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"Patrimónios" – n.º 1, Abril 2001, ano XXII, 2ª série, 160 páginas


A CAPITANIA EX LIBRIS DA CIDADE DE AVEIRO

COMENTÁRIO CRÍTICO E EVOCAÇÃO DA SUA HISTÓRIA

Maria João Fernandes

"(..) a obra de arte o único meio de reaver o Tempo Perdido (..)."
Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido (Vol. VII - O Tempo Redescoberto)

De Edifício da Escola Industrial Fernando Caldeira (1903-1918) a Capitania do Porto de Aveiro

1. História do Edifício

O Edifício da Capitania do Porto de Aveiro, ou dos "arcos", hoje propriedade da Câmara Municipal de Aveiro, é uma das primeiras obras de grande vulto do projectista e arquitecto, por mérito do trabalho que realizou, Francisco Augusto da Silva Rocha. Em 1903 foi autor, como já referimos, da primeira grande remodelação deste edifício, que então era pertença do seu sogro João Pedro Soares, por motivo da instalação nesse imóvel da Escola de Desenho Industrial de que era Director.

Da história do edifício dá testemunho Rangel de Quadros Oudinot, historiador aveirense, citado por Manuel Rodrigues (1): "No Cojo, no sítio do Ilhote, eleva-se um edifício onde está a Aula Industrial. Pertenceu à família Ferreira Pinto. Em 1880, começou a funcionar aí uma fábrica de moagens a vapor, da qual era proprietário o Dr. Francisco Lourenço de Almeida Medeiros, de Fermelã, conhecido aqui pelo nome de Almeidinha (...) cuja existência foi de curta duração "devido à má administração do proprietário que nem dos próprios haveres soube ser bom administrador". O autor situa o edifício na malha urbana da cidade" no sítio do Cojo ao nascente de um dos braços da Ria. Até certa época, apenas teria um andar e dava passagem para ele por uma ponte de madeira. Foi construído em 1830 (...) "Sob o mesmo andar, e como formando pequenas abóbadas, existiam uns vãos em arco, onde umas rodas deveriam mover umas mós colocadas no interior do edifício. E essas rodas, destinadas como as de todos os moinhos de água, deveriam girar com o fluxo e refluxo da Ria." Esta empresa, como já foi referido, não durou muito, em parte devido ao mau estado da barra que dificultava este processo. Rangel de Quadros descreve o edifício que no interior "só tinha um amplo recinto que mais tarde foi dividido, conformemente às aplicações que lhe foram dadas. Não era muito elevado. Para o lado do poente existiam como ainda existem, onze janelas de peitoril, não grandes e com a padieira em arco abatido. Todas são formadas de pedra granítica". O mesmo autor esclarece que já tinham existido ali umas azenhas, / 106 / aspecto que Manuel Barreira, outro historiador de Aveiro, desenvolve no estudo que dedicou ao tema (2).

Manuel Barreira faz remontar o edifício a umas "azenhas ou moinho de maré edificado em 1406 por Álvaro Gonçalves, escrivão da Câmara de D. João I" e acrescenta que "por um documento da Chancelaria daquele Rei, de 8 Janeiro de 1406, sabemos que foi autorizado aquele nobre a fazer em Aveiro umas moendas "no esteiro do mar que entra pela ponte do dito lugar, acima da dita ponte, que moesse com água do mar" (3). As azenhas pertenceram posteriormente a D. Pedro filho de D. João I, Duque de Coimbra e Senhor de Aveiro a quem se devem grandes reformas e novas edificações na cidade, como o Mosteiro de S. Domingos e depois ao conde de Odemira a quem foram doadas a seguir à morte deste (4). A carta de doação de D. Afonso V ao Conde de Odemira, de 6 de Julho de 1449, é aliás também mencionada por Manuel Rodrigues e nela são referidas "duas azenhas que sam no Ryo que vay per a Junto da villa daaveiro que mooem com aaguoa do mar que foram do Iffante dom pedro" (5).

Seguindo o fio da história dos moinhos de maré em Aveiro, Manuel Barreira conclui que "as azenhas estiveram, daí para diante, sempre mais ou menos ligadas ao senhorio da vila, embora quase sempre aforadas a nobres ou burgueses que delas tiravam bons proventos" e faz o levantamento dos seus vários proprietários até à expansão ultramarina, período que corresponde à sua desvalorização. Em 1700 pertenciam a António de Távora Noronha e Leme, fidalgo residente no Porto. Os anteriores proprietários como refere o Tombo, que cita, tinham assistido passivamente à total degradação da casa da azenha e o actual fora intimado pelo Juiz do Tombo a fazer obras, que se desconhece se chegaram ou não a realizar-se. Em 1830, segundo Manuel Barreira, o edifício terá sido reconstruído por Gustavo Ferreira Pinto Basto e não construído como refere Rangel de Quadros (citado por Manuel Rodrigues). Em 1865 foi armazém para encaixotar e exportar laranjas para Inglaterra e no ano seguinte sede do Jornal "O Districto de Aveiro". Em 1880 e como já referimos o edifício foi utilizado como fábrica de moagens a vapor, tendo servido ainda como tanoaria.

