Manuel Barreira *
Quando, há poucos anos, um grupo de trabalhadores
com máquinas procedia à demolição das casas entre as
ruas do Rato e de Jesus, frente ao Museu, um
numeroso grupo de curiosos juntou-se para ver se,
nas paredes dessas casas, ainda restava algum pano
das muralhas da cidade. Porém, nada restava.
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Planta de Aveiro em 1696. Clicar na imagem para
visualizar em alta resolução (formato A3) |
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A Câmara Municipal, no arranjo urbanístico que se
efectuou nesse espaço, mandou que uma escavadora
fizesse alguns rasgos, na procura de alguns restos
dos alicerces das muralhas. Também nada encontrou. O
que levou um jornalista a escrever, de maneira
apressada: Nada se encontrou porque as muralhas não
passavam por ali.
De facto, das antigas muralhas de Aveiro nada resta
hoje de visível. É possível que nos muros traseiros
da Escola Secundária Homem Cristo ainda subsistam
alguns restos. Mas só uma intervenção o comprovaria.
O último pano de muralhas foi destruído há cerca de
dúzia e meia de anos na Travessa das Beatas, resto
do antigo postigo de Rabais. Também
não podemos pensar as muralhas de Aveiro com a
grandiosidade dum Castelo de Guimarães, de muitos
metros de altura e de grossos silhares. Apenas nas
portas, nas torres e nos ângulos e, com certeza, nas
paredes sobre a encosta do Côjo a construção era
mais imponente.
/
76 /
Mas a maior parte era um simples muro de cerca de
três metros de altura e pouco mais de um metro de
largura, principalmente na parte alta da vila. É
mesmo com o termo de muro que o Tombo o designa. Daí
não precisar de grandes alicerces nem de grossas
pedras. Só a parte virada para a ribanceira do Côjo,
dado o desnível e a necessidade de segurança, seria
construída com mais robustez.
Dois documentos nos descrevem, pormenorizadamente,
as muralhas de Aveiro.
O mais conhecido e frequentemente referido pelos
historiadores do último século,
de Marques Gomes a Inês Amorim, é a descrição de
Rangel de Quadros. E embora ele mesmo confesse que a
documentação é muito deficiente sobre a construção e
reparos posteriores das muralhas, a descrição é
rigorosa pois uma grande parte das muralhas ainda
subsistia no tempo em que escreveu, ou estava fresco
na memória dos conterrâneos. Mas a descrição de
Rangel de Quadros não nos permite, com exactidão e
segurança, refazer o verdadeiro traçado.
Um outro documento, muito pouco referido mas que me
parece ser o mais exacto na descrição das muralhas,
é o Tombo da Casa de Aveiro, de 1692 a 1705,
existente no Arquivo da Universidade de Coimbra. O
Tombo é uma matriz predial de todos os bens imóveis pertencentes ao ducado de Aveiro, neste concelho e
nas outras terras do ducado e que pagavam foral ao
duque, como Albergaria-a-Velha, Vale Maior, Lamas,
Pedras Talhadas,
Balazaima, Boialvo, Arinhos, Oiã, Perrães, Loure, S.
João de Loure, Águeda, Mouquim,
Taipa, Ouca, Pedaçães, Cortovães e os coutos de
Barrô e de Óis do Bairro, todas incluídas no Termo
de Aveiro. Este Tombo começou a ser feito em 1692
pelo Juiz do Tombo Doutor Gaspar Mendes Grande e só
terminou em 1705, já pelo Doutor Faustino de Bastos
Monteiro. Cada um destes imóveis: casas, marinhas e
terras de cultivo, era medido e descrito ao pormenor
nas suas confrontações e dele lavrado um burocrático
auto de medição composto por uma convocatória ao
titular indicando a respectiva justificação de
posse, o auto de medição propriamente dito e a
sentença sobre o foro a pagar. A medição das
propriedades era feita em varas de medir pano,
correspondentes hoje a 1,10 metros cada vara.
O início da construção das muralhas foi o ano de
1418, sob a administração do Infante D. Pedro. Isso
mesmo estava gravado no arco sob as portas da vila,
logo por baixo do brasão do Infante. Mas já em 1413,
D. João I se dirigiu à Câmara da cidade de Coimbra
aceitando o protesto dos seus moradores contra a
determinação em que estava de os moradores daquela
cidade servirem e pagarem para a construção de
cercas, muros e torres por ele mandadas fazer nas
vilas de Aveiro e Penela.
