudades, mãe! Aqueles
corpinhos verdes dentro de água, como se fosse num sonho, cobras mansas a
chamar... a chamar...
RIA - Tolices tuas.
MOLICEIRO – É verdade, juro! Eu bem as
ouvia: “Leva-me contigo... Leva-me contigo...” Eu mergulhava, enlaçava-as,
trazia-as comigo...
RIA - Malandreco! Saíste ao teu pai, um
fenício que passou por aí e pôs a cabeça a andar à roda às mulheres
todas... O interesseiro! Afinal, o que ele queria era só levar-nos o sal. Como
é que tu, filho de comerciante e ladrão, jareceste tão romântico?
MOLICEIRO - Aqueles corpinhos verdes...
Levava-os para terra, deitava-os ao sol e depois... e depois que ricas batatas
nasciam...
RIA - Pronto, lá vem a costela do pai!
MOLICEIRO - Mãe Ria, Mãe Ria, eu não
quero morrer... Sou ainda tão novo... Tão cheio de vida... Debaixo da areia
há ainda tanto moliço por apanhar...
CARPIDEIRAS -
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Ai o nosso barco moliceiro
tão fino, tão ligeiro
tão caseiro
com ele se escreve a palavra Aveiro
bilhete postal ilustrado
jovem antigamente
ai, ai, quando estiveres enterrado
ai, ai, o que vai ser da gente! |
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RIA - Só cá faltavam estas para me dar
cabadia do juízo. Tárrenego, Satanás! (Pausa) Ó Maria Salina!
SALINA - Sim, Mãe.
RIA – Ó Zé Moliceiro!
MOLICEIRO - Sim, Mãe!
RIA - E o outro, o João Palheiro?
(Surge do lado esquerdo, onde está
representada a Costa Nova, o PALHEIRO, fazendo
deslizar lentamente sobre o palco uma fachada de um palheiro típico pintado em
cartão. Atravessa lentamente o palco. Coloca o modelo na posição que
lhe está destinada e fala
para a Mãe Ria.)
PALHEIRO - Estou aqui, mãezinha, estou
sempre à tua beira.
RIA - Eu sei, eu sei. Meu paspalhão... Meu
paspalhão querido... Tão bom... Tão manso como tu não vi ninguém.
PALHEIRO - Olha, queres saber uma coisa?
Estou rico!
RIA - Quem? Tu?
PALHEIRO - Eu, imagina!
RIA - O quê! Assaltaste algum banco?
PALHEIRO - Que ideia!
RIA - Andas no contrabando?
PALHEIRO - Essa agora!
RIA - Passas droga?
PALHEIRO - Juro que não. Por que é que
perguntas isso?
RIA - Em Aveiro é o que está a dar.
PALHEIRO - Mãe, tu lembras-te como riam de
mim quando diziam que eu estava vestido de presidiário?
RIA - Então não lembro! Até deitaram
abaixo quase todos os teus irmãos, para fazerem uns monstrozinhos de pedra.
PALHEIRO - Pois quem fez isso, agora, torce
a orelha mas não deita sangue. Vale mais um palheiro do que um Pão de
Açúcar. Mas tenho um inimigo que me persegue...
RIA - Quem é? Quem é?
PALHEIRO - O cimento. Um bicho tão feio,
mãezinha. Ele devora tudo. Qualquer dia, a gente acorda e no lugar do palheiro
de José Estêvão está um arranha-céus!
RIA - Céus!
PALHEIRO – É como te digo, mãe. Ele
avança... Avança... Nem me deixa respirar. O cimento, mãezinha, o cimento vai
matar-me!
CARPIDEIRAS -
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Ai palheiro mansinho
riscadinho
corpo de pinho
cor de mel, cor de mar e cor de vinho
todo à Ria voltado
com um ar de poeta sempre ausente
ai, ai, quando estiveres enterrado
ai, ai, o que vai ser da gente! |
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RIA - Não posso mais com essas bruxas que
passam a vida a mijar lágrimas como se eu já estivesse morta. Se fosse no
tempo da minha mocidade e se eu tivesse outros filhos que não fossem estes
manhanas, onde é que elas já estavam. Ah, mas eu não estou só, eu ainda
tenho amigos.
(Volta-se para a plateia.)
Tenho ou não tenho? Claro, eu bem sabia.
Mas os meus amigos não ficam para aí abusacados, a carpir a minha morte
antecipada, é preciso que todos sejam como os meus antigos cardadores! Vinde,
cardadores, com as vossas escovas de arame, venham pregar um cagaço a estas
madamas. Ai a pobre da Ria para aqui, ai a pobre da Ria para acolá! E eu não
preciso de quem me chore: preciso é de quem me defenda. Saibam elas e outros
iguais a elas, que eu, e estes filhos, vamos ter muitos e muitos anos de vida,
porque os olhos de Portugal ficariam mais cegos, se a minha luz desaparecesse.
Vamos a elas, cardadores!
(Entram os cardadores. Burburinho. As
carpideiras fogem. Os cardadores invadem a plateia. Ad libitum)