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"Patrimónios" – n.º 9, Dezembro 2011, Ano XXXI, 2ª série, 240 páginas


A CAPELA DE SÃO DOMINGOS

E DOS SANTOS DA ORDEM

NO CONVENTO DE JESUS DE AVEIRO (1)

José António Rebocho Christo *

Os cronistas da Ordem Dominicana, como Frei Luís de Sousa, atribuem a Soror Isabel Padilha (professa em 1618) as encomendas de duas capelas dedicadas ao fundador da Ordem Dominicana, São Domingos de Gusmão, nas quais se integravam, para além das imagens do orago, as representações e relíquias de outros Santos e Beatos domínicos. Localizavam-se elas, uma dentro do edifício conventual, no primeiro piso, junto da enfermaria e a outra no pátio do poço.

Domingos Maurício, naquele que é o mais amplo e rigoroso trabalho realizado acerca do Mosteiro de Jesus de Aveiro, refere-se-lhes diversas vezes(2) sem que, no entanto, seja claro quanto às suas denominações exactas: São Domingos ou São Domingos e Santos da Ordem. No seguimento das hesitações criadas por este autor, Clementina de Carvalho Quaresma, publica um artigo(3) em que sustenta ser a Capela de São Domingos e Santos da Ordem aquela que se encontrava junto da enfermaria, no primeiro piso, contrariando uma descrição feita por Rangel de Quadros(4) cerca de 1906, e leitmotiv de toda esta questão. Vítor Serrão (5), que dedicou vários estudos à figura de António André, pintor de óleo que assina uma das tábuas da predela do altar dedicado a São Domingos, é, por via de Rangel de Quadros, induzido a situar a capela no pátio interior e não junto à enfermaria, o que, recentemente se voltará a verificar nos artigos do Professor Doutor Luís de Moura Sobral(6).

Rangel de Quadros descreve-nos(7) a fortuna da pequena capela exterior: No centro deste [pátio] existia outrora uma capela, dedicada a São Domingos e que já estava tão arruinada, que só poderia aproveitar-se, se fosse completamente reconstruída. Sobre a portada tinha a data de 1650. Em 1886 e 1887 fizéram-se, n 'este edifício, importantes obras, como antes e depois se tem feito, para / 76 / melhor ser adaptado ao utilíssimo fim, para que serve actualmente [colégio feminino]. Foi então demolida essa capella da qual não merece falar-se e que há muito estava profanada e quasi em abandono. [p.202].
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De acordo com este autor, transferiu-se então o seu acervo para o interior do convento, ficando numa cela do primeiro piso, na ala poente, junto do denominado dormitório de baixo(8): uma bonita capela dedicada a S. Domingos. O tecto é em firma de pyramide octogonal truncada paralelamente á base. Em cada face, como em todas as paredes, há bellos quadros de madeira representando santos da Ordem dominicana C...). Era a que estava no terreiro que fica a norte do claustro [indicação errónea que conduzirá a interpretações incorrectas] e a qual já fiz referencias diversas. [p.206] Designava-a então como Capela dos Santos da Ordem Dominicana(9).

Santa Joana Princesa; 1618-1625. António André; Óleo s/ tela; Col. Museu de Aveiro; N.º Inv.ª 384/A/ ©IMC, IP - Fotógrafo: José Pessoa

Em 1916, como se pode verificar, ao fundo, o acervo é integrado num último local, o lado poente da sala onde hoje se encontra a exposição permanente dedicada ao século XVII. (10)

Com as obras de adaptação do convento/colégio a museu o espaço contíguo é já destinado a apresentar pintura. Posteriormente, com as obras realizadas pela Direcção Geral de Edifícios e Monumentos Nacionais, entre 1930-1935, estas salas são novamente remodeladas no sentido de ampliar os espaços expositivos e o conjunto da capela passa a reserva/tulha, na qual se manterá até aos anos 90, sendo o conjunto pertencente ao retábulo parcialmente exposto, até ao novo projecto de ampliação e requalificação do museu, ainda a ser ultimado, que realizou o seu restauro integral e preconiza a sua exposição permanente.