As obras demoraram cerca de quatro anos, quase
sempre com a presença e direcção de D. Pedro,
segundo Rangel de Quadros. Mas tal não é exacto,
pois ainda em 1451 as obras não estavam concluídas.
Segundo este mesmo historiador aveirense, o
arquitecto desta obra
teria sido Lourenço Eanes de Morais, o mestre de
obras do Infante. Sabemos, pelo mesmo
autor, ter sido ele o construtor da Igreja de S.
Miguel, em 1420. Mas, já em 1451, D. Afonso V
/
77 /
nomeia o mesmo Lourenço Eanes de Morais, agora já
escudeiro e criado do Infante D. Henrique, juiz dos
resíduos da vila e "vedor das nossas obras dos muros
do dito lugar de Aveiro e pela guisa que o ele foi
até agora".
Assim, contrariamente ao que diz Rangel de Quadros,
as obras não foram realizadas em quatro anos, mas
demoraram, pelo menos, para além de 1451, mais de 30
anos. Nessa data, além da renomeação do vedor das
obras, D. Afonso V proíbe os pescadores de mudarem
para a profissão de mareantes e condena os
transgressores a servirem o dobro do tempo nas obras
dos muros da vila, além de determinar que os
dinheiros dos resíduos da vila sejam aplicados nas
obras das muralhas.
De onde vieram os materiais para as muralhas?
Rangel de Quadros fala da pedra dos arredores de
Aveiro e especialmente de S.
Roque, de Santiago e do rossio de S. João. Não nos
parece que aí tivesse havido tanta pedra, muito
embora, em 1600, se fale da extracção de pedra de
junto da Fonte da Pega para as obras da Santa Casa
da Misericórdia e de que, do mesmo rossio de S.
João, se tenha tirado pedra em 1857 para a construção
do Liceu. O mais provável é ter sido importada de
Eirol, uma pedra rija e avermelhada.
Não vamos aqui fazer a descrição completa das
muralhas de Aveiro, pois o relato de Rangel de
Quadros é elucidativo. Tão só é nossa intenção
comparar e precisar alguns trechos desse relato com
a descrição feita pelo Tombo de 1692, que,
parece-me, Rangel de Quadros
não conheceu.
Examinando os dois relatos e comparando com mapa do
séc. XVIII existente no Museu e inserto, em
fotografia, pelo Padre Domingos Maurício entre as
páginas 14 e 15 do primeiro volume do seu Mosteiro
de Jesus de Aveiro, elaboramos esta planta das
muralhas.
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|
|
|
Cidade de Aveiro nos meados do século XVIII |
|
/
78 /
Rangel de Quadros faz a sua descrição das muralhas
começando pelas Portas da Vila, entre a Rua Direita
e a do Espírito Santo e limitadas lateralmente pelas
Ruas de Jesus (intramuros) e do Rato (extramuros) a
Nascente e pelas Ruas do Caneiro (intramuros) e a
que vai das portas da Vila para as Portas de Vagos,
esta extramuros. Portas e não porta, porque se
formava aqui um largo espaço sob o arco: os
terminais da muralha formavam, de cada lado, um
largo T, que se prolongava de rua a rua, de cada
lado das portas. E havia duas portas: uma virada
para dentro da vila, outra virada para fora. O Tombo
confirma esta construção ao referir que a última
casa a poente da Rua de Jesus tem as confrontações
sul e poente encostadas ao muro, portanto metidas no
ângulo interior do muro, no ângulo interior formado
pelo T do muro.
Este espaço das Portas da Vila formavam como que o
hall de entrada, de quem vinha por terra. Era um
espaço abrigado, com sol, e amplo – lembre-se a
largura que tinha a mercearia recentemente demolida.
Aí estavam dois grandes bancos de pedra encostados à
parede da muralha, um de cada lado, e aí estava
sempre gente à espera ou em amena conversa. Também
aí perto, nas três ruas extramuros adjacentes, se
encontrava, como diz o Tombo, a estalagem de Maria
de Oliveira e várias casas de comércio e armazéns de
dois estrangeiros residentes em Aveiro.
