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"Patrimónios" – n.º 1, Abril 2001, ano XXII, 2ª série, 160 páginas


AS MURALHAS DA VILA DE AVEIRO EM 1692

Segundo o Tombo da Casa de Aveiro

Manuel Barreira *

Quando, há poucos anos, um grupo de trabalhadores com máquinas procedia à demolição das casas entre as ruas do Rato e de Jesus, frente ao Museu, um numeroso grupo de curiosos juntou-se para ver se, nas paredes dessas casas, ainda restava algum pano das muralhas da cidade. Porém, nada restava.
 

Planta de Aveiro em 1696. Clicar para ampliar.