Ora todos estes dados, que situam os elementos decorativos da capela do pátio como sendo aqueles que procuramos agora musealizar, contrariam ainda outras fontes. Por um lado nunca se descobriram, nas escavações levadas a cabo no pátio do poço, fundações que nos revelem a planta da capela, a qual deveria ser de construção muitíssimo frágil e, por maioria de razão, talvez pouco sólida para receber um aparato decorativo de boa qualidade e que / 77 / denuncia uma encomenda de grande fôlego financeiro. Por outro lado, eventualmente o mais incisivo, existe um outro dado ao qual tem sido dada pouca atenção. A 28 de Julho de 1689, nas visitas e vistorias levadas a cabo por D. João de Melo, Bispo Conde, e pelos elementos do tribunal eclesiástico, designados para examinar as imagens e relíquias da Princesa D. Joana com vista a enformar o seu processo de beatificação, o cortejo percorre o Convento de Jesus. Após o exame do túmulo da Princesa dirigem-se ao coro de cima em direcção à capela da enfermaria. O que passa então ao documento emanado pelas testemunhas descreve-a da seguinte forma: No apainelado do tecto, havia pintados muitos Santos da Ordem Dominicana e, entre eles, sobre o alto do retábulo do altar e do tecto, estava estampada a Venerável em hábito dominicano, com três coroas ao pé e uma açucena na mão, tendo a outra um livro. Sobre a cabeça uma iluminação, a modo de resplendor. A Pintura foi atribuída a António André, Pintor da cidade do Porto, e feita 70 anos antes.(11)

O desenho do rosto apresenta uma fisionomia próxima do "verdadeiro retrato" quinhentista, sendo esta a pintura mais antiga que, segundo apurámos, sobrevive até nós representando a Princesa em hábito dominicano e com três coroas aos pés, cristalizando-se assim o que passará a ser o seu elemento iconográfico mais identitário.

Apesar de não ter professado, D. Joana vestiu sempre o hábito branco e negro dos Pregadores, o que o Memorial da Infanta, produzido pelas religiosas coevas da Princesa, apresentando-a de véu branco de noviça pois não foi autorizada a tomar votos. Estas coroas reportam-se às propostas de casamentos que Soror Margarida Pinheiro relata no Memorial(12).

Retomando a questão da Capela, e à falta de mais argumentos que nos levem a por em causa a proveniência do conjunto atribuído a António André como sendo da capela do claustro, está ainda o facto de que Rangel de Quadros nos indicar a data inscrita na sua porta – 1650. Será a época da construção, o que não corresponde sequer ao tempo indicado pelo processo de beatificação, ou seja, um conjunto pictórico datável de 1619.

Em suma, o conjunto que agora passamos a tratar directamente, composto por escultura, pinturas e talha dourada é seguramente proveniente da capela localizada no 1º andar, e a ligação quase romântica a uma acanhada estrutura no pátio do poço deve / 78 / prender-se essencialmente com a confusão entre a invocação simples de S. Domingos, no pátio, com a de S. Domingos e Santos da Ordem junto à enfermaria. Esta questão não desmerece a qualidade artística e a dimensão apologética do programa rigoroso e vigoroso que o conjunto apresenta, mas importa ser revista em abono da verdade que os documentos nos apresentam.
 