O mesmo Tombo descreve, seguidamente, e em sentido
contrário aos ponteiros do relógio, as casas das
ruas de Jesus e do Rato, das portas da Vila para a
Porta do Sol, a nascente, numa e noutra quer à mão
esquerda, quer à mão direita.
O comprimento deste troço das muralhas rondaria os
100 metros, pelo que supomos que a Porta do Sol
estaria no prolongamento da Rua das Arribas de S.
Domingos (hoje Rua do Batalhão de Caçadores 10), a
uns metros a poente da chamada pérgola da Sé e a sul
da porta da Igreja de Santa Joana.
Antes da Porta a muralha tinha aí um torreão ao qual
estava encostada a casa de Maria Antónia. Subia-se
para esse torreão por uma pequena escada de pedra.
Da Porta do Sol saía-se para o Bairro dos Oleiros e
para o caminho de Vilar, a sul (actualmente Av. 25
de Abril), e para a Fonte Nova, Barreiras e Côjo, a
nascente.
/
79 /
DAS PORTAS DA VILA PARA A PORTA DO SOL
RUA DE JESUS
RUA DO RATO
PORTAS DO SOL
R
U
A
D
E
J
E
S
U
S |
varas |
proprietário |
M
U
R
A
L
H
A |
proprietário |
varas |
R
U
A
D
O
R
A
T
O |
proprietário |
varas |
6 1/3 |
João Arenas |
Mª Antª (junto da
Torre) |
5 1/2 |
Pedro de Melo
(esquina Rua Vilar) |
18 1/2 |
6 1/2 |
Casas do Conv. S.
Dom. |
Francisco Soares |
5 1/2 |
Capela de S. Vicente |
|
3 2/3 |
João Pereira,
barbeiro |
Manuel de Pinho |
4 |
Cap. Francisco Dias
Carvão |
14 |
10 |
Brites Cardosa
(frente Mosteiro) |
Maria da Maia |
7 1/2 |
Brites Cardosa |
9 |
10 |
Ant. Monteiro
(frente Mosteiro) |
Maria Coelho e irmã |
7 2/3 |
Brites Cardosa |
3 1/2 |
|
Freitas de Jesus
(estrebaria) |
Miguel Francisco |
2 1/2 |
Cap. Manuel João
Homem |
6 |
5 |
Freitas de Jesus
(TORRE) |
João André,
sacristão |
4 |
Tomás Gil (mercador
inglês) |
3 |
8 |
Freitas de Jesus |
António Francisco |
7 |
Luís Dias |
2 1/3 |
7 |
Maria Arenas |
Lourenço dos Santos |
6 |
fornos Cap. Manuel
João Homem |
8 2/3 |
5 |
Coresma dos Santos |
João Monteiro |
7 2/3 |
Luís Rodrigues |
6 |
5 2/3 |
José Martins,
alfaiate |
Sebastião Lopes |
4 |
António Dias |
4 2/3 |
10 |
Miguel Ferreira
Bettencourt |
José Coelho |
3 2/3 |
Maria Fragosa, a
fanqueira |
3 |
4 1/3 |
Francisco Soares |
Cecília dos Santos |
4 |
João Coll (virada à
Rua Espírito Santo) |
|
4 |
Francisco Coelho |
António Leitão |
14 |
|
|
7 2/3 |
Maria Ferreira,
viúva |
João André, oleiro |
7 2/3 |
|
|
4 2/3 |
Casas das Freiras de
Jesus |
Manuel Dias |
10 |
|
|
|
|
João Broter |
7 1/3 |
|
|
|
|
João Monteiro (não
foreira) |
? |
|
|
|
|
Manuel Dias,
marceneiro |
3 |
|
|
|
|
Inácio Cardoso |
6 1/2 |
|
|
|
|
Cap. Manuel João
Homem |
11 1/2 |
|
|
|
|
P. Manuel Dias
Tilheiro |
8 |
|
|
|
|
P. Manuel Dias
Tilheiro |
5 1/2 |
|
|
PORTAS DA VILA
Logo a seguir à Porta do Sol e do lado de fora,
havia um grupo de casas encostadas ao torreão e
respectivo muro, das quais sobressaiam as casas
sobradadas do rico comerciante João Monteiro. O Muro
seguia ao comprido com a Igreja do Mosteiro de S.
