Mário Castrim - CETA

O rei que usava barrete

Arrais Ançã. Busto existente na Costa Nova.

CLARA - Olá, Velhote.

ANÇÃ - Olá, minha menina e meu menino. Quem sois vós?

JOÃO - Eu sou o João.

CLARA - Eu sou a Clara.

ANÇÃ - Sim, senhor, sim senhor. Andais na escola. Já sabeis a tabuada?

CLARA - Hoje ninguém aprende isso. Passou de moda.

ANÇÃ - Ai não?! Que pena! Tinha uma música tão bonita... Dois vezes um, dois, dois vezes dois, quatro, dois vezes três, seis, nove vezes nove oitenta e um... sete macacos e tu és um... (Riem)

JOÃO - Tens uma boa memória!

ANÇÃ - Não, está muito embotada... Ainda andei um ano na mestra, mas depois chamaram por mim... de muito longe... e tive de largar tudo... (Voltando a si) Pois bem. Vós andais na escola. E que aprendeis vós lá?

CLARA - Inglês... Matemática.

JOÃO - Ciências... História...

ANÇÃ - E a vida, não aprendeis?

JOÃO - Vida?

CLARA - Não, essa disciplina não temos.

ANÇÃ - As escolas andam muito atrasadas...

JOÃO - Tu não andaste na escola?

ANÇÃ - Não... Quer dizer, andei na escola da vida...

CLARA - Ah, só tinhas essa disciplina...

ANÇÃ - Só. Até morrer, nunca tive outra.

JOÃO - Olha lá, onde raio fica essa escola que só tem uma disciplina?

ANÇÃ - Fica por aí... Por aí... Os dias, as noites... O frio... O pão que não há... O peixe que não pica... Os pés que doem... As lágrimas cá em baixo... As estrelas lá por riba...

CLARA - Tens um ar estranho, velhote... Quem és tu?

ANÇÃ - Ninguém.

CLARA - Calma aí! Essa é do Almeida Garrett. (Declamando)
“Romeiro, romeiro, quem és tu? — “Ninguém!”
(Riem).

ANÇÃ - Não entendo a vossa admiração. A vida está cheia de
ninguéns. Sem esses ninguéns, não havia ninguém. E
quantos ninguéns serão precisos para fazer um alguém?

JOÃO - Não faço a menor ideia. Mas já te digo que quero ser alguém.

CLARA - E eu também.

ANÇÃ - Claro que sim, meus filhos, claro que sim. Ninguém é ninguém por sua vontade. Ninguém é obrigado a ser ninguém. Mas não vos enganeis, meus filhos. Os ninguéns e os alguéns acabam todos da mesma maneira. O que acontece é que, muitas vezes, os alguéns morrem e todo o mundo os esquece, enquanto de muitos ninguéns, ninguém se esquece deles.

JOÃO - Este velhote é um grande filósofo! Podíamos aproveitar para a nossa entrevista, não achas?

CLARA - Acho que sim, é uma óptima ideia.

ANÇÃ - Podiam aproveitar para quê?

CLARA - Nós frequentamos a área de Jornalismo e temos de apresentar na escola uma entrevista.

ANÇÃ - Que é isso de entrevista?

CLARA - Uma conversa...

ANÇÃ - Está bem. Mas olhai que eu sou homem de poucas palavras. A bem dizer, só conheço seis palavras: mar, Deus, Nosso Senhor Jesus Cristo.

JOÃO - Quando se escreve para um jornal, temos de responder pelo menos a quatro perguntas: Quem? Quando? Onde? O quê?

ANÇÃ - Vós é que sabeis lá desses quinhentos.

CLARA - Podemos começar?

ANÇÃ - Quando quiserem.

CLARA - Como se chama?

ANÇÃ - Gabriel Ançã.

JOÃO - Onde nasceste?

ANÇÃ - Em Ílhavo.

CLARA - Ah, espera, há em Ílhavo uma rua com o teu nome.

JOÃO - Uma rua com o nome dele? Então deve ser uma pessoa importante! O que é que fazias?

ANÇÃ - Trabalhava com o mar.

CLARA - Então por isso é que eras célebre? Eu pensava que fosses político... Os políticos tomam conta das esquinas de todas as ruas.

ANÇÃ - É tempo disso acabar, meus filhos. É preciso entregar o nosso coração a quem o merece, até pode ser político, não interessa.

CLARA - Então, diz lá alguns nomes célebres do teu tempo.

ANÇÃ - Vós sabeis quem era Mestre Rabumba?

JOÃO - Algum jogador de futebol, sei lá. E pelo nome, devia ser zairense.

ANÇÃ - E António da Benta?

CLARA - Foi jogador de boxe.

JOÃO - Isso era o Horácio da Velha.

Busto de José Rabumba em Aveiro.

ANÇÃ - Está bonito, está. Vós sois todos lampeiros a conhecer os nomes dos jogadores, dos actores, dos locutores, essa tralha toda. Mas ignorais os nomes de Rabumba, de António da Benta e com certeza tantos outros...

