Mário Castrim - CETA

Capuchinho Vermelho
 
AVÓ - Sei o que querem de mim.
Uma história, não é assim?
Na grande noite comprida
que a vida às vezes nos dá
melhor p’ra aquecer a vida
do que uma história, não há.
P'ra contar histórias bem
o que é preciso é ter dedo.
Não serve o pai nem a mãe
só a avó tem o segredo.

Tem, não: tinha. Eu cá não sei
como podem ser o rei,
a princesinha encantada
feiticeira, bruxa e fada
e mais trastes a reboque,
no fulgor das novas luzes.
Agora é o tempo do rock.
Assim... Ai as minhas cruzes!...

Bom, mas já que estamos cá,
querem história? Então vá lá.
Terá de ser coisa fina
decente e de bom conselho.
Pois vou contar A MENINA
DO CAPUCHINHO VERMELHO...
Uma família morava
na Feira de Março, acolá.
À tardinha, a mãe chamava:


MÃE - Menina!
MENINA -                Vou já, vou já!
MÃE - O vizinho está molesto
e sem ninguém que o atenda.
Corre a levar-lhe este cesto.
MENINA - Que vai no cesto?
MÃE -                                      A merenda.
Vai este doce docinho
este pão, este queijinho,
um guardanapo, um frutinho,
e este copinho de vinho...
MENINA - Onde é que ele mora, mãe?
Nunca lá fui...
MÃE -                           Não importa.
A casinha dele tem
uma estrelinha na porta.
MENINA - Vou já, mãezinha.
MÃE -                                  Cuidado!
Não vás pelo porto, aos baldões.

MENINA - Porquê?
MÃE -                 Porque nesse lado
passam muitos tubarões...
Nem vás p'lo canal, não?
MENINA -                                                Tá,
fica certa que eu não brinco.
Passa bicho ruim por lá?
MÃE - Passa lá a IP 5...
Pela floresta que resta
também não vás.
MENINA -                               Há lacrau?
MÃE - Pior! Na grande floresta
anda lá o lobo mau...
MENINA - Que horror!
MÃE -                     Adeus.
MENINA -                               Adeus, mãe.
    (À parte)
Que foi que ela imaginou?
Que mal a floresta tem?
Pois por lá mesmo é que eu vou.
AVÓ - E assim, desobediente
entrou na floresta brava
dançava, ria, contente,
lindas flores apanhava.
MENINA - (Cantando) A flor é uma ave que pousou
cansada de voar.
Já não se levantou.
Quando é, quando é que alguém vem apanhar
a flor que eu sou?

(Falando)
Tudo na vida tem nome
mas, por mais voltas que eu dê,
não sei o nome da fome
que tenho, não sei de quê.

A vida é sonho sem fim?
Não há porto onde chegar?
Ai, quando é que a flor de mim
tem asas para voar?!

(Cantando)
A flor é uma ave que pousou
cansada de voar.
Não mais se levantou.
Quando é, quando é que alguém vem apanhar
a flor que eu sou?

AVÓ - Sonhadora que ela é
mais que tudo o sonho alcança.
Toda a gente perde o pé
quando tem um sonho de asa.

Estão a ver? Estão a sentir
esta aragem, esta cor?
É o lobo que está para vir ...
Lá vem ele, o tentador...

LOBO - (A cantar)
Eu sou o lobo mau
lobo mau
inimigo
ai que rica donzela
vou chamar-lhe um figo...

(lobo mau falando)

Fico maluco só de imaginar
aquela carne suave, tenra, fina...
Ferrar-lhe o dente... Assim... morder... Trincar
até ser uma vez uma menina...

(Cantando)

Eu sou o lobo mau
lobo mau
inimigo
ai que rica donzela
vou chamar-lhe um figo...

(lobo mau falando)

Passar-te em volta este braço peludo
tudo fazer-te, como a lei ensina
e de vagar despir-te... Comer tudo
até ser uma vez uma menina...

(Outra vez cantando)

Eu sou o lobo mau
lobo mau
inimigo
ai que rica donzela
vou chamar-lhe um figo...

(lobo mau falando)

E depois... e depois de te comer
depois que a fome já não desatina
ficar... ficar a ver o sol nascer
sobre o que antes fora uma menina...

(Outra vez cantando)

Eu sou o lobo mau
lobo mau
inimigo
ai que rica donzela
vou chamar-lhe um figo...

AVÓ - Pois estão a ver, não estão?
Quase que ficou sem fala!
Pensa agora o maganão
na maneira de apanhá-la...
LOBO - Sim, há-de haver uma lei...
Espera lá... Já sei...

(velozmente, apanha gravetos e faz com eles uma estrelinha que pendura na porta)

Parece que descobri...
Agora entro por aqui
enquanto ela se adianta.
Eu sou o lobo mau
e a menina já cá canta...