Domingos, sensivelmente no lugar onde hoje está a já
referida pérgola da Sé. Junto da parte traseira da
Igreja e por detrás do Mosteiro e intramuros ficava
um grande terreno vazio, que servia de picadeiro à
nobreza e de recreio a todos os que possuíssem
cavalo e para os cordoeiros
/
80 /
fabricarem as suas cordas. Corresponderá hoje a todo
o terreno do cemitério e às casas e respectivos
quintais a nascente da Rua de Caçadores 10,
excluídos os que eram pertença directa do Mosteiro,
entre a Igreja e a, hoje, Residência Paroquial. Era
o Campo de S. Domingos. As muralhas abraçavam, em
grande círculo, dos lados nascente e norte, todo
esse terreno.
Logo por detrás da Igreja ficava a Torre dos
Oleiros, com a sua escada pelo lado de dentro, e um
postigo de passagem, o postigo do Campo de S.
Domingos. Este postigo foi objecto de longas
contendas dos Frades de S. Domingos com a Câmara e
povo de Aveiro, nos séculos XVII e XVIII. Os Frades
queriam apoderar-se do Campo para horta e seu lugar
de passeio, de meditação e de descanso. Por isso,
por várias vezes se dirigiram ao Rei, fazendo o
pedido e dizendo que as pessoas da vila, usando
aquele postigo e torre, lhes devassavam o
recolhimento com barulhos e palavras injuriosas. A
eles e, pior ainda, às Religiosas de Jesus, suas
irmãs e vizinhas e em cujo convento estava o túmulo
de Santa Joana. A demagogia não é só de hoje! Claro
que o Senado da Câmara sempre rejeitou a cedência.
Mas os Religiosos, em 1699, conseguiram que fosse
proibido subir à Torre dos Oleiros, para não
molestarem o recolhimento das Freiras. Falso
pretexto, porque dali não se podia devassar o
convento das Freiras. Por fim, em 1744, aproveitando
a magnanimidade e beatice de D. João V, protestando
que fariam outro postigo de mais proveitoso uso para
a população em frente à rua do Campo, "a meio da
Vila", (exactamente no local onde hoje estão as
escadarias do Fórum, junto dos cinemas) e que se
ofereciam para pregarem gratuitamente todos os
sermões na Igreja da Misericórdia e criarem, na
vila, uma cadeira pública de ensino da Filosofia,
acessível a todos os estudiosos, conseguiram o
alvará real.
Deste Postigo dos Oleiros e até ao ângulo nascente,
onde as muralhas flectiam para norte, sobre as
barreiras, havia um numeroso bairro de 16 pequenas
casas, algumas com pequenos quintais, todas
encostadas ao muro, pelo lado de fora. Ainda há
poucos anos era possível ver algumas dessas
pequeninas casas.
Daí as muralhas decorriam por sobre as barreiras do
Côjo, até encontrarem novamente a Rua da Corredoura
ou das Arribas de S. Domingos. Rangel de Quadros diz
"de forma circular", fazendo um semi-círculo até
quase à esquina do quintal das Freiras de Jesus
(hoje jardim e parque infantil, na esquina da Rua
Nascimento Leitão – antiga Rua do Campo ou das
Laranjeiras – ou seja, até à escadaria do Fórum,
pois não existiam as casas da esquina daquela rua).
Porém o mapa de Aveiro existente no Museu, já acima
referido, desenha-o seguindo o relevo das barreiras
e do actual cemitério, como as conhecemos hoje.
Os muros desciam, de seguida, para as pontes do Côjo,
paralelos à rua da Corredoura ou das Arribas de S.
Domingos, até à Porta do Côjo. É difícil hoje situar
com exactidão esta porta. As construções, ao longo
de três séculos, na zona compreendida entre a
Misericórdia e a casa dos Tavares, com casas,
armazéns, terraços, varandas, arcos e passadiços por
cima das casas e das muralhas, criaram uma confusão
de labirintos de que hoje nada nos resta que nos
ajude a destrinçar o que era particular e o que era
público. No entanto creio que o beco
/
81 /
sem saída, a norte da actual Capela Mortuária da
Misericórdia, deve estar relacionado com essa porta.