A encomendante

Não são vastos os elementos acerca da encomendante, no entanto Rangel de Quadros, sustentado nos Cronistas da Ordem, descreve-nos desta forma a Dona Isabel Padilha, que a Crónica da Fundação do Mosteiro de Jesus nos relata ter professado em 1618: Era irmã de D. Brites Sotto Mayor, e jói em tudo sua immitadora. Foi grande devota do Patriarcha S. Domingos e tanto que mandou fazer na enfermaria uma capella em honra do mesmo Santo, na qual gastou muito dos seus haveres. E como era muito modesta pedia especialmente ao mesmo Santo, que a livrasse de ser eleita prelada do mosteiro. Aconteceu, porem, o contrário, porque mais valeram os seus merecimentos do que as suas instancias e as suas recusas. Quando tal soube, dirigiu-se ao altar de S. Domingos e ahi, prostrada e derramando muitas lágrimas, quase se queixava de não terem sido ouvidos os seus rógos. Angustiada por se vêr elevada a Prioreza, foi tomada de uma grande agonia e, transportada pelas suas companheiras á cella, ahi falleceu poucos dias depois, sem outro achaque mais do que a contrariedade que soffrera na sua modéstia e humildade.(13)

Desconhece-se a data da sua morte.
 

O acervo remanescente nas colecções do Museu de Aveiro.

Clicar para ampliar.O que podemos observar hoje são os elementos que sobrevivem da decoração original: diversos elementos do retábulo maneirista, as tábuas pintadas que ornamentavam a porta de entrada, a imagem – relicário de S. Domingos e um vasto conjunto de pinturas, num total de 28, tábuas e telas.

Destinam-se a ser montados no Piso 1 – SALA 6, procurando recriar o retábulo principal a partir dos elementos de talha que subsistem, incluindo ainda a imagem do orago, quatro pinturas laterais e duas na predela, segundo uma proposta apresentada pelo arquitecto Carlos Severo, autor da nova museografia do museu.

O nicho, visível na imagem à direita, é a peça central do retábulo, sendo todo dourado com um trabalho quase de ourives puncionado.

As quatro colunas com os terços inferiores com os tetramorfos, ou / 79 / seja, os quatro Evangelistas com os seus elementos identificadores, deverão ladeá-lo, à direita S. João Evangelista, com a águia, e à esquerda S. Mateus, com um anjo, seguem-se-lhes dois vãos com pintura e teremos então as duas colunas de remate lateral, por sua vez à direita S. Marcos, com o leão, e à esquerda S. Lucas, com o touro.

As colunas assentam sobre duas mísulas e dois paralelepípedos, estes com relevos representando santos dominicanos, S. Raimundo e S. Jacinto. Integra-se esta tipologia retabular nos modelos maneiristas, em voga na dinastia Habsburgo, marcadamente arquitecturais, com colunas separadas por painéis – modelo de ascendente serliano – apresentando uma decoração naturalística, na qual se evidenciam os cachos de frutos, compondo festões (caso da mísula), com peras, cabaças, romãs, etc., cuja simbologia canónica era facilmente reconhecível. Nas colunas surge a grande moda do terço inferior ornado, tendo como fonte o conjunto de gravados presentes na obra de Juan de Arfe e Villafañe, De varia comensuración, publicada em Sevilha em 1585. Apresentam aqui cartelas à flamenga, utilizando elementos característicos da ourivesaria como os cabouchons e lembrando molduras de couro recortado.(14)
 

A imagem do orago, São Domingos, fundador da Ordem dos Pregadores, será porventura a peça de maior qualidade da capela. Desde logo trata-se de uma imagem relicário, ostentando um pouco de tecido do que terá sido o hábito de São Domingos, por esta via uma aquisição avultadíssima e enquadrada na espiritualidade contra-reformista em que a relíquia sacraliza o espaço em que se encontra. Para a sua obtenção, além dos créditos da fundadora da capela, poderão ter aumentado os cabedais com a presença no cenóbio aveirense de D. Beatriz de Lara e Meneses, mulher da mais elevada condição na esfera peninsular, devota e culta, que habitou no mosteiro de Jesus entre 1602 e 1620 e a ele dedica parte da sua imensa fortuna. A imagem é em madeira de nogueira e executada a partir de um único bloco, com um requintadíssimo trabalho de entalhe e estofo nas vestes, exibindo uma paleta muito reduzida com as cores aplicadas de forma homogénea.

