Maria João Fernandes
"(..) a obra de arte o único meio de reaver o Tempo
Perdido (..)."
Marcel Proust, Em Busca do Tempo
Perdido (Vol. VII - O Tempo Redescoberto)
De Edifício da Escola Industrial Fernando Caldeira
(1903-1918) a Capitania do
Porto de Aveiro
1. História do Edifício
O Edifício da Capitania do Porto de Aveiro, ou dos
"arcos", hoje propriedade da Câmara Municipal de
Aveiro, é uma das primeiras obras de grande vulto do
projectista e
arquitecto, por mérito do trabalho que realizou,
Francisco Augusto da Silva Rocha. Em
1903 foi autor, como já referimos, da primeira
grande remodelação deste edifício, que então era
pertença do seu sogro João Pedro Soares, por motivo
da instalação nesse imóvel da Escola de Desenho
Industrial de que era Director.
Da história do edifício dá testemunho Rangel de
Quadros Oudinot, historiador
aveirense, citado por Manuel Rodrigues (1): "No Cojo,
no sítio do Ilhote, eleva-se um edifício onde está
a Aula Industrial. Pertenceu à família Ferreira
Pinto. Em 1880, começou a funcionar aí uma fábrica
de moagens a vapor, da qual era proprietário o Dr.
Francisco Lourenço de Almeida Medeiros, de Fermelã,
conhecido aqui pelo nome de Almeidinha (...) cuja
existência foi de curta duração "devido à má
administração do proprietário que nem dos próprios
haveres soube ser bom administrador". O autor situa
o edifício na malha urbana da cidade"
no sítio do Cojo ao nascente de um dos braços da
Ria. Até certa época, apenas teria um
andar e dava passagem para ele por uma ponte de
madeira. Foi construído em 1830 (...) "Sob o mesmo
andar, e como formando pequenas abóbadas, existiam
uns vãos em arco, onde umas rodas deveriam mover
umas mós colocadas no interior do edifício. E essas
rodas, destinadas como as de todos os moinhos de
água, deveriam girar com o fluxo e refluxo da Ria."
Esta empresa, como já foi referido, não durou muito,
em parte devido ao mau estado da barra que
dificultava este processo. Rangel de Quadros
descreve o edifício que no interior "só tinha um
amplo recinto que mais tarde foi dividido,
conformemente às aplicações que
lhe foram dadas. Não era muito elevado. Para o lado
do poente existiam como ainda existem,
onze janelas de peitoril, não grandes e com a
padieira em arco abatido. Todas são formadas de
pedra granítica". O mesmo autor esclarece que já
tinham existido ali umas azenhas,
/
106 /
aspecto que Manuel Barreira, outro historiador de
Aveiro, desenvolve no estudo que dedicou ao tema
(2).
Manuel Barreira faz remontar o edifício a umas
"azenhas ou moinho de maré edificado em 1406 por
Álvaro Gonçalves, escrivão da Câmara de D. João I" e
acrescenta que "por um documento da Chancelaria
daquele Rei, de 8 Janeiro de 1406, sabemos que foi
autorizado aquele nobre a fazer em Aveiro umas
moendas "no esteiro do mar que entra pela ponte do
dito lugar, acima da dita ponte, que moesse com água
do mar" (3). As azenhas pertenceram posteriormente
a D. Pedro filho de D. João I, Duque de Coimbra e
Senhor de Aveiro a quem se devem grandes reformas e
novas edificações na cidade, como o Mosteiro de S.
Domingos e depois ao conde de Odemira a quem foram
doadas a seguir à morte deste (4). A carta de doação
de D. Afonso V ao Conde de Odemira, de 6 de Julho de
1449, é aliás também mencionada por Manuel Rodrigues
e nela são referidas "duas azenhas que sam no Ryo
que vay per a Junto da villa daaveiro que mooem com
aaguoa do mar que foram do Iffante dom pedro" (5).