A Porta do Côjo ficava muito perto da ponte com o
mesmo nome. Dava para o campo do Côjo de Aquém e
para a ponte, através de uma pequena viela, a viela
das Alminhas. O Côjo de Aquém era um pequeno bairro
de 41 casas, situado a sul do canal das azenhas,
fora das muralhas, onde hoje está todo o complexo do
Centro Comercial e Residencial do Fórum.
Neste lanço das muralhas, por detrás do primitivo
Hospital da Misericórdia (onde actualmente está a
Casa Mortuária) havia umas escadas por onde se
descia para este pequeno bairro. Eram as Escadas do
Muro.
Daqui até à Porta da Ribeira a muralha confundia-se
com as casas, ou melhor, as construções foram feitas
por dentro e por cima das muralhas, usadas como
varanda, passadiço e até terraços. Esta utilização
das muralhas como parede de casa vinha já desde o
Infante D.
Pedro que, em 1435, obteve de D. Duarte licença para
construir o seu palácio junto da muralha da vila e
algumas casas em cima dela "por haverem melhor
vista" sem, contudo prejudicar que por cima se
pudesse passar para vigilância e defesa.
RUA DAS ARRIBAS DE S. DOMINGOS
(OU RUA DA ESCADA DO
MURO)
(DE S. DOMINGOS PARA A PRAÇA DA RIBEIRA)
do lado direito,
encostadas ao muro, junto ao Côjo |
do lado esquerdo
quem desce, junto ao Côjo |
|
varas |
proprietário |
rua |
proprietário |
varas |
M
U
R
O |
9 |
Manuel da Silva, de Vagos |
|
|
|
5 |
Sogra de Manuel da Silva, |
|
|
|
escadas do muro |
Hospital Velho |
|
5 |
Confraria de Nª Srª do Rosário |
António Rangel |
7 |
5 |
Manuel Coelho |
António Tavares |
11 |
4 |
Manuel Coelho |
Manuel G. Janeiro |
|
5 |
Francisco Pereira d'Eça |
Pedro Francisco |
|
O exemplo do Infante foi seguido por outras pessoas,
nobres e homens bons. Até o bispo D. António
Cordeiro, o 2° titular do cargo em Aveiro, ao criar
o seu Paço Episcopal no palácio dos Tavares e
querendo vir para a Sé Episcopal, na Igreja da
Misericórdia, sem se molhar nem apanhar solou só
para não ter o enfado de vir à rua pública, mandou
construir um passadiço por sobre as muralhas, sobre
o arco das portas da Ribeira e do Côjo e casas
adjacentes e entrava na Sé por uma porta do andar
superior da Misericórdia.
Logo a poente da porta do Côjo estavam as portas da
Ribeira, no prolongamento da rua da Costeira e na
entrada da ponte da Ribeira. Também portas porque,
como as da Vila,
/
82 /
eram duas e formavam um átrio e era o lugar de honra
onde se recebiam solenemente as pessoas nobres que
vinham por mar. Muitas aí foram recebidas, mas a
mais notória e anedótica, porque caricata, foi a
recepção feita à Rainha Da. Maria da Glória, em
1852. Já as muralhas estavam a ser destruídas ou em
avançada ruína, já as portas tinham desaparecido,
mas o Presidente da Câmara, Dr. Bento José Rodrigues
de Magalhães, quis receber condignamente Sua
Majestade e entregar-lhe solenemente as chaves das
portas da cidade, como era do protocolo oficial.
Mas, e as portas? Para grandes males, grandes
remédios. Mandou pintar uma grande tela: portas,
colunas, cimalha, as armas da cidade e duas figuras
mitológicas: a Abundância e a Esperança. Mas a
Rainha vinha tão cansada do calor da viagem pela
Ria, desde Oval', que dispensou todas as cerimónias
e recolheu-se de imediato.
Da porta da Ribeira até à porta do Cais ou do Norte
a muralha continuava ligada às casas, na sua maior
extensão ao palácio dos Tavares. A porta do Cais
ficava no fim da viela do Correio e por esta se
subia até à Albergaria de S. Brás e rua do Loureiro.
Era também a principal porta de serviço de marnotos,
marinheiros e comerciantes ligados ao porto e que,
como se depreende do agravo que os oficiais da
Câmara fizeram para o Rei contra o Ouvidor da vila
em Julho de 1550, estava sempre aberta para, a
qualquer hora do dia ou da noite, puderam acudir à
entrada ou saída de navios, dependendo da hora das
marés.