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Imagem de São Domingos. Imagem 2

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Esquema simplificado da colocação das pinturas no retábulo. Museu de Aveiro - Dossier de peça

A túnica apresenta uma decoração estofada com ramagens e flores, nas quais ao branco de base é dado um contorno branco a pincel que realça os elementos vegetalistas, tornando-a / 80 / apuradíssima. Os punhos, assim como o livro, a capa, capeirão e escapulário, são decorados com um perlado entalhado, alternando com cartelas e ramagens simétricas, nas quais se vêem incrustações de pedrarias. As cartelas, os panos pendurados que seguram cachos, as aves, as cabeças de anjo aladas, são todos eles elementos que se relacionam com gravuras franco-flamengas. Esta imagem foi objecto de um amplo estudo comparativo, chegando-se à conclusão de que os peritos em escultura envolvidos não conheciam qualquer paralelo com esta peça que, a somar a todas as suas excepcionais características, não apresenta relevos aplicados, mas sim entalhados num mesmo bloco de nogueira.

A pintura presente no retábulo desenvolvia-se segundo um esquema cuja se inicia leitura a partir da predela passando posteriormente à análise das restantes quatro que se localizavam entre as colunas.

Ao centro temos A Ceia no Convento de São Sisto, em Roma.

Este episódio relata o tempo em que falta o alimento a S. Domingos e aos frades da sua Ordem. O requinte miniatural da composição é característico do seu autor, António André, sendo esta a única pintura assinada por entre as dezenas que executou para diversas capelas do Convento de Jesus.
 

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A Ceia no Convento de São Sisto, em Roma
1618-1625 – Assinado: António André – Óleo sobre madeira
Proveniente do Convento de Jesus, Aveiro Col. do Museu de Aveiro; Nº Inv.º 88/ A; ©IMC, IP – Fotógrafo: José Pessoa

 

Este pintor, abordado por historiadores como Vítor Sertão ou Moura Sobral, terá nascido por volta de 1570, eventualmente em Aveiro, onde se detectam alguns personagens de apelido André. Em 1588 encontra-se a trabalhar na oficina lisboeta de / 81 / Simão Rodrigues, pintor maneirista que funda a Irmandade de São Lucas, a qual congregava os pintores da capital. Em 1612, André aparece a integrar uma lista de dezasseis pintores de óleo que apresentam um pleito à câmara de Lisboa, reclamando a "liberalidade da arte da pintura" e a sua nobreza, reclamando os seus direitos e apartando-se das obrigações impostas aos oficias mecânicos. Estatuto maior que certamente André absorve e que o facto de termos esta obra assinada atesta!

Entre 1619 e 1625 encontrava-se em Aveiro respondendo a encomendas quer do Mosteiro de Jesus quer do de Nossa Senhora da Misericórdia. Voltamos a ter notícia dele, entre 1646 e 1652, período em que esteve ao serviço da Ordem Terceira Franciscana do Porto.
 

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A Virgem entrega o verdadeiro retrato de São Domingos
1618-1625 – Assinado: António André – Óleo sobre madeira
Proveniente do Convento de Jesus, Aveiro Col. do Museu de Aveiro; Nº Inv.º 90/ A; ©IMC, IP – Fotógrafo: José Pessoa

 

A segunda pequena pintura que podemos observar, "A Virgem entrega o verdadeiro retrato de São Domingos", ou o "Milagre de Soriano", é um bom modelo de narração policénica contra-reformista, na senda das produções de Simão Rodrigues, na qual o dinamismo do discurso se obtém através de níveis de profundidade diferentes, relatando três momentos: a Virgem, Santa Catarina e Santa Madalena entregam o verdadeiro retrato a Frei Lourenço de Grotéria, num segundo momento Frei Lourenço reza perante o retrato e sob uma aparição da Virgem e, por último, a apresentação da imagem à comunidade de Soriano.