A reconstrução de que foi alvo em 1903, com a traça de Silva Rocha, transforma o antigo edifício de um piso, descrito por Rangel de Quadros Oudinot, anterior propriedade de Gustavo Ferreira Pinto Basto e antiga fábrica de moagens entre muitos outros destinos que teve posteriormente e que já referimos, num bem lançado edifício de dois pisos, como podemos verificar em fotografia do arquivo da Casa Ramos.

 

2. O Modelo Clássico para o Início da Criação de uma Gramática Arte Nova

A nova construção que refez totalmente a que existia antes, mantendo os tradicionais arcos, suporte dos moinhos de maré, passa então a apresentar dois pisos, com uma estrutura semelhante à que actualmente conhecemos, mas que não incluía a emblemática e assimétrica torre lateral, surgida com a remodelação de 1918. Não se conhece desenho destas obras, nem da sua posterior remodelação. Em 1903 a composição é geométrica e classicizante, dividida por uma faixa de pedra que percorre horizontalmente a fachada, separando os dois / 107 / pisos, rematados por um frontão triangular. As janelas alinham-se de modo regular e repetitivo, as do piso superior ligeiramente alongadas, separadas ao centro por um janelão duplo emoldurado por frisos de pedra.
 
  Capitania de Aveiro - Clicar para ampliar.  
 

De Escola Industrial a Capitania do Porto de Aveiro. Autoria de Francisco Augusto da Silva Rocha.

 

Na remodelação de 1918 toma-se particularmente expressivo o contraste entre a fachada assimétrica, com três pisos na torre e dois no corpo e a fachada simétrica, valorizada pelo reflexo das águas. O efeito de simetria produz-se em relação à proeminência do elemento central, corpo de janelas geminadas com verga unitária ladeada por pilastras rematando em volutas campeando a decoração que sobrepuja o frontão triangular. A composição do remate apoia-se em lacrimais decorativos fazendo um contraponto com o remate do entablamento do piso superior. Ressalta a alternância de cheios e vazios sabiamente compostos e campeados ritmicamente pelas proporções clássicas das molduras do remate superior.

A unidade do edifício na fachada lateral que dá para a Av. Lourenço Peixinho, é criada pela continuidade plástica dos vãos, tanto no plano horizontal nos dois pisos da fachada assimétrica, como verticalmente nos três pisos da torre, acompanhando a regularidade da composição de proporções clássicas. A notar ainda a grande unidade entre o entablamento do elemento central de remate – a platibanda do primeiro piso e o travejamento em cantaria, com molduras de proporções idênticas, que igualmente seguem as cantarias em consola, quer da varanda do elemento central apoiada em três cachorros, quer da existente ao longo de quase toda a fachada. Esta, no piso térreo, ritma as aberturas, estabelecendo uma grande harmonia em relação à proeminência do corpo central, de cheios e vazados, entre os quatro janelões simétricos deste piso e as oito pequenas janelas do primeiro piso.
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A configuração simples e regular do imóvel em 1903, toma-se o ponto de partida ideal para o exercício de mestria decorativa de que será alvo em 1918, já sob o signo da Arte Nova e que mantém a primitiva pureza de linhas, criando uma dinâmica subtil entre as rectas que orientam os ritmos da fachada e a dividem e as vergas curvas que passam a encimar as janelas, largas, tripartidas e serlianas no rés-do-chão e alongadas nas partes laterais do primeiro piso. A larga janela dupla, ao centro, no primeiro piso é ressaltada por uma guarda de serralharia artística e emoldurada por pilastras que se prolongam no frontão triangular e são rematadas por arabescos. As duas janelas centrais de diferente desenho definem dois níveis de leitura no plano horizontal e no plano vertical, uma repetição com variações, a coexistência da diferença dentro da semelhança, imagem dos próprios ciclos da natureza. As pilastras prolongando os eixos que partem dos vértices do frontão, definem a já referida proeminência central, processo de função exclusivamente decorativa, que o autor utilizará noutros casos, com variantes. O jogo das verticais e das horizontais, acentua a dinâmica da composição pautada por um grande equilíbrio, comunicando a mesma serenidade e simultaneamente o movimento, das águas que deslizam calmamente e sempre diversas, sob os arcos do edifício, os mesmos que sustentavam os moinhos de maré, mantidos, elo com a tradição e com o tempo passado. Pequenos cachorros sustentam decorativamente a cimalha e a balaustrada em que se apoia o frontão, ritmo repetitivo no plano horizontal, que encontra uma correspondência na comprida varanda enriqueci da com serralharia decorativa que sublinha a base do edifício.

