Mário Castrim - CETA

Mãe Ria

[Vê-se, ao fundo, parte da ria e das salinas, com montículos de sal que brilham sob a luz forte de um sol de Agosto. Do lado esquerdo, vêem-se os palheiros da Costa Nova; do direito, o farol da Barra. Este cenário pode ser pintado ou obtido por meio da projecção de 3 slides sobre fundo branco. Entrando da esquerda, avança para o palco um lençol branco, agitado por braços que vêm sob ele. Do centro, emerge a cabeça da Mãe Ria, uma cabeça com fitas verdes que lembram o moliço. Agita os braços, coadjuvada pelos elementos que se mantêm debaixo do lençol. Avança lentamente. Desce as escadas de acesso ao palco e percorre lentamente a fila central, até ao fundo da sala, sempre agitando-se o lençol. Regressa lentamente ao palco e posiciona-se ao centro. Começa a falar pausadamente para os espectadores, como quem vai reflectindo sobre as palavras proferidas.]

RIA - A Ria de Aveiro. A Mãe Ria. Eu... Eu, com este corpo imenso de 40 quilómetros, a esbracejar por essas terras... Essas terras... Tantos braços... Tantos braços... Já nem sei se sou uma ria ou se sou uma aranha.., uma aranha que tivesse vindo do mar.., ou do céu.., das estrelas.., sim, é isso das estrelas... Por causa da luz... Lembram-se? Raul Brandão disse que nos meus olhos é que há a verdadeira luz de Portugal. Coitados dos meus olhos... Ontem tão cheios de luz, hoje tão cheios de ramela...

Sinto-me sem forças. Antigamente, quando estava cansada, comia do meu berbigão e ficava logo boa. Agora já ninguém quer saber do meu berbigão...

Sinto que vou morrer...

(Saem as carpideiras de baixo do lençol, ficando pela primeira vez patentes ao público. Mantêm-se em grupo e deslocam-se para o lado direito. Voltadas para a Mãe Ria, começam a falar em coro)


CARPIDEIRAS -

Ai a nossa Ria!
Ria bem-amada!
Ria louvada
cantada
a luz dourada
os olhos de serpente
Ai Ria, quando estiveres enterrada,
ai, ai, o que vai ser da gente?

 

RIA - Não quero ouvir estas bruxas... Não quero ver estas velhas a chorar... Gosto do sal do suor do meu corpo, mas não gosto do sal das lágrimas... Lágrimas, só as de alegria. A propósito de sal, onde estás tu, minha filha, Maria Salina...

 

(Entra no palco Maria Salina. Vem vestida com uma saia branca, muito leve e de formato cónico, desde o peito até ao chão, cujas pérolas brancas brilham sob a luz dos projectores, evocando os cristais dos montes de sal)

 

SALINA - Estou aqui, mãe.

RIA - Que linda que tu eras... Parece que te estou a ver...Tão branquinha... Tão pura... Aquela pureza salgadinha que os homens tanto apreciam... Que bem que tu dançavas! Já não sabes dançar?

SALINA - Não me deixam, mãe. Atiraram para dentro da sala centenas, milhares de enguias que se agarram aos pés.

RIA - Que pena! Fazias uns bilhetes postais tão bonitos...

SALINA - Também eu estou como tu, Mãe Ria... Às vezes ainda procuro dançar... deslizar.., sonhar talvez... Mas faltam-me as forças...

RIA - Falta-te a corda, minha boneca de luz...

SALINA - Tenho medo, Mãe Ria!

 

CARPIDEIRAS -

Aí a nossa Menina
o nosso diamante de água fina
a nossa lamparina
a nossa dançarina
da madrugada
tão fria, tão quente
ai, ai, quando estiveres enterrada,
ai, ai, o que vai ser da gente?

RIA - Aquelas bruxas! O que elas estão a pedir é uma boa caralhada... E daí, talvez não... Já lhes faltam os dentes para roer as caras de bacalhau. Pfff!, caras de bacalhau... As que andam por aí parecem feitas de plástico. Filho, meu filho Moliceiro, onde estás?

 

(Surge do lado direito, fazendo deslizar lentamente sobre o palco um modelo pintado em cartão de um moliceiro. Atravessa lentamente o palco, balançando suavemente até ao lado esquerdo, onde se posiciona)

 

MOLICEIRO - Aqui, mãe.

RIA - Antes não estivesses. Era sinal de que andavas a trabalhar.

MOLICEIRO - Já me deixei disso. Ninguém me quer. Acho até que já perdi o jeito. Ninguém me quer. Agora só sirvo para os concursos de proas.

RIA - Pois foi. Com tanto moliço, acabaste por dar em misso...

MOLICEIRO - E que saudades, mãe! Aqueles corpinhos verdes dentro de água, como se fosse num sonho, cobras mansas a chamar... a chamar...