Falta, por ter desaparecido, o terceiro elemento da predela, que sabemos tratar-se de uma representação da morte de S. Domingos, a qual esteve presente na Exposição de Arte Religiosa, realizada em Aveiro, no Colégio de Santa Joana, em 1895.

Completam o discurso retabular três pinturas que narram às religiosas a vida do patriarca e uma quarta em que se representa um milagre seu. A primeira representa, ainda segundo o esquema policénico, o nascimento de São Domingos.

Segue-se a representação do seu baptismo, composição em que se destaca a riqueza dos trajes dos nobres personagens, o fundo arquitectural e o esquema usado para destacar a figura do infante, vestindo a figura feminina de branco.
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Baptismo de São Domingos
1618-1625
António André. Óleo s/ tela proveniente do Convento de Jesus de Aveiro. MA - N.º Invº 82/A

Entrega do rosário a São Domingos
1618-1625
António André. Óleo s/ tela proveniente do Convento de Jesus de Aveiro. Col. do Museu de Aveiro Nº Invº 85/A ©IMC, IP - Fotógrafo José pessoa

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Se para as pinturas anteriores não se conhecem fontes gravadas, o que credita os méritos compositivos do autor, já a tela "Entrega do rosário a São Domingos" reflecte um esquema regular com origem em gravados, neste particular a composição com o mesmo tema do flamengo Antoine Wierix(15), Representa a Virgem com o Menino oferecendo um rosário a São Domingos, altura em que a Senhora pede que a sua Ordem seja a propagadora desta fórmula de oração. A atenção dada à paisagem e o seu modelo de representação, são uma constante nas obras de André, aqui com uma ravina, pequenas casa e um curso de água onde nadam patos, uma receita, quase marca deste autor, próxima às figurações flamengas quatrocentistas que representavam a profundidade com a colocação em primeiro plano de elementos de maiores dimensões, a par de uma gradação de tons mais escuros para definir os ambientes e objectos mais próximos e os mais claros para os mais afastados.

Entrega do rosário a São Domingos
c.
1600; António Wierix; Gravura

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Remata o programa pictórico do altar um milagre do Fundador. Mestre Reinier desejava ardentemente entrar na Ordem Dominicana mas foi achacado de febres violentas. Aparece-lhe então a Virgem para o salvar, assomando ao Mestre acompanhada de duas belas jovens - vemos ao centro, junto à cama, a Virgem, coroada e com a píxide que transportava o remédio para a maleita, em primeiro plano Santa Catarina e em segundo plano Santa Cecilia. Paira sobre Nossa Senhora um anjo que leva um hábito da Ordem que a Senhora estende a Rainier. São Domingos entretanto tem uma visão, exactamente correspondendo a este milagre e será ele a vestir o hábito ao Deão, como se vê em segundo plano.

Clicar para ampliar.O tecto da capela é de forma piramidal, octogonal, e na origem correspondia a uma planta truncada, conforme ao desenho que observamos em baixo à esquerda. Ao centro S. Tomás de Aquino e a única pintura trapezoidal que sabemos onde se localizava, como vimos, é Santa Joana, imagem que o Processo de 1689 situa sobre o altar. O programa deverá ter tido, na sua densa elaboração hagiográfica que contempla os maiores santos e beatos da Ordem com especial relevância para os nacionais ainda que não beatos (caso da Princesa Santa Joana, beatificada apenas em 1693), a participação dos frades domínicos do Convento da Misericórdia de A veiro, confessores das religiosas de Jesus.

No tecto, ao centro, temos então São Tomás de Aquino (Doctor Angelicus), Italiano, filósofo e teólogo, que foi o expoente máximo da escolástica, procurando compatibilizar o pensamento racional com a Fé Cristã, defendendo a ética racional e o livre arbítrio. O Espírito Santo transmite-lhe sabedoria, o sol ao peito é a luz da Fé e a custódia de desenho arquitectónico maneirista que exalta a sua defesa em prol da Fé Cristã, uma fórmula catequética também ela integrada no espírito de combate contra-reformista.