Seguindo o fio da história dos moinhos de maré em
Aveiro, Manuel Barreira conclui que "as azenhas
estiveram, daí para diante, sempre mais ou menos
ligadas ao senhorio da vila, embora quase sempre
aforadas a nobres ou burgueses que delas tiravam
bons proventos" e faz o levantamento dos seus vários
proprietários até à expansão ultramarina, período
que corresponde à sua desvalorização. Em 1700
pertenciam a António de Távora Noronha e Leme,
fidalgo residente no Porto. Os anteriores
proprietários como refere o Tombo, que cita, tinham
assistido passivamente à total degradação da casa da
azenha e o actual fora intimado pelo Juiz do Tombo a
fazer obras, que se desconhece se chegaram ou não a
realizar-se. Em 1830, segundo Manuel Barreira, o
edifício terá sido reconstruído por Gustavo Ferreira
Pinto Basto e não construído como refere Rangel de
Quadros (citado por Manuel Rodrigues). Em 1865 foi
armazém para encaixotar e exportar laranjas para
Inglaterra e no ano seguinte sede do Jornal "O Districto de Aveiro". Em 1880 e como já referimos o edifício foi utilizado como fábrica de moagens a
vapor, tendo servido ainda como tanoaria.
A reconstrução de que foi alvo em 1903, com a traça
de Silva Rocha, transforma o antigo edifício de um
piso, descrito por Rangel de Quadros Oudinot,
anterior propriedade de Gustavo Ferreira Pinto Basto
e antiga fábrica de moagens entre muitos outros
destinos que teve posteriormente e que já referimos,
num bem lançado edifício de dois pisos, como podemos
verificar em fotografia do arquivo da Casa Ramos.
2. O Modelo Clássico para o Início da Criação de uma
Gramática Arte Nova
A nova construção que refez totalmente a que existia
antes, mantendo os tradicionais arcos, suporte dos
moinhos de maré, passa então a apresentar dois
pisos, com uma estrutura semelhante à que
actualmente conhecemos, mas que não incluía a
emblemática e assimétrica torre lateral, surgida com
a remodelação de 1918. Não se conhece desenho destas
obras, nem da sua posterior remodelação. Em 1903 a
composição é geométrica e classicizante, dividida
por uma faixa de pedra que percorre horizontalmente
a fachada, separando os dois
/
107 /
pisos, rematados por um frontão triangular. As
janelas alinham-se de modo regular e repetitivo, as
do piso superior ligeiramente alongadas, separadas
ao centro por um janelão duplo emoldurado por frisos
de pedra.
|
|
|
|
De Escola Industrial a Capitania do Porto de Aveiro.
Autoria de Francisco Augusto da Silva Rocha. |
|
Na remodelação de 1918 toma-se particularmente
expressivo o contraste entre a fachada assimétrica,
com três pisos na torre e dois no corpo e a fachada
simétrica, valorizada pelo reflexo das águas. O
efeito de simetria produz-se em relação à
proeminência do elemento central, corpo de janelas
geminadas com verga unitária ladeada por pilastras
rematando em volutas campeando a decoração que
sobrepuja o frontão triangular. A composição do
remate apoia-se em lacrimais decorativos fazendo um
contraponto com o remate do entablamento do piso
superior. Ressalta a alternância de cheios e vazios
sabiamente compostos e campeados ritmicamente pelas
proporções clássicas das molduras do remate
superior.
A unidade do edifício na fachada lateral que dá para
a Av. Lourenço Peixinho, é criada pela continuidade
plástica dos vãos, tanto no plano horizontal nos
dois pisos da fachada assimétrica, como
verticalmente nos três pisos da torre, acompanhando
a regularidade da composição de proporções
clássicas. A notar ainda a grande unidade entre o
entablamento do elemento central de remate – a platibanda do primeiro piso e o travejamento em
cantaria, com molduras de proporções idênticas, que
igualmente seguem as cantarias em consola, quer da
varanda do elemento central apoiada em três
cachorros, quer da existente ao longo de quase toda
a fachada. Esta, no piso térreo, ritma as aberturas,
estabelecendo uma grande harmonia em relação à
proeminência do corpo central, de cheios e vazados,
entre os quatro janelões simétricos deste piso e as
oito pequenas janelas do primeiro piso.