RIA - Tolices tuas.

MOLICEIRO – É verdade, juro! Eu bem as ouvia: “Leva-me contigo... Leva-me contigo...” Eu mergulhava, enlaçava-as, trazia-as comigo...

RIA - Malandreco! Saíste ao teu pai, um fenício que passou por aí e pôs a cabeça a andar à roda às mulheres todas... O interesseiro! Afinal, o que ele queria era só levar-nos o sal. Como é que tu, filho de comerciante e ladrão, jareceste tão romântico?

MOLICEIRO - Aqueles corpinhos verdes... Levava-os para terra, deitava-os ao sol e depois... e depois que ricas batatas nasciam...

RIA - Pronto, lá vem a costela do pai!

MOLICEIRO - Mãe Ria, Mãe Ria, eu não quero morrer... Sou ainda tão novo... Tão cheio de vida... Debaixo da areia há ainda tanto moliço por apanhar...

 

CARPIDEIRAS -

Ai o nosso barco moliceiro
tão fino, tão ligeiro
tão caseiro
com ele se escreve a palavra Aveiro
bilhete postal ilustrado
jovem antigamente
ai, ai, quando estiveres enterrado
ai, ai, o que vai ser da gente!

RIA - Só cá faltavam estas para me dar cabadia do juízo. Tárrenego, Satanás! (Pausa) Ó Maria Salina!

SALINA - Sim, Mãe.

RIA – Ó Zé Moliceiro!

MOLICEIRO - Sim, Mãe!

RIA - E o outro, o João Palheiro?

 

(Surge do lado esquerdo, onde está representada a Costa Nova, o PALHEIRO, fazendo deslizar lentamente sobre o palco uma fachada de um palheiro típico pintado em cartão.  Atravessa lentamente o palco. Coloca o modelo na posição que lhe está destinada e fala para a Mãe Ria.)


PALHEIRO - Estou aqui, mãezinha, estou sempre à tua beira.

RIA - Eu sei, eu sei. Meu paspalhão... Meu paspalhão querido... Tão bom... Tão manso como tu não vi ninguém.

PALHEIRO - Olha, queres saber uma coisa? Estou rico!

RIA - Quem? Tu?

PALHEIRO - Eu, imagina!

RIA - O quê! Assaltaste algum banco?

PALHEIRO - Que ideia!

RIA - Andas no contrabando?

PALHEIRO - Essa agora!

RIA - Passas droga?

PALHEIRO - Juro que não. Por que é que perguntas isso?

RIA - Em Aveiro é o que está a dar.

PALHEIRO - Mãe, tu lembras-te como riam de mim quando diziam que eu estava vestido de presidiário?

RIA - Então não lembro! Até deitaram abaixo quase todos os teus irmãos, para fazerem uns monstrozinhos de pedra.

PALHEIRO - Pois quem fez isso, agora, torce a orelha mas não deita sangue. Vale mais um palheiro do que um Pão de Açúcar. Mas tenho um inimigo que me persegue...

RIA - Quem é? Quem é?

PALHEIRO - O cimento. Um bicho tão feio, mãezinha. Ele devora tudo. Qualquer dia, a gente acorda e no lugar do palheiro de José Estêvão está um arranha-céus!

RIA - Céus!

PALHEIRO – É como te digo, mãe. Ele avança... Avança... Nem me deixa respirar. O cimento, mãezinha, o cimento vai matar-me!

 

CARPIDEIRAS -

Ai palheiro mansinho
riscadinho
corpo de pinho
cor de mel, cor de mar e cor de vinho
todo à Ria voltado
com um ar de poeta sempre ausente
ai, ai, quando estiveres enterrado
ai, ai, o que vai ser da gente!

 

RIA - Não posso mais com essas bruxas que passam a vida a mijar lágrimas como se eu já estivesse morta. Se fosse no tempo da minha mocidade e se eu tivesse outros filhos que não fossem estes manhanas, onde é que elas já estavam. Ah, mas eu não estou só, eu ainda tenho amigos.

(Volta-se para a plateia.)

Tenho ou não tenho? Claro, eu bem sabia. Mas os meus amigos não ficam para aí abusacados, a carpir a minha morte antecipada, é preciso que todos sejam como os meus antigos cardadores! Vinde, cardadores, com as vossas escovas de arame, venham pregar um cagaço a estas madamas. Ai a pobre da Ria para aqui, ai a pobre da Ria para acolá! E eu não preciso de quem me chore: preciso é de quem me defenda. Saibam elas e outros iguais a elas, que eu, e estes filhos, vamos ter muitos e muitos anos de vida, porque os olhos de Portugal ficariam mais cegos, se a minha luz desaparecesse.

Vamos a elas, cardadores!

(Entram os cardadores. Burburinho. As carpideiras fogem. Os cardadores invadem a plateia. Ad libitum)


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