A fachada sobre a Avenida do Dr. Lourenço Peixinho, reproduz com variantes as proporções da fachada principal e prolonga-se numa torre lateral. Os amplos vãos são de diferente proporção e desenho, ornamentado por um frontão triangular o inferior, duplo, repartido ao centro e terminando em suaves curvas, o do piso superior. A sobreposição de ambos e as suas molduras em pedra, desenham igualmente um corpo central, puramente decorativo e rematado por um frontão circular, com volutas. A verticalidade da torre lateral é acentuada pelas janelas alongadas, sobrepondo-se à porta de estilizado desenho geométrico, composto por aberturas decoradas com serralharia artística. Sobre a porta um painel de azulejos em tons de azul, com uma concha e motivos florais, emoldurado em pedra, regista a data da remodelação do edifício: 1918. Um friso de azulejos, também em tons de azul, com navios, em cenas características da região, quebra com os seus ritmos horizontais, os ritmos verticais das janelas de bandeira curva, recriando uma animada dinâmica entre linhas rectas, curvas, horizontais e verticais. Pequenos e decorativos cachorros, sustentam a cimalha da torre quadrangular, que ao que nos parece por foto de arquivo era coberta por um telhado de quatro águas, hoje desaparecido.

Sobre o interior do edifício, hoje totalmente destruído e na inexistência de desenho, devemos limitar-nos às referências da imprensa da época (6), que descreve as salas vastas, cheias de luz e muito regulares e as principais dependências do rés-do-chão: vestíbulo de entrada, corredor e vestuário, aula nocturna de instrução primária, aula de cerâmica, modelação e water closed e do primeiro andar: aulas de desenho elementar, de desenho / 109 / ornamental, secretaria e biblioteca, galeria, museu e water closed. No rés-do-chão as aulas dariam naturalmente para a ria em frente, providas das amplas janelas e estariam separadas das outras dependências por um corredor. No primeiro andar as aulas beneficiariam igualmente da luz das muitas janelas, que partilhariam talvez com a biblioteca.

No exterior ressalta a preocupação decorativa do autor, não sobrepondo-se, nem acrescentando-se ao modelo geométrico que está na sua origem, mas com ele formando parte integrante, num jogo vitalista e dinâmico de linhas, que perfeitamente se plasma ao equilíbrio geral do conjunto, acentuando-o. A mestria do desenho, o seu domínio, a consciência do lugar, o centro da cidade percorrido pelo espelho tranquilo e fluido da ria, explicam talvez, sem reduzirem o seu fascínio, a perfeita integração do edifício no espaço a que pertence, sobre o fundo movente das águas, transmitindo uma absoluta serenidade, uma harmonia que resulta afinal da conjugação dos contrastes que envolve. Curvas e rectas, horizontalidade e verticalidade, repetição e variação, são elementos de um vocabulário plástico e simbólico que nos remete para o próprio espírito da natureza ela mesma e eternamente outra, em fuga, em crescimento e em metamorfose. Uma natureza que é modelo, mas que não se impõe como modelo, que aceita ser o espelho dócil dessa outra natureza, humana, desse espírito em busca da sua metade, da sua metáfora viva.