/
108 /
A configuração simples e regular do imóvel em 1903,
toma-se o ponto de partida
ideal para o exercício de mestria decorativa de que
será alvo em 1918, já sob o signo da Arte Nova e que
mantém a primitiva pureza de linhas, criando uma
dinâmica subtil entre as rectas que orientam os
ritmos da fachada e a dividem e as vergas curvas que
passam a encimar as janelas, largas, tripartidas e
serlianas no rés-do-chão e alongadas nas partes
laterais do primeiro piso. A larga janela dupla, ao
centro, no primeiro piso é ressaltada por uma guarda
de serralharia artística e emoldurada por pilastras
que se prolongam no frontão triangular e são
rematadas por arabescos. As duas janelas centrais de
diferente desenho definem dois níveis de leitura no
plano horizontal e no plano vertical, uma repetição
com variações, a coexistência da diferença dentro da
semelhança, imagem dos próprios ciclos da natureza.
As pilastras prolongando os eixos que partem dos
vértices do frontão, definem a já referida
proeminência central, processo de função
exclusivamente decorativa, que o autor utilizará
noutros casos, com variantes. O jogo das verticais e
das horizontais, acentua a dinâmica da composição
pautada por um grande equilíbrio, comunicando a
mesma serenidade e simultaneamente o movimento, das
águas que deslizam calmamente e sempre diversas, sob
os arcos do edifício, os mesmos que sustentavam os
moinhos de maré, mantidos, elo com a tradição e com
o tempo passado. Pequenos cachorros sustentam
decorativamente a cimalha e a balaustrada em que se
apoia o frontão, ritmo repetitivo no plano
horizontal, que encontra uma correspondência na
comprida varanda enriqueci da com serralharia
decorativa que sublinha a base do edifício.
A fachada sobre a Avenida do Dr. Lourenço Peixinho,
reproduz com variantes as proporções da fachada
principal e prolonga-se numa torre lateral. Os
amplos vãos são de diferente proporção e desenho,
ornamentado por um frontão triangular o inferior,
duplo, repartido ao centro e terminando em suaves
curvas, o do piso superior. A sobreposição de
ambos e as suas molduras em pedra, desenham
igualmente um corpo central, puramente
decorativo e rematado por um frontão circular, com
volutas. A verticalidade da torre lateral é
acentuada pelas janelas alongadas, sobrepondo-se à
porta de estilizado desenho geométrico, composto por
aberturas decoradas com serralharia artística. Sobre
a porta um painel de azulejos em tons de azul, com
uma concha e motivos florais, emoldurado em pedra,
regista a data da remodelação do edifício: 1918. Um
friso de azulejos, também em tons de azul, com
navios, em cenas características da região, quebra
com os seus ritmos horizontais, os ritmos verticais
das janelas de bandeira curva, recriando uma animada
dinâmica entre linhas rectas, curvas, horizontais e
verticais. Pequenos e decorativos cachorros,
sustentam a cimalha da torre quadrangular, que ao
que nos parece por foto de arquivo era coberta por
um telhado de quatro águas, hoje desaparecido.
Sobre o interior do edifício, hoje totalmente
destruído e na inexistência de desenho,
devemos limitar-nos às referências da imprensa da
época (6), que descreve as salas vastas, cheias de
luz e muito regulares e as principais dependências
do rés-do-chão: vestíbulo de
entrada, corredor e vestuário, aula nocturna de
instrução primária, aula de cerâmica,
modelação e water closed e do primeiro andar: aulas
de desenho elementar, de desenho
/
109 /
ornamental, secretaria e biblioteca, galeria, museu
e water closed. No rés-do-chão as aulas dariam
naturalmente para a ria em frente, providas das
amplas janelas e estariam separadas das outras
dependências por um corredor. No primeiro andar as
aulas beneficiariam igualmente da luz das muitas
janelas, que partilhariam talvez com a biblioteca.