Compõem o restante programa do tecto oito pinturas. A sua colocação parte da figura da Princesa, sobre o altar. À sua direita o Fundador da Ordem e, segundo proposta de Moura Sobral, à esquerda estaria São Gonçalo de Amarante, beatificado em 1561. Nas representações das figuras masculinas, das quais apenas mostramos alguns exemplos, constam Santo Alberto Magno, padroeiro dos cultores das ciências naturais, cientistas, filósofos, estudantes e médicos. Também São Pedro Mártir, Grande Inquisidor, taumaturgo e mártir; São Vicente Ferrer, teólogo e pregador, etc.

Aquele que intuímos ser a representação de mais um elemento masculino e que faria com que no tecto estivessem as duas figuras femininas afrontadas, rodeadas pelas figuras masculinas, cujas orientações dos rostos nos permitirão, perante a falta de fontes uma proposta de composição credível.
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Remata esta sequência a figura de uma Santa Dominicana, podendo-se, pelos poucos elementos iconográficos que o tempo e a incúria nos legaram, propor Santa Catarina de Sena, declarada Doutora da Igreja em 1970, em cuja iconografia se inclui o casamento místico com o Menino Jesus. Desta forma se remata o programa com o terceiro ramo da Ordem, compreendendo teólogos e filósofos, mártires e evangelizadores.

Para rematar o esquema laudatório dos dominicanos portugueses, foquemo-nos na figura maior de D. Frei Bartolomeu dos Mártires, Arcebispo de Braga, Primaz Espanhas, que apresentou e defendeu 268 artigos no Concílio de Trento, valendo-lhe a sua doutrina o epíteto de "O Reformador". É considerado na devotio popular como Pai dos pobres e dos enfermos. Aqui a sua representação é idealizada, longe da gravura de Schorquens que o retrata com uma fisionomia pouco agradável mas aparentemente verista.
 

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Ao seu lado vemos o Pregador português mais famoso na esfera nacional e internacional, São Frei Gil, nascido D. Gil de Valadares, em Vouzela no ano de 1184, e falecido em Santarém em 1265. Teólogo e pregador, médico de enorme fama e taumaturgo, formado em Santa Cruz de Coimbra, foi Provincial das Espanhas e morre com fama de santidade. Na mão segura um manuscrito, tratando-se certamente do célebre tratado médico árabe de Al Razi, que Frei Gil ajudou a traduzir aquando da sua estada em Toledo em 1218.

Situando-se junto da enfermaria, a presença de todos estes personagens com ligação à prática médica e à cura fazem todo o sentido, permitindo às enfermas o socorro por que anseiam.

São Gonçalo de Amarante. 1618-1625. António André; Óleo s/ tela proveniente do Convento de Jesus de Aveiro; MA - Nº Inv.º 399/A/foto José Pessoa.

Assim se justifica referir ainda a presença de Santa Joana de Orvieto, advogada contra as dores de dentes, câncer, acidentes apoplécticos (desmaios, afrontamentos, crise conversivas) e febres malignas.
Por último, e sem pretensões de referir todos os que na capela estão representados, São Pedro Gonçalves Telmo, que embora não seja português, foi Prior do Convento de S. Domingos de Guimarães, e é o protector dos pescadores e marinheiros, o que em terra de homens do mar tem o maior cabimento.
Como refere Vítor Serrão16 este conjunto será uma das páginas mais interes¬santes, e seguramente a mais completa, da iconografia dominicana em Portugal, um / 85 / unicum na sua história ainda imperfeitamente estudada, que se evidencia pelo detalhismo da representação e profundidade catequética do seu programa imagético. Este, incluindo figuras que a Igreja ainda não tinha elevado aos altares, procura essencialmente dar voz às vivências e virtudes da Ordem dos Pregadores, cuja importância no quadro nacional era exponencial, casualmente procurando estabelecer uma iconografia credível a ser usada por toda a Ordem.