CLARA - Então, diz lá quem foram.

ANÇÃ - Foram gente simples...

JOÃO - Só?

ANÇÃ - Gente boa... Gente valente, heróis... Sim, heróis... Dos maiores... O coração deles era maior que o mundo...

JOÃO - Valentes? Heróis? Isso começa a interessar-me. Conta lá coisas deles.

ANÇÃ - Isso é que eu não faço. Não tendes pais? Não tendes professores? Perguntai-lhes.

JOÃO - Se calhar eles também não sabem...

ANÇÃ - Então perguntai ao João Sarabando, que é um livro aberto...

CLARA - O tal Rabumba não é aquele que tem a cabeça em cima de uma pedra, ali?

ANÇÃ - Coitado, ali tão escondido... As praças são para outra espécie de gente, da graúda, que se calhar não amaram esta terra tanto como nós...

CLARA - Está bem... Se tu não queres falar de ninguém, fala-nos ao menos de ti. A propósito: que é isso que tens no nariz? Andaste à pancada?

ANÇÃ - Sou homem de paz...

JOÃO - Então que foi?

ANÇÃ - Foi uma pedrada da canalha que andava por ali e a Câmara de Ílhavo ainda não teve ocasião de me mandar arranjar a proa...

JOÃO - Senhor Gabriel...

ANÇÃ - Chamai-me Arrais. Arrais Ançã. É o que fui, o que sou. O que sempre serei.

JOÃO - Vamos lá a ver. Tu já foste rico?

ANÇÃ - Fui. Fui dono do mar. O mar era todo meu. Eu era todo do mar. Quando eu olhava para o mar, os meus olhos ficavam azuis.

JOÃO - A gente queria saber se tu eras rico de dinheiro...

ANÇÃ - Disso fui pobre. Passei muita fominha. Deram-me uma medalha por heroísmo e valentia — e até essa medalha empenhei para não morrer à míngua.

CLARA - Arrais Ançã, tu vais contar à gente a tua vida.

ANÇÃ - Não.

JOÃO - Vais, sim. Lembra-te da nossa entrevista.

CLARA - Conta-nos a tua história...

ANÇÃ -

A minha história? O que é que eu vou contar?
Que interesse tem o que eu possa dizer?
Sou um lobo do mar.
Nada mais sou. Mais nada quero ser.

Mal pulei do regaço da minha mãe
já pela areia gatinhava. Pequenino
corria atrás das ondas, como quem
corre sem querer atrás do seu destino.

P’ra mim a onda nunca era brava.
Gritavam-me: Cuidado! Lá vem uma!”
E eu com ela brincava
passava-lhe esta mão na farta espuma...

Volta-se um dia um barco de recreio.
Um homem grita, as águas já o comem.
O mar estava feio.
Em ceroilas fui lá buscar o homem...

Foi dia grande, foi.
Abraçava-me e ria toda a gente.
Chamaram-me de tudo. Até herói...
E pagaram-me um copo de aguardente.

Uma dama afogava-se. Era fogo.
Agarrava-se. Fazia estardalhaço.
Preguei-lhe uma lambada, amansou logo...
Trouxe-a a terra, quietinha, neste braço.

Bater numa mulher? Arrepia-se a pele.
Como é que um homem pode fazer isso?
Deus olhou para mim, eu respondi p’ra ele:
«Meu senhor, não havia outro serviço...»

E um tal ganapo, o que ele estava aflito,
perdido já nas dobras do lençol...
Fui buscá-lo lá longe, o franganito.
Foi como se tivesse salvo o Sol!

Uma vez... Foi aqui. Ondas a esmo,
montanhas de água, como nunca vi.
Estou a ouvir o mar... Foi aqui mesmo...
Estou a ouvi-lo ainda... Escutem... Foi aqui...

Soltavam-se os diabos e os tormentos,
raiva de infernos, quando nos sacode.
Mal por cima dos ventos
um navio gritava: «Quem me acode!»

Levanto os punhos contra a escuridão:
— Ah, malvado, quem pensas tu que és?
Pensas que podes mais, tu, um pobre cão,
que só és bom p’ra me lamber os pés!

Atirei-me, quis lá saber do perigo.
E calmo, porque em tudo há que ter modos,
trago um homem comigo.
Torno a lá ir. Trago outro. E outro. E todos!

Ao outro dia, sento-me eu na areia.
O mar, de longe a longe, ao abandono,
é agora um cavalinho que esperneia
a brincar com o dono...

Passo-lhe a mão por cima. E falo... E calo...
E de tudo afinal me maravilho.
Depois encosto-o ao peito. Embalo-o. Embalo-o
como se embala um filho...

Ouvem o mar? Ouvem o maioral?
Vem grosso temporal!
Olha as nuvens que vão por esses céus...
Chamam por mim... Escutai... «Arrais Ançã... »

É a minha sina. Tenho de ir. Adeus!


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