No exterior ressalta a preocupação decorativa do
autor, não sobrepondo-se, nem acrescentando-se ao
modelo geométrico que está na sua origem, mas com
ele formando parte integrante, num jogo vitalista e
dinâmico de linhas, que perfeitamente se plasma ao
equilíbrio geral do conjunto, acentuando-o. A
mestria do desenho, o seu domínio, a consciência do
lugar, o centro da cidade percorrido pelo espelho
tranquilo e fluido da ria, explicam talvez, sem
reduzirem o seu fascínio, a perfeita integração do
edifício no espaço a que pertence, sobre o fundo
movente das águas, transmitindo uma absoluta
serenidade, uma harmonia que resulta afinal da
conjugação dos contrastes que envolve. Curvas e
rectas, horizontalidade e verticalidade, repetição e
variação, são elementos de um vocabulário plástico e
simbólico que nos remete para o próprio espírito da
natureza ela mesma e eternamente outra, em fuga, em
crescimento e em metamorfose. Uma natureza que é
modelo, mas que não se impõe como modelo, que aceita
ser o espelho dócil dessa outra natureza, humana,
desse espírito em busca da sua metade, da sua
metáfora viva.
Há uma troca, um diálogo, uma corrente de energias,
de segredos. A arquitectura, como toda a arte,
configura o mistério de um sentido de que a forma é
a única expressão possível. A forma testemunha aqui
o equilíbrio, a permanência e a mobilidade, o fluxo
dos aspectos. Uma imagem do mundo é construída,
entre a horizontalidade e a verticalidade, a terra e
o céu, a imanência e a transcendência. Um pequeno,
harmonioso templo para o humano, na sua comunhão com
a natureza. Esse o espírito da Arte Nova. Se o
classicismo procura na natureza um modelo de
equilíbrio e o maneirismo considera o espírito, as
suas contradições e problemas o modelo da criação,
ponto de vista desenvolvido por Gustav René Hocke em
obra que dedicou a este tema (7), a atmosfera
finissecular da Arte Nova, aquilo que nela é mais
original e característico, tende a anular a
distinção entre natureza e ideia, fazendo da ideia o
modelo da natureza e da natureza o modelo da ideia.
Complexo jogo de reciprocidades, que o espelho
natural e conceptual das águas da ria representa e
simboliza, no caso do edifício que consideramos
inaugurar a criação de Silva Rocha, na linha de uma
gramática Arte Nova. O espelho das águas não existe
por acaso no cenário de uma construção – a Escola Industrial
– que identificou o próprio universo
mental e espiritual de uma pedagogia voltada para a
relação entre a arte e as manufacturas que lhe estão
associadas. O espírito configurando a matéria, a
matéria inspirando-o. A água é ela mesma matéria e
espelho, fonte de imagens. Ao espelhar o edifício,
prolonga-o, devolve-nos uma imagem, não a
corporeidade de uma matéria. Um duplo, feito para
durar enquanto permanecer a luz e que vai
enrubescendo, mergulhando em ouro e em sombras, com
o correr das horas e dos dias. Esse duplo
permite-nos sonhar, ele é abertura não para o vazio
de uma ausência anunciada, a que o tempo vai
imprimindo às formas, mas para uma plenitude
evanescente, tão efémera como a realidade ela mesma,
de que é símbolo. Plenitude de uma relação, de
/
110 /
uma conjugação, de uma totalidade entre a matéria e
o seu duplo, a existência e a sua transcendência.
Essa conjugação para existir tem de comunicar-se,
tem de ser representada, tem de ter uma forma que
possa ser transcendida. Silva Rocha encontra neste
caso a forma possível, a forma exacta, a
coincidência mágica entre o espírito e o seu lugar,
extensiva à cidade onde cresceu a semente da sua
obra e dos seus ensinamentos.
