AVÓ - |
Sei o que querem de mim.
Uma história, não é assim?
Na grande noite comprida
que a vida às vezes nos dá
melhor p’ra aquecer a vida
do que uma história, não há.
P'ra contar histórias bem
o que é preciso é ter dedo.
Não serve o pai nem a mãe
só a avó tem o segredo.
Tem, não: tinha. Eu cá não sei
como podem ser o rei,
a princesinha encantada
feiticeira, bruxa e fada
e mais trastes a reboque,
no fulgor das novas luzes.
Agora é o tempo do rock.
Assim... Ai as minhas cruzes!...
Bom, mas já que estamos cá,
querem história? Então vá lá.
Terá de ser coisa fina
decente e de bom conselho.
Pois vou contar A MENINA
DO CAPUCHINHO VERMELHO...
Uma família morava
na Feira de Março, acolá.
À tardinha, a mãe chamava: |
|
|
MÃE - |
Menina!
|
MENINA - |
Vou já, vou já! |
|
|
MÃE - |
O vizinho está molesto
e sem ninguém que o atenda.
Corre a levar-lhe este cesto.
|
MENINA - |
Que vai no cesto?
|
MÃE - |
A merenda.
Vai este doce docinho
este pão, este queijinho,
um guardanapo, um frutinho,
e este copinho de vinho... |
|
|
MENINA - |
Onde é que ele mora,
mãe?
Nunca lá fui... |
|
|
MÃE - |
Não importa.
A casinha dele tem
uma estrelinha na porta. |
|
|
MENINA - |
Vou já, mãezinha. |
|
|
MÃE - |
Cuidado!
Não vás pelo porto, aos baldões. |
|
|
MENINA - |
Porquê?
|
MÃE - |
Porque nesse lado
passam muitos tubarões...
Nem vás p'lo canal, não? |
|
|
MENINA - |
Tá,
fica certa que eu não brinco.
Passa bicho ruim por lá? |
|
|
MÃE - |
Passa lá a IP 5...
Pela floresta que resta
também não vás. |
|
|
MENINA - |
Há lacrau? |
|
|
MÃE - |
Pior! Na grande floresta
anda lá o lobo mau... |
|
|
MENINA - |
Que horror! |
|
|
MÃE - |
Adeus. |
|
|
MENINA - |
Adeus, mãe.
(À parte)
Que foi que ela imaginou?
Que mal a floresta tem?
Pois por lá mesmo é que eu vou. |
|
|
AVÓ - |
E assim, desobediente
entrou na floresta brava
dançava, ria, contente,
lindas flores apanhava. |
|
|
MENINA - |
(Cantando) A flor
é uma ave que pousou
cansada de voar.
Já não se levantou.
Quando é, quando é que alguém vem apanhar
a flor que eu sou?
(Falando)
Tudo na vida tem nome
mas, por mais voltas que eu dê,
não sei o nome da fome
que tenho, não sei de quê.
A vida é sonho sem fim?
Não há porto onde chegar?
Ai, quando é que a flor de mim
tem asas para voar?!
(Cantando)
A flor é uma ave que pousou
cansada de voar.
Não mais se levantou.
Quando é, quando é que alguém vem apanhar
a flor que eu sou? |
|
|
AVÓ - |
Sonhadora que ela é
mais que tudo o sonho alcança.
Toda a gente perde o pé
quando tem um sonho de asa.
Estão a ver? Estão a sentir
esta aragem, esta cor?
É o lobo que está para vir ...
Lá vem ele, o tentador... |
|
|
LOBO - |
(A cantar)
Eu sou o lobo mau
lobo mau
inimigo
ai que rica donzela
vou chamar-lhe um figo...
(lobo mau falando)
Fico maluco só de imaginar
aquela carne suave, tenra, fina...
Ferrar-lhe o dente... Assim... morder... Trincar
até ser uma vez uma menina...
(Cantando)
Eu sou o lobo mau
lobo mau
inimigo
ai que rica donzela
vou chamar-lhe um figo...
(lobo mau falando)
Passar-te em volta este braço peludo
tudo fazer-te, como a lei ensina
e de vagar despir-te... Comer tudo
até ser uma vez uma menina...
(Outra vez cantando)
Eu sou o lobo mau
lobo mau
inimigo
ai que rica donzela
vou chamar-lhe um figo...
(lobo mau falando)
E depois... e depois de te comer
depois que a fome já não desatina
ficar... ficar a ver o sol nascer
sobre o que antes fora uma menina...
(Outra vez cantando)
Eu sou o lobo mau
lobo mau
inimigo
ai que rica donzela
vou chamar-lhe um figo... |
|
|
AVÓ - |
Pois estão a ver, não
estão?
Quase que ficou sem fala!
Pensa agora o maganão
na maneira de apanhá-la... |
|
|
LOBO - |
Sim, há-de haver uma
lei...
Espera lá... Já sei...
(velozmente, apanha gravetos e faz com eles
uma estrelinha que pendura na porta)
Parece que descobri...
Agora entro por aqui
enquanto ela se adianta.
Eu sou o lobo mau
e a menina já cá canta... |
|
|
MENINA - |
Uma estrela? Calha bem!
Que estrela mais luminosa!
E dizia a minha mãe
que a floresta era perigosa...