Há uma troca, um diálogo, uma corrente de energias, de segredos. A arquitectura, como toda a arte, configura o mistério de um sentido de que a forma é a única expressão possível. A forma testemunha aqui o equilíbrio, a permanência e a mobilidade, o fluxo dos aspectos. Uma imagem do mundo é construída, entre a horizontalidade e a verticalidade, a terra e o céu, a imanência e a transcendência. Um pequeno, harmonioso templo para o humano, na sua comunhão com a natureza. Esse o espírito da Arte Nova. Se o classicismo procura na natureza um modelo de equilíbrio e o maneirismo considera o espírito, as suas contradições e problemas o modelo da criação, ponto de vista desenvolvido por Gustav René Hocke em obra que dedicou a este tema (7), a atmosfera finissecular da Arte Nova, aquilo que nela é mais original e característico, tende a anular a distinção entre natureza e ideia, fazendo da ideia o modelo da natureza e da natureza o modelo da ideia. Complexo jogo de reciprocidades, que o espelho natural e conceptual das águas da ria representa e simboliza, no caso do edifício que consideramos inaugurar a criação de Silva Rocha, na linha de uma gramática Arte Nova. O espelho das águas não existe por acaso no cenário de uma construção – a Escola Industrial – que identificou o próprio universo mental e espiritual de uma pedagogia voltada para a relação entre a arte e as manufacturas que lhe estão associadas. O espírito configurando a matéria, a matéria inspirando-o. A água é ela mesma matéria e espelho, fonte de imagens. Ao espelhar o edifício, prolonga-o, devolve-nos uma imagem, não a corporeidade de uma matéria. Um duplo, feito para durar enquanto permanecer a luz e que vai enrubescendo, mergulhando em ouro e em sombras, com o correr das horas e dos dias. Esse duplo permite-nos sonhar, ele é abertura não para o vazio de uma ausência anunciada, a que o tempo vai imprimindo às formas, mas para uma plenitude evanescente, tão efémera como a realidade ela mesma, de que é símbolo. Plenitude de uma relação, de / 110 / uma conjugação, de uma totalidade entre a matéria e o seu duplo, a existência e a sua transcendência. Essa conjugação para existir tem de comunicar-se, tem de ser representada, tem de ter uma forma que possa ser transcendida. Silva Rocha encontra neste caso a forma possível, a forma exacta, a coincidência mágica entre o espírito e o seu lugar, extensiva à cidade onde cresceu a semente da sua obra e dos seus ensinamentos.

Do ponto de vista formal o edifício dos arcos revela um modelo clássico, na regularidade da sua volumetria e das suas formas, na bidimensionalidade a que apela a percepção da sua fachada principal, feita para ser vista e apreciada ao centro do espaço que domina. Mas por outro lado vista com detalhe, no seu desenho e na composição há uma autonomização dos vários elementos que a constituem, formando módulos independentes dentro da unidade que o todo comunica, há uma não-clássica assimetria dos elementos que formam os dois pisos e, vista no seu conjunto, a regularidade da volumetria é quebrada pela torre lateral. Dissonância e variação dentro da repetição de elementos compositivos, geometria e invenção, conjunção da realidade e do seu simulacro, o reflexo em espelho, numa relação, não de poder, de domínio da natureza, mas de amorosa sedução, de mútua fascinação, que envolve neste processo o olhar.

Silva Rocha pintor, incluiu na sua construção o espelho da natureza. A regularidade, o equilíbrio do edifício respondem à serenidade e ao movimento das águas e ao mesmo tempo alguma coisa se distingue e se impõe a este líquido pedestal, uma monumentalidade feita de elegante contenção, de regularidade e de surpresa, dos ritmos horizontais do repouso e dos sonhos da vontade, vertical ímpeto a que o triângulo dá um sentido. Símbolo alquímico do fogo e do coração, o triângulo representa uma ordem cósmica, a união da Luz e das Trevas, os lados unindo-se no topo, sobre a base do tempo. União de princípios, a noite e o dia, a terra e o céu, o humano e o divino.

A arquitectura transmite sempre um sentido. Neste caso o sentido não é da ordem do poder religioso ou temporal, mas aponta para um poder, o de uma linguagem cifrada, que une imperceptivelmente, através da forma, da matéria e do seu reflexo imaterial, o homem e o seu habitat, um respondendo ao outro, um evocando, invocando o outro. Este o espírito, o élan muito pessoal que Silva Rocha imprimiu ao ponto de partida da linguagem de uma gramática Arte Nova que iria desenvolver com grande rigor e inconfundível fantasia criativa, nos anos seguintes.