Do ponto de vista formal o edifício dos arcos revela
um modelo clássico, na regularidade da sua
volumetria e das suas formas, na bidimensionalidade
a que apela a percepção da sua fachada principal,
feita para ser vista e apreciada ao centro do espaço
que domina. Mas por outro lado vista com detalhe, no
seu desenho e na composição há uma autonomização dos
vários elementos que a constituem, formando módulos
independentes dentro da unidade que o todo comunica,
há uma não-clássica assimetria dos elementos que
formam os dois pisos e, vista no seu conjunto, a
regularidade da volumetria é quebrada pela torre
lateral. Dissonância e variação dentro da repetição
de elementos compositivos, geometria e invenção,
conjunção da realidade e do seu simulacro, o reflexo
em espelho, numa relação, não de poder, de domínio
da natureza, mas de amorosa sedução, de mútua
fascinação, que envolve neste processo o olhar.
Silva Rocha pintor, incluiu na sua construção o
espelho da natureza. A regularidade,
o equilíbrio do edifício respondem à serenidade e ao
movimento das águas e ao mesmo tempo alguma coisa se
distingue e se impõe a este líquido pedestal, uma
monumentalidade feita de elegante contenção, de
regularidade e de surpresa, dos ritmos horizontais
do repouso e dos sonhos da vontade, vertical ímpeto
a que o triângulo dá um sentido. Símbolo alquímico
do fogo e do coração, o triângulo representa uma
ordem cósmica, a união da Luz e das Trevas, os lados
unindo-se no topo, sobre a base do tempo. União de
princípios, a noite e o dia, a terra e o céu, o
humano e o divino.
A arquitectura transmite sempre um sentido. Neste
caso o sentido não é da ordem do poder religioso ou
temporal, mas aponta para um poder, o de uma
linguagem cifrada, que une imperceptivelmente,
através da forma, da matéria e do seu reflexo
imaterial, o homem e o seu habitat, um respondendo
ao outro, um evocando, invocando o outro. Este o
espírito, o élan muito pessoal que Silva Rocha
imprimiu ao ponto de partida da linguagem de uma
gramática Arte Nova que iria desenvolver com grande
rigor e inconfundível fantasia criativa, nos anos
seguintes.
Sensivelmente no mesmo período, em 1897, Charles
Rennie Mackintosh, projectava a famosa Escola de
Arte de Glasgow, um dos mais emblemáticos edifícios
da Arte Nova Internacional e que se deve à
iniciativa do seu Director Francis H. Newbely. A
primeira pedra seria colocada a 25 de Maio de 1898,
embora as obras das fundações tivessem começado no
final de 1897. Uma segunda fase das obras decorreria
entre 1907 e 1909. A ala este da escola abriria em
1899, compreendendo "a espantosa entrada assimétrica
que fornecia à fachada norte o seu elemento visual
principal" (8). Os trabalhos correspondentes à ala
oeste começaram em 1907 e acabaram em 1909. A
volumetria maciça delineada segundo grandes planos
geométricos, é quebrada pelas assimetrias e pela
introdução de largas janelas
/
111 /
envidraçadas que aligeiram extraordinariamente o
conjunto, conferindo leveza à solidez que comunica.