A Capela de São Domingos e dos Santos da Ordem constituía-se como um Olimpo ou um panteão, no qual se conjugavam as mais caras invocações dos Pregadores, apresentando-se como um modelo sincrético no qual se fundem as magnas representações dos Santos e Beatos dominicanos.

O espólio que dela ainda existe é, por várias razões, notável e precioso, quer pela qualidade da talha e da excepcional imagem relicário do seu orago, quer pelo conjunto pictórico que apresenta, o maior que se conhece do pintor António André, quer ainda, talvez sobretudo, pela erudição e carácter propagandístico do seu programa. Este exalta, não apenas os grandes Santos dominicanos mas sobretudo os Santos, Beatos e candidatos a Santos portugueses: Santa Joana, S. Gonçalo de Amarante, D. Frei Bartolomeu dos Mártires, S. Frei Gil de Vouzela ou Santarém. Nas pinturas, muitos destes personagens foram figurados sentados sobre nuvens e revestiam a quase totalidade das paredes e tecto da capela que, por ser de pequenas dimensões, traria a sensação sedutora e apelativa de estarmos a entrar num céu povoado pelos "Santos da Ordem".

Hoje, afortunadamente, está em vias de ser exposto este precioso legado patrimonial de que Aveiro se deve orgulhar!

BIBLIOGRAFIA

CHRISTO, José António Rebocho, São Domingos Relicário e a Capela de São Domingos e dos Santos da Ordem, in: "A escultura policromada religiosa dos séculos XVII e XVIII – Estudo comparativo das técnicas, alterações e conservação em Portugal, Espanha e Bélgica", Lisboa, Instituto Português de Conservação e Restauro, 2004

GOMES, João Augusto Marques, Museu Regional de Aveiro. Sessão de Arte, 16 de Janeiro de 1916, Aveiro, 1916

GOMES, João Augusto Marques, VASCONCELOS, Joaquim, Exposição Districtal de Aveiro em 1882, Aveiro, Grémio Moderno, 1883

MADAHIL, António Gomes da Rocha, Crónica da Fundação do Mosteiro de Jesus de Aveiro, e Memorial da Infanta Santa Joana filha dei Rei Dom Afonso V (códice quinhentista), Aveiro, Francisco Ferreira Neves, 1939

MECO, José, As artes decorativas, In: "História da Arte em Portugal", Lisboa, Alfa, 1986, voI. 7

QUARESMA, Clementina Carvalho, Reflexões sobre a Capela de São Domingos e Santos da Ordem, "Boletim Municipal de Cultura", Aveiro, CMA, Ano XVIII, n° 35 QUADROS, Rangel de, Aveiro - Apontamentos históricos, policopiado

ROIG,Juan, Iconografia de los Santos, Barcelona, Omega, 1950

SANTOS, Domingos Maurício Gomes dos (s.j.), O Mosteiro de Jesus de Aveiro, Lisboa, C.D. Angola, Museu do Dundo, vol. I / 1-2- 3, voI. II / 1-2-3, 1963
/ 86 /
SERRÃO, Vítor, Estudos de pintura maneirista e barroca, Lisboa, Caminho, 1989

SERRÃO, Vítor, Pintura e propaganda nos programas artísticos dominicanos em Portugal durante a Idade Moderna, policopiado

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SOBRAL, Luís de Moura, Pintura Portuguesa do século XVII – lendas, histórias e narrativas, Catálogo de exposição, Lisboa, IPM, 2004

SOUSA, Frei Luís de, História de São Domingos, Porto, Lello e Irmãos, 1977, voI. I

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(1) – Comunicação apresentada às Jornadas de História Local – Património Documental Aveiro 2011, Biblioteca Municipal de Aveiro, 25 de Novembro de 2011.

* Licenciado em História da Arte pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Desde 1993 exerce funções de conservador no Museu de Aveiro, pertencente ao Instituto dos Museus e da Conservação, IP, no qual é o curador das colecções de pintura, desenho, aguarela, manuscritos e Livro Antigo.