(Bate à porta)
Vizinho! |
|
|
LOBO - |
Quem é? |
|
|
MENINA - |
Sou eu... |
|
|
LOBO - |
Eu quem? |
|
|
MENINA - |
Ó sorte mofina!
Não tema... Sou a menina. |
|
|
LOBO - |
Qual menina? |
|
|
MENINA - |
A do chapéu... |
|
|
LOBO - |
Já sei, já sei... Por
favor
podes entrar... |
|
|
MENINA - |
Com licença.
O vizinho está melhor?
Não tem ares de doença... |
|
|
LOBO - |
Minha doença é a
velhice.
Desse mal, tenho um bocado. |
|
|
MENINA - |
Vizinho, que foi que
disse?
Acho-o até bem conservado. |
|
|
LOBO - |
Deve ser deste bom ar
pois na Lourenço Peixinho
mal se pode respirar... |
|
|
MENINA - |
Trago aqui para o vizinho
uns petiscos bestiais. |
|
|
LOBO - |
Devem ser. A mãe tem
fama.
Chega-te um pouquinho mais...
Senta-te à beira da cama... |
|
|
AVÓ - |
Não tenham medo do
arroubo.
Ela salva-se por um triz.
Será castigado o lobo.
É a história quem o diz. |
|
|
MENINA - |
Vizinho, os seus olhos
são
tão grandes.... P’ra quê, senhor? |
|
|
LOBO - |
Os meus olhos são tão,
tão,
são para te ver melhor... |
|
|
MENINA - |
Estas unhas tão luzidas? |
|
|
LOBO - |
São para melhor te
afagar... |
|
|
MENINA - |
E as orelhas tão
compridas? |
|
|
LOBO - |
São p’ra melhor te
escutar... |
|
|
MENINA - |
Porque é tão grande
este braço
que quase te chega à rua? |
|
|
LOBO - |
É p’ra dar aquele
abraço
que leva a gente para a Lua... |
|
|
MENINA - |
E o nariz? |
|
|
LOBO - |
P’ra te sentir... |
|
|
MENINA - |
E a língua? |
|
|
LOBO - |
P’ra te merecer... |
|
|
MENINA - |
E a boca? |
|
|
LOBO - |
P’ra te sorrir
p’ra beijar... P’ra te comer!
(Ouve-se a voz em off, do lobo, a cantar)
Eu sou o lobo mau
lobo mau
inimigo
donzela agora, agora
vou chamar-lhe um figo...
(A menina faz um gesto de se levantar) |
|
|
LOBO - |
Ouve, não te vás
embora...
(com ternura) Vem deitar-te aqui comigo... |
|
|
|
(Capuchinho mete-se na
cama do lobo. Faz-se penumbra no quarto...) |
|
|
AVÓ - |
Tenham calma, meus
meninos.
Lobo tem os dias contados.
Aquilo são desatinos
que já vão ser castigados...
(Ouvem-se os cães do caçador a ladrar)
Não lhes dizia que o bruto
já ia mudar de cor?
Esperem só um minuto.
Aí temos o caçador... |
|
|
CAÇADOR |
(dando punhadas fortes
na porta)
Sai cá p’ra fora, bandido
e levas para aprender! |
|
|
LOBO - |
(a tremer de medo)
É o caçador... Estou perdido! |
|
|
MENINA - |
Calma. Eu vou lá fora
ver.
Ó caçador, o que é isso?
Que barulho? Que lambança? |
|
|
CAÇADOR |
Estou aqui no meu
serviço. |
|
|
MENINA - |
A incomodar quem
descansa? |
|
|
CAÇADOR |
Venho-te salvar. |
|
|
MENINA - |
A mim? |
|
|
CAÇADOR |
Venho para o lobo matar.
Na história é mesmo assim.
Assim tem de continuar! |
|
|
MENINA - |
Caçador da velha caça
vai bater a outras portas.
Quem caça o tempo que passa
caça lebres que estão mortas.
Coisas boas, coisas más
por mim saberei melhor.
Eu sou eu. Deixa-me em paz.
Vai-te embora, caçador. |
|
|
CAÇADOR |
Pois se agora é assim,
menina...
Eh, cãozoada, de roda!
(Afasta-se, com os cães. A menina volta para
a casa do lobo. Apaga-se a luz) |
|
|
AVÓ - |
Estão a ver a mofina?
Estragou-me a história toda.
A surpresa agora vem
da história que mete dó.
Eu a ouvi de minha mãe
que a ouviu da sua avó...
Ora o caçador não mata
o lobo ganhou a aposta
e ela não se precata
e parece que até gosta...
Volto os meus olhos atrás
e penso — louvado seja! —
que tudo o que vi me faz
um bocadinho de inveja...
Vou-me embora. Vou-me embora.
É a minha vez.
Vou. Ponto final na trova.
Quem sabe? É a hora talvez
de fazer uma história nova...
(Afasta-se, e parece menos trôpega, menos
velhinha do que ao princípio. Atrás de uma árvore surge um lobo que
canta e vai no encalço da Avó) |
|
|
LOBO - |
Eu sou o lobo mau
lobo mau
inimigo.
Ai que rica velhota
vou chamar-lhe um figo.... |
|
|
|
|