Da porta do Cais as muralhas curvavam para sul, em
redondo, até ao postigo da Cale ou porta do Alboi e
que servia todo o bairro deste nome. Esta porta
ficava mesmo nas traseiras da Albergaria de S. Brás
e abria para a Travessa da Rua das Barcas e, para
sul, para a Rua das Arribas de Santo António.
Do Postigo da Cale as muralhas subiam para sul, por
toda a encosta da baixa de Santo António, em linha
quase recta até às Portas de Vagos ou de Santo
António. A meia distância tinham o Postigo de Rabais,
ladeado por uma grande torre de vigia.
Estava num ponto alto e boa vista sobre toda a baía
e marinhas, era um bom ponto de vigilância, o melhor
sobre a entrada da barra.
Quem hoje se colocar na Rua Homem Cristo Filho ou na
Rua Capitão Sousa Pizarro e reparar no grupo de
casas entre as duas ruas verá, na separação das
casas, costas com costas, todos os acrescentos para
utilização dos espaços deixados pela demolição das
muralhas.
Entre o Postigo de Rabais e as Portas de Vagos havia
dois pequenos torreões, no meio dos quais se
construiu mais tarde e depois de demolidas as
muralhas, o palácio da baronesa de Almeidinha. O
palácio era no local onde hoje está o Governo Civil
e as duas ruas laterais ocupam o espaço exacto dos
torreões.
As Portas de Vagos eram em tudo semelhantes às da
Vila e da Ribeira. Ficavam no local exacto do actual
cruzamento onde estão os semáforos. Foi por estas
portas que entrou, à força de anuas, D. António,
Prior do Crato, em 1580, deixando-as completamente
destruídas. Daqui as muralhas flectiam a nascente,
em direcção às Portas da Vila, em linha recta.
Rangel de Quadros refere que existia um postigo por
detrás do Convento das Carmelitas. E até lhe chama o
Postigo do Sol. Deve ser confusão com o Postigo do
Campo ou do Sol, a nascente
/
83 /
da Porta do Sol e de que já falámos. O Tombo, pelo
menos, não refere nenhuma entrada nesta zona. Ou
melhor, fala no caneiro da água que vinha da fonte
junto da Igreja do Espírito Santo e que atravessava
a muralha. Não diz se eram águas de escoamento ou se
para uso do Convento e sua horta.
DOS POSTIGOS DA CAL E DE RABAIS PARA A PORTA DE
VAGOS
RUA
NOVA |
|
RUA DAS
ARRIBAS DE S. ANTÓNIO |
R
U
A
N
O
V
A |
varas |
proprietário |
M
U
R
A
L
H
A |
proprietário |
varas |
R
U
A
D
A
S
A
R
R
I
B
A
S
D
E
S
A
N
T
O
A
N
T
Ó
N
I
O |
11 |
Manuel Florim |
|
|
4 |
Ana das Costa, viúva |
(junto da Torre) |
|
4 |
André Ferreira |
Francisco Soares |
11 |
8 |
António Gomes
Janeira |
|
|
6 2/3 |
Manuel Miguéis |
|
|
5 |
João Tavares |
pousio devoluto |
|
4 |
Luís da Silva Mendes |
|
|
4 |
Domingos Francisco,
o catavento |
José Pereira da
Silva |
9 1/2 |
4 |
Luís da Silva Mendes |
|
|
3 |
Manuel André, o
Sardo |
|
|
3 1/2 |
Manuel Soeiro
Cardoso |
|
|
24 2 palmos |
Gonçalo de Sousa e
Menezes |
|
|
13 |
Padre Matias Cabral
da Veiga |
|
|
5 |
Padre Matias Cabral
da Veiga |
|
|
6 |
Madalena Fernandes |
|
|
3 1/3 |
Manuel Florim,
pedreiro |
Isabel Freire
Pimentel, |
18 1/2 |
3 2/3 |
Manuel Francisco, o
curtido |
|
|
4 |
Maria André |
|
|
5 |
Francisco Cardoso
Pacheco |
|
|
14 |
Cap. António Seabra
Ribeiro |
|
|
16 2/3 |
estrebaria de Marta
da Cruz |
Maria Simões |
4 1/4 |
14 |
quinta de Geraldo
Pacheco Masc. |
|
|
10 |
Isabel Cardoso da
Silveira |
|
|
10 |
Geraldo Pacheco de
Mascarenhas |
|
|
6 1/2 |
Maria da
Apresentação |
|
|
15 |
Miguel Rangel de
Quadros |
|
|
12 |
Roque Pimentel
Coelho |
|
|
6 1/3 |
António André, o
lapa |
|
|
2 |
Roque Pimentel
Coelho |
|
|
4 |
Miguel Rangel de
Quadros |
|
|
7 |
Manuel Fernandes, o
serrano |
|
|
2 1/2 |
Manuel de Paiva |
|
|
4 1/2 |
António Fernandes, o
tropezo |
|
|
4 1/2 |
Manuel João, o Vagos |
|
|
5 |
Frades de S.
