Manuel Barreira
Quem, saindo da Avenida Lourenço
Peixinho, se dirigir para Esgueira, pela Rua Luís
Gomes de Carvalho, logo que entrar na Rotunda de Sá
e antes de começar a descer para o viaduto sob o
Caminho de Ferro (Rua de Viseu), olhar sobre a sua
direita, poderá constatar a existência de um moinho
de vento em ruínas, metido entre a vegetação de um
terreno vago. Muita poucas pessoas saberão que esse
moinho é antiquíssimo, talvez o "edifício" mais
antigo de todo o actual concelho de Aveiro. A
referência escrita mais antiga que dele temos é numa
carta do rei D. Dinis, ordenando a demarcação das
fronteiras entre Esgueira e Sá, precisamente do ano
de 1309, a 3 de Abril.
Até muito recentemente (reformas
administrativas do Liberalismo), toda a área a
poente da actual variante à Estrada Nacional 109,
desde Verdemilho até Cacia, era formada em três
concelhos distintos e autónomos: Aveiro, Sá e
Esgueira, além do concelho de Aradas, que ficava a
Sul dessa Estrada.
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A zona do baixo Vouga, em que Aveiro se situa é uma
zona alagadiça e fora das rotas de passagem do Norte
para Sul durante os tempos romanos e medieval (que
utilizariam a estrada romana que passava por
Albergaria-a-Velha). Esta zona só começou a ser
colonizada primeiro pelos muçulmanos e depois pelos
cruzados nórdicos a partir do séc. IX. E foram estes
últimos que terão introduzido e desenvolvido a
exploração do sal, à maneira das salinas da
Bretanha.
Com a reconquista do território
do Norte para Sul, a política da presúria
levou a que os nobres portucalenses se fossem
assenhoreando das salinas, já abundantes e ricas. E
os documentos dos séculos IX, X e XI, compilados por
Alexandre Herculano, repetidamente falam das salinas
em Alavarium (Aveiro), Esgeira (Esgueira) e Sala
(Sá). Estes nobres, com as suas políticas de
casamentos e heranças entre as várias famílias,
repartiram todas estas ricas terras entre si e, em
dotes aos filhos e filhas segundos que ingressavam
nos ricos Conventos e Mosteiros, fizeram com que A
veiro, Esgueira, Sá e Aradas estivessem repartidas
pelos Mosteiros de Lorvão, Santa Cruz de Coimbra,
Tarouca e Arouca, Vacariça e Sé de Coimbra. Porém,
D. Dinis, reconhecendo as grandes potencialidades
económicas de Aveiro, em 1306 promove escambos, isto
é, trocas com os Mosteiros de S. João de Tarouca e
Celas de Coimbra de modo a unificar a vila de A
veiro em seu poder directo. Esgueira continuou em
poder do Mosteiro do Lorvão. O lugar de Sã, que não
estava integrado na posse de nenhum destes
mosteiros, já era lugar reguengo, mas sempre
permaneceu emancipado daquela unificação,
continuando sempre a ser nomeado separadamente. E em
1354 é referido ligado a Ílhavo numa doação daqueles
dois lugares, como dote de casamento, de D. Afonso
IV a sua filha Infante D. Maria. Por isso Sá ficou a
pertencer a Ílhavo desde essa data até 1835.
O termo (isto é, a fronteira) de
Aveiro acabava num descampado logo a seguir ao
Convento do Carmo. Para o lado do Canal de S. Roque
já não havia mais casas. Para o lado sul eram os
terrenos das Amelas, terrenos agrícolas com algumas
casas de agricultores. Para nascente, seguindo a
estrada de A veiro a Esgueira, actuais ruas do Carmo
e de Sã, e até a Capela de Nossa Senhora da Alegria,
também denominada de Santa Maria de Sã, e flectindo
para a direita pela rua que hoje constitui o
prolongamento para Nascente da Força Aérea
Portuguesa e até ao referido moinho de Esgueira, as
casas do lado direito (a sul), pertenciam a Aveiro;
as do lado esquerdo pertenciam a Sã, incluindo a
mesma Capela.
Assim o território de Sá fazia
fronteira com o de Aveiro e com o de Esgueira. Com
este concelho houve problemas de demarcação que
originaram uma inquirição mandada fazer pelo Rei e
na qual o Almoxarife Régio de Ega, o seu escrivão e
o Juiz de Esgueira, este como representante da
Abadessa do Mosteiro do Lorvão, senhoria de
Esgueira, percorreram as extremas e plantaram marcos
de pedra nos sítios mais representativos. Assim,
partiram do Vale de Sã, junto ao actual canal de São
Roque, e
"o primeiro marco foi metido
no dito vale que chamam de Sá, abaixo da carreira
(estrada) que vai de Aveiro para Esgueira contra o
mar. E o segundo marca foi metido sobre a dita
carreira contra suso (logo acima) da dita carreira
em meios. E o
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terceiro e quarto marcos foram metidos na chousa
(horta) que foi de Domingos Feres Berlingo, de
Esgueira, contra suso (do lado de cima). E o quinto
marco foi metido contra suso na chousa que é de João
Domingos Queima Casas, de Esgueira, contra o (do
lado do) lugar que chamam Espadaneira. E o sexto
marco foi metido no lugar que chamam Espadaneira. E
o sétimo marco foi metido contra cima no lugar que
chamam (sic). E o oitavo marco foi metido contra
suso no canto da chousa que foi de ... (ilegível)
Magro, a par da carreira que ch amam dos Arneiros. E
esse oitavo marco passa pela divisão de pedra do
conto (demarcação) que está sobre o moinho que parte
o termo entre Aveiro e Esgueira...)"
(para mais fácil leitura,
adaptámos a escrita)
Se consultarmos o Tombo da Vila
de Esgueira, na documentação do Mosteiro do Lorvão,
guardada no Arquivo da Universidade de Coimbra,
mandado fazer pela abadessa daquele Mosteiro e
elaborado pelo Doutor Francisco de Bastos Monteiro,
nos princípios do séc. XVIII, veremos que o mesmo
moinho nos é referido como marco de divisão dos três
concelhos.
De igual modo, o Tombo da Casa de
Aveiro, elaborado pelo mesmo Juiz do Tombo, nos anos
de 1696 a 1705, coincide na demarcação e nomeia o
mesmo moinho.
Trata-se portanto de uma preciosa
relíquia de antiquíssimos tempos, um importante
testemunho das nossas raízes. Felizmente aquele
terreno ainda não foi objecto da cobiça de
construtores gananciosos, como, infelizmente, têm
sido tantos outros. É preciso evitar que o venha a
ser.
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Também aqui deixamos o nosso apreço ao proprietário
do terreno que soube conservar esta relíquia.
É preciso conservar estes
testemunhos do passado. Mas conservar não significa
que tudo fique como está, até cair de podre.
Conservar significa utilizar,
valorizar, usufruir. Muito em breve, naquele terreno
se construirá um prédio de apartamentos. É
inevitável. E o moinho não pode ser um entrave ao
progresso, antes o deve valorizar, como ponto de
atracção turística e cultural e, de preferência,
também económica, artisticamente integrado no novo
prédio. |