Sensivelmente no mesmo período, em 1897, Charles Rennie Mackintosh, projectava a famosa Escola de Arte de Glasgow, um dos mais emblemáticos edifícios da Arte Nova Internacional e que se deve à iniciativa do seu Director Francis H. Newbely. A primeira pedra seria colocada a 25 de Maio de 1898, embora as obras das fundações tivessem começado no final de 1897. Uma segunda fase das obras decorreria entre 1907 e 1909. A ala este da escola abriria em 1899, compreendendo "a espantosa entrada assimétrica que fornecia à fachada norte o seu elemento visual principal" (8). Os trabalhos correspondentes à ala oeste começaram em 1907 e acabaram em 1909. A volumetria maciça delineada segundo grandes planos geométricos, é quebrada pelas assimetrias e pela introdução de largas janelas / 111 / envidraçadas que aligeiram extraordinariamente o conjunto, conferindo leveza à solidez que comunica. As proporções dos vãos distribuem-se de modo irregular em jogos de assimetrias, de curvas 'e de rectas. No interior a decoração e o mobiliário desenhados por Mackintosh acompanham a modernidade do edifício, pautada pelos princípios estéticos da Arte Nova, igualmente expressos, de modo diverso, na Escola Industrial Femando Caldeira que Silva Rocha projectou no início do século em Aveiro. Em 1903 Mackintosh realizaria aliás para uma outra escola a Scotland Street School, terminada em 1906, o que é considerado o seu projecto mais inovador. O edifício, tal como o que comentámos anteriormente, é dotado de duas imponentes e simultaneamente leves torres envidraçadas, que introduzem um dinâmico contraponto à horizontal idade manifesta do conjunto. O arquitecto escocês movia-se num círculo propício à inovação, integrava-se num grupo, os quatro de Glasgow -formado por ele próprio, pela sua mulher Margaret Macdonald (1864-1933) e pela irmã desta Frances (1873-1921), casada com J. Herbert Mc Nair (1868-1955), que por sua vez também fazia parte do grupo –, trabalhando em uníssono, segundo os padrões de uma nova estética europeia, que a Portugal só chegava pelos livros e revistas, de que Silva Rocha era aliás assíduo leitor, tendo assimilado as leis de uma estética voltada para a descoberta de uma nova liberdade criativa inspirada pela natureza, mas capaz de a transcender através de uma estilização de exuberantes ritmos curvilíneos ou de uma depuração geométrica. O arquitecto aveirense iniciou o seu percurso criativo na Escola da qual foi fundador pela eleição de um modelo clássico, arquétipo do equilíbrio e da harmonia de uma razão aberta às surpresas da fantasia, matriz que se torna a base dos seus exercícios de uma liberdade criativa no plano da composição e no plano decorativo, modelo perfeitamente integrável numa estética Arte Nova.

Em 1903, como vimos, Mackintosh projectou a Scotland Street School, considerada o mais moderno dos seus edifícios. As duas torres que contêm as escadas, largamente envidraçadas, criam um efeito de verticalidade que contrasta com o conjunto que se desenvolve na horizontal, enquanto que os tectos em "pimenteiro" são inspirados pela arquitectura escocesa tradicional (9). Também Silva Rocha exploraria o contraste entre a verticalidade da proeminência do elemento central, uma característica do edifício da Escola Industrial em 1903 e a marcada horizontalidade do conjunto, confrontada ainda dinamicamente com a torre lateral, um elemento estruturalmente assimétrico e decorativamente expressivo de uma estética Arte Nova. Também Silva Rocha tiraria partido de uma situação claramente vinculada à arquitectura tradicional, os arcos dos antigos moinhos de maré, que ritmam o modo como coloca os vãos, tanto em 1903, como em 1918. A modernidade deste edifício reside sobretudo na forma como ao apoiar-se nas bases de uma tradição, que inclui o modelo clássico em que se inspira, a subverte no ilusionístico jogo de efeitos fundamentalmente visuais, nos quais participa cúmplice, o espelho das águas, uma natureza destinada como em toda a estética Arte Nova, não apenas a reflectir, ou a reflectir-se, mas a induzir no território de uma sensorialidade que amplia os territórios da alma.
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NOTAS:
1. R. Rangel de Quadros Oudinot, Aveiro Apontamentos Avulsos (manuscritos) de 1911 a 1916 pgs 116/117. Citado por Rodrigues, Manuel Ferreira in op. cit. pág. 23.

2. Manuel Barreira – "O Largo do Cojo, Azenhas e Ilhote"– Aveiro, Boletim Municipal, Ano XIV N° 27, Junho de 1996.

3. Arquivo Nacional da Torre do Tombo Chancelaria de D. João I, Livro 3, fl. 52 v.

4. Milenário de Aveiro - Colectânea de Documentos Históricos, 1, pág. 205.

5. Idem, ibidem.

6. Jornal "O Povo de Aveiro" nº 1021 de 8 de Novembro de 1903, pág. 3, col. 2.

7. Hocke, Gustav René – Labyrinthe de L' Art Fantastique, Paris, Éditions Gonthier, 1967, págs. 60 e 61.

8. Fiell, Charlotte & Peter – Charles Rennie Mackintosh (1868-1928) – Lisboa, Londres, Nova Iorque, Osaka, Paris, Colónia, Editora Taschen, 1997, pág. 57.

9. Fiell, Charlotte & Peter – Op. cit., pág. 130.


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