As proporções dos vãos distribuem-se de modo
irregular em jogos de assimetrias, de curvas 'e de
rectas. No interior a decoração e o mobiliário
desenhados por Mackintosh acompanham a modernidade
do edifício, pautada pelos princípios estéticos da
Arte Nova, igualmente expressos, de modo diverso, na
Escola Industrial Femando Caldeira que Silva Rocha
projectou no início do século em Aveiro. Em 1903
Mackintosh realizaria aliás para uma outra escola a
Scotland Street School, terminada em 1906, o que é
considerado o seu projecto mais inovador. O
edifício, tal como o que comentámos anteriormente, é
dotado de duas imponentes e simultaneamente leves
torres envidraçadas, que introduzem um dinâmico
contraponto à horizontal idade manifesta do
conjunto. O arquitecto escocês movia-se num círculo
propício à inovação, integrava-se num grupo, os
quatro de Glasgow -formado por ele próprio, pela sua
mulher Margaret Macdonald (1864-1933) e pela
irmã desta Frances (1873-1921), casada com J. Herbert
Mc Nair (1868-1955), que por sua vez também fazia
parte do grupo –, trabalhando em uníssono, segundo
os padrões de uma nova estética europeia, que a
Portugal só chegava pelos livros e revistas, de que
Silva Rocha era aliás assíduo leitor, tendo
assimilado as leis de uma estética voltada para a
descoberta de uma nova liberdade criativa inspirada
pela natureza, mas capaz de a transcender através de
uma estilização de exuberantes ritmos curvilíneos ou
de uma depuração geométrica. O
arquitecto aveirense iniciou o seu percurso criativo
na Escola da qual foi fundador pela eleição de um
modelo clássico, arquétipo do equilíbrio e da
harmonia de uma razão aberta às surpresas da
fantasia, matriz que se torna a base dos seus
exercícios de uma liberdade criativa no plano da
composição e no plano decorativo, modelo
perfeitamente integrável numa estética Arte Nova.
Em 1903, como vimos, Mackintosh projectou a Scotland
Street School, considerada
o mais moderno dos seus edifícios. As duas torres
que contêm as escadas, largamente envidraçadas,
criam um efeito de verticalidade que contrasta com o
conjunto que se desenvolve na horizontal, enquanto
que os tectos em "pimenteiro" são inspirados pela
arquitectura escocesa tradicional (9). Também Silva
Rocha exploraria o contraste entre a verticalidade
da proeminência do elemento central, uma
característica do edifício da Escola Industrial em
1903 e a marcada horizontalidade do conjunto,
confrontada ainda dinamicamente com a torre lateral,
um elemento estruturalmente assimétrico e
decorativamente expressivo de uma estética Arte
Nova. Também Silva Rocha tiraria partido de uma
situação claramente vinculada à arquitectura
tradicional, os arcos dos antigos moinhos de maré,
que ritmam o modo como coloca os vãos, tanto em
1903, como em 1918. A modernidade deste edifício
reside sobretudo na forma como ao apoiar-se nas
bases de uma tradição, que inclui o modelo clássico
em que se inspira, a subverte no ilusionístico jogo
de efeitos fundamentalmente visuais, nos quais
participa cúmplice, o espelho das águas, uma
natureza destinada como em toda a estética Arte
Nova, não apenas a reflectir, ou a reflectir-se, mas
a induzir no território de uma sensorialidade que
amplia os territórios da alma.
________________________
/
112 /
NOTAS:
1. R. Rangel de Quadros Oudinot, Aveiro Apontamentos
Avulsos (manuscritos) de 1911 a
1916 pgs 116/117. Citado por Rodrigues, Manuel
Ferreira in op. cit. pág. 23.
2. Manuel Barreira – "O Largo do Cojo, Azenhas e
Ilhote"– Aveiro,
Boletim Municipal, Ano XIV N° 27, Junho de 1996.
3. Arquivo Nacional da Torre do Tombo Chancelaria de
D. João I, Livro 3, fl. 52 v.
4. Milenário de Aveiro - Colectânea de Documentos
Históricos, 1, pág. 205.
5. Idem, ibidem.
6. Jornal "O Povo de Aveiro" nº
1021 de 8 de Novembro de 1903, pág. 3, col. 2.
7. Hocke, Gustav René – Labyrinthe de L' Art
Fantastique, Paris, Éditions Gonthier, 1967,
págs. 60 e 61.
8. Fiell, Charlotte & Peter – Charles Rennie
Mackintosh (1868-1928) – Lisboa, Londres, Nova
Iorque, Osaka, Paris, Colónia, Editora Taschen,
1997, pág. 57.
9. Fiell, Charlotte & Peter – Op. cit., pág. 130. |