MENINA - Uma estrela? Calha bem!
Que estrela mais luminosa!
E dizia a minha mãe
que a floresta era perigosa...

(Bate à porta)

Vizinho!

LOBO -                 Quem é?
MENINA -                                   Sou eu...
LOBO - Eu quem?
MENINA -                    Ó sorte mofina!
Não tema... Sou a menina.
LOBO - Qual menina?
MENINA -                           A do chapéu...
LOBO - Já sei, já sei... Por favor
podes entrar...
MENINA -                             Com licença.
O vizinho está melhor?
Não tem ares de doença...
LOBO - Minha doença é a velhice.
Desse mal, tenho um bocado.
MENINA - Vizinho, que foi que disse?
Acho-o até bem conservado.
LOBO - Deve ser deste bom ar
pois na Lourenço Peixinho
mal se pode respirar...
MENINA - Trago aqui para o vizinho
uns petiscos bestiais.
LOBO - Devem ser. A mãe tem fama.
Chega-te um pouquinho mais...
Senta-te à beira da cama...
AVÓ - Não tenham medo do arroubo.
Ela salva-se por um triz.
Será castigado o lobo.
É a história quem o diz.
MENINA - Vizinho, os seus olhos são
tão grandes.... P’ra quê, senhor?
LOBO - Os meus olhos são tão, tão,
são para te ver melhor...
MENINA - Estas unhas tão luzidas?
LOBO - São para melhor te afagar...
MENINA - E as orelhas tão compridas?
LOBO - São p’ra melhor te escutar...
MENINA - Porque é tão grande este braço
que quase te chega à rua?
LOBO - É p’ra dar aquele abraço
que leva a gente para a Lua...
MENINA - E o nariz?
LOBO -                   P’ra te sentir...
MENINA - E a língua?
LOBO -                     P’ra te merecer...
MENINA - E a boca?
LOBO -                   P’ra te sorrir
p’ra beijar... P’ra te comer!

(Ouve-se a voz em off, do lobo, a cantar)

Eu sou o lobo mau
lobo mau
inimigo
donzela agora, agora
vou chamar-lhe um figo...

(A menina faz um gesto de se levantar)

LOBO - Ouve, não te vás embora...
(com ternura) Vem deitar-te aqui comigo...
(Capuchinho mete-se na cama do lobo. Faz-se penumbra no quarto...)
AVÓ - Tenham calma, meus meninos.
Lobo tem os dias contados.
Aquilo são desatinos
que já vão ser castigados...

(Ouvem-se os cães do caçador a ladrar)

Não lhes dizia que o bruto
já ia mudar de cor?
Esperem só um minuto.
Aí temos o caçador...

CAÇADOR (dando punhadas fortes na porta)
Sai cá p’ra fora, bandido
e levas para aprender!
LOBO - (a tremer de medo)
É o caçador... Estou perdido!
MENINA - Calma. Eu vou lá fora ver.
Ó caçador, o que é isso?
Que barulho? Que lambança?
CAÇADOR Estou aqui no meu serviço.
MENINA - A incomodar quem descansa?
CAÇADOR Venho-te salvar.
MENINA -                             A mim?
CAÇADOR Venho para o lobo matar.
Na história é mesmo assim.
Assim tem de continuar!
MENINA - Caçador da velha caça
vai bater a outras portas.
Quem caça o tempo que passa
caça lebres que estão mortas.
Coisas boas, coisas más
por mim saberei melhor.
Eu sou eu. Deixa-me em paz.
Vai-te embora, caçador.
CAÇADOR Pois se agora é assim, menina...
Eh, cãozoada, de roda!

(Afasta-se, com os cães. A menina volta para a casa do lobo. Apaga-se a luz)

AVÓ - Estão a ver a mofina?
Estragou-me a história toda.
A surpresa agora vem
da história que mete dó.
Eu a ouvi de minha mãe
que a ouviu da sua avó...
Ora o caçador não mata
o lobo ganhou a aposta
e ela não se precata
e parece que até gosta...
Volto os meus olhos atrás
e penso — louvado seja! —
que tudo o que vi me faz
um bocadinho de inveja...
Vou-me embora. Vou-me embora.
É a minha vez.
Vou. Ponto final na trova.
Quem sabe? É a hora talvez
de fazer uma história nova...

(Afasta-se, e parece menos trôpega, menos velhinha do que ao princípio. Atrás de uma árvore surge um lobo que canta e vai no encalço da Avó)

LOBO - Eu sou o lobo mau
lobo mau
inimigo.
Ai que rica velhota
vou chamar-lhe um figo....

E VAI CAINDO O PANO


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