Domingos |
|
|
18 |
pardieiros de
Francisco Rangel |
|
|
|
pardieiros de
Francisco Rangel |
Geraldo Pacheco
Mascarenhas |
13 1/2 |
|
postigo de Rabais |
|
|
|
Travessa das Beatas |
José Pereira da
Silva |
5 1/2 |
|
|
Custódio Fernandes |
5 3/4 |
|
|
António Manuel |
5 1/2 |
/
84 /
|
|
|
|
quintal de Manuel
Francisco |
8 1/2 |
A
R.
D
E
S
T
O
A
N
T
Ó
N
I
O |
|
|
|
|
João Domingos,
tanoeiro |
3 1/4 |
|
|
|
|
João André da
Marnota |
3 1/2 |
|
|
|
|
João André da
Marnota |
3 1/2 |
|
|
|
|
Manuel Afonso |
4 1/4 |
|
|
|
|
Francisco Barbosa |
3 1/2 |
|
|
|
|
Manuel Afonso |
4 1/2 |
|
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Traseiras da
Albergaria de S. Brás |
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Manuel dos Santos
Sete |
5 |
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Padre Manuel Lopes |
4 |
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Manuel Rebelo |
3 1/2 |
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Custódio Francisca |
4 |
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André da Costa
Bombarda |
6 |
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herdeiros de Manuel
Pinheiro |
3 1/3 |
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Padre Diogo Leitão |
5 |
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António Afonso |
4 |
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Padre Tomé Rebelo
Mendonça |
3 1/2 |
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Traseiras do Palácio
do Marquês de |
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Maria Tavares |
2 1/2 |
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Arronches |
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Maria João, a manjão |
3 |
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José Fernandes,
sapateiro |
10 |
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pardieiros de João
André |
11 1/2 |
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Domingos Rodrigues,
barbeiro |
10 |
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João Call, mercador
inglês |
6 1/3 |
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postigo da Cal |
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Precisaria Aveiro de muralhas? Ou a construção de
muralhas teve uma finalidade mais política,
integrada na centralização do poder régio?
Não é momento de entrarmos nesta polémica. Mas é
facto que as muralhas só serviram, e mal, na invasão
de D. António, apesar do muito dinheiro que se
gastou na sua construção e frequentes reconstruções.
Também as muralhas de Aveiro não eram umas muralhas
de castelo. Eram mais um muro que cercava a cidade,
muro pouco alto e de pouca grossura. As gravuras
existentes são laudatórias da grandiosidade da
cidade. Mais real é o tombo, na medição das casas e
do lugar que deixava livre para o muro e as ruas.
Isto estava bem patente nas ruas de Jesus e do Rato,
onde a casa recentemente demolida e que foi
mercearia/drogaria ocupava a largura de duas casas e
das muralhas.
E por que é que não se encontrou nenhum resto das
muralhas nas escavações, quer quando se fez a
pérgola, quer quando se urbanizou a Avenida Central?
Aveiro tem pouca pedra para as construções. Para se
construir a Misericórdia importou-se quase toda a
pedra de Ançã. A pedra dos arredores da cidade
seriam pouco mais que calhaus roladas, arrastados
pelas enxurradas pós-glaciares. Ligados com
argamassa e cacos de bano, dariam um muro
consistente. Apenas as torres, as portas e os lanços
mais estratégicos teriam pedra trabalhada. E isso é
provado por duas fotografias que chegaram até nós:
uma da tone do Postigo de Rabais, de 1959, inserta
na Colectânea de Documentos Históricos, edição da
Câmara Municipal de Aveiro, a páginas 156 do 10
volume. Uma outra é da torre que ficava junto da
Porta do Sol. E as actuais obras da construção da
passagem inferior tem posto à luz exactamente esse
tipo de pedra. Claro que a sua maior parte foi sendo
extraída pela população para as suas obras.
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85 /
Depois de D. João V não se fizeram mais reparações
nas muralhas. As rendas da Alfândega eram nulas, a
população estava na miséria, reduzida a um quarto do
que fora no século XVI. A crise da barra dava mais
preocupação. Os muros começam a cair e as pessoas a
aproveitar as pedras para reparar as suas casas. Com
as obras da barra autorizou-se que se começassem a
demolir as muralhas. O mesmo na construção do Liceu
José Estêvão (hoje Escola Secundária Homem Cristo) e
dos paredões dos canais. E, a pouco e pouco, os
muros foram desaparecendo.
DAS PORTAS DE VAGOS
PARA AS PORTAS DA VILA
RUA DE
STº ANTÓNIO PARA AS PORTAS DA VILA
RUA DO CANEIRO
RUA |
VARAS |
PROPRIETÁRIO |
|
PROPRIETÁRIO |
VARAS |
RUA |
|
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pardieiro de Diogo Soares |
7 |
R
U
A
D
O
C
A
R
N
E
I
R
O |
|
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pardieiro de Francisco Dias |
4 |
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|
pardieiro de Francisco Jorge |
8 |
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pardieiro de Manuel Florim |
6 |
30 |
armazém de Miguel Gomes |
Manuel Florim, pedreiro |
4 1/2 |
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António Fernandes, o paixão |
5 |
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Pedro Ribeiro de Oliveira |
2 |
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Maria João, a torta |
5 1/2 |
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Manuel António, o sapateiro |
3 1/2 |
6 1/2 |
pardieiros Freitas de Jesus |
Catarina Barbosa |
3 1/2 |
|
|
Manuel Fernandes, herveiro |
15 |
5 |
Sebastião Fernandes |
Manuel Pacheco, armador |
15 |
|
|
Tomé Gonçalves, o raposo |
5 1/2 |
2 1/2 |
Isabel da Silva |
Domingos Lopes, o mostarda |
13 1/2 |
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Manuel António, o sapatinho |
14 |
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Francisco Almeida |
6 |
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José de Paiva, pedreiro |
2 2/3 |
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pardieiro de Catarina Barbosa |
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caneiro da água |
caneiro da água |
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2 1/2 |
Isabel da Silva |
|
|
|
8 |
Geraldo Pacheco |
Manuel Francisco, sapateiro |
40 |
24 |
armazém de João Call |
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4 1/2 |
Ana João |
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|
12 1/2 |
Ana Ribeira |
Domingos Migueis, o malhado |
6 |
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RUA DO
ESPÍRITO SANTO |
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RUA DIREITA |
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86 /
E até os alicerces? Mas, pergunto eu, haveria
grandes alicerces para muros de menos de três metros
de altura? Onde estavam os alicerces das casas
recentemente demolidas frente ao Museu? Alguém os
viu?
Mas, mesmo assim, ainda lá estão algumas pedras
possivelmente do resto das muralhas. Vi duas, no
sítio das Portas da Vila, mas em local não explorado
pelo arqueólogo que dirigiu a intervenção. As portas
e torreões, esses sim, teriam levado maiores silhares,
para maior robustez.
As muralhas desapareceram. Mas não devem desaparecer
da MEMÓRIA da cidade. Seria fácil assinalar com um
pequeno memorial nos locais das Portas de Vagos, da
Vila e do Sol. Seria fácil, ao longo da separatória
a meio das faixas de rodagem da Avenida Central
colocar um empedrado simulando as lajes da muralha.
Aqui fica a lembrança para a Câmara Municipal.
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* Mestre em História Moderna pela Faculdade de
Letras da Universidade de Coimbra; Professor do
Ensino Secundário (aposentado); Docente no I.S.C.I.A.;
Membro da ADERAV. |