(2) – SANTOS, Domingos Maurício Gomes dos (s.j.), O Mosteiro de Jesus de Aveiro, Lisboa, c.D. Angola, Museu do Dundo, voI. I /1-2- 3, voI. II / 1-2-3, 1963

(3) – QUARESMA, Clementina Carvalho, Reflexões sobre a Capela de São Domingos e Santos da Ordem, "Boletim Municipal de Cultura", Aveiro, CMA, Ano XVIII, nº 35.

(4)Aveiro – Apontamentos históricos, policopiado. Este historiógrafo aveirense situa a Capela de São Domingos e Santos da Ordem no pátio.

(5) – Entre outros, ver: SERRÃO, Vítor, Estudos de pintura maneirista e barroca, Lisboa, Caminho, 1989

(6) – SOBRAL, Luís de Moura, Pintura Por1uguesa do século XVII – lendas, histórias e narrativas, Catálogo de exposição, Lisboa, IPM, 2004

(7) – QUADROS; Rangel de, Aveiro –- Apontamentos históricos, policopiado. P.202 e 206

(8) – É assim designado muito embora se localize no primeiro andar do edifício.

(9) – CFR. QUARESMA, Clementina Carvalho, Museu de Aveiro, Aveiro, AMUSA, 1991, p. 47

(10) – No inventário do museu, realizado em 1922, identifica-se a imagem de São Domingos relicário, inv.º 124/B, com o nº 61 (fig.0) na capela chamada dos Santos da Ordem Dominicana contígua à sala G (...) e que é toda dourada com trinta quadros a óleo; uns em tela, outros em madeira representando Santos da Ordem de S. Domingos. (Inventário do Museu de Aveiro de 1922).

(11) – SANTOS, Domingos Maurício Gomes dos (s.j.), O Mosteiro de Jesus de Aveiro, Lisboa, C.D. Angola, Museu do Dundo, 1963, p. 209

(12) – Era natural que D. Afonso V, seu pai, e o Príncipe Perfeito, seu irmão, almejassem para ela um consórcio numa casa real europeia mas, em boa verdade, nenhum dos cronistas refere estas diligências. Seriam tratadas em "privado"? Parece-nos um argumento pouco consistente pois estas uniões pressupunham grandes mediações e negociações políticas das quais não há, aparentemente, notícia. No entanto existem referências em Rui de Pina, Damião de Góis ou em Garcia de Resende de manobras diplomáticas com as cortes em relação às quais se ambiciona, como refere Margarida Pinheiro, o enlace, e são elas a Inglaterra, a França e o Sacro Império Romano-Germânico. Pode, à falta de dados mais consistentes, imaginar-se que, tendo acesso ao conteúdo narrado nas crónicas, fossem os dados metamorfoseados em esponsais. Além do mais era altamente dignificante e significativo que, para além de prescindir dos apanágios de Princesa, D. Joana tenha também abdicado de ser rainha, pondo em evidência a opção feita de viver pobre e em clausura, apartada de toda a mundanidade. Toda esta encenação ganhava ainda mais créditos quando, por vontade divina, os pretendentes morriam antes que o contracto dos nubentes pudesse ser realizado – não era esse o esposo que queria a Infanta, mas sim o Altíssimo como refere o "Memorial", pondo-se o próprio Deus solidário com a opção tomada e tomando-se o mito por milagre.

(13) – QUADROS, Rangel de, Aveiro – Apontamentos históricos, policopiado. p.159

(14) – SMITH, Robert, A talha em Portugal, Lisboa. Livros Horizonte. sd. pp.49-52

(15) – SERRÃO, Vítor, Pintura e propaganda nos programas artísticos dominicanos em Portugal durante a Idade Moderna, policopiado. artigo gentilmente facultado pelo autor

(16) – SERRÃO, Vítor, Pintura e propaganda nos programas artísticos dominicanos em Porlugal durante a Idade Moderna, policopiado, artigo gentilmente facultado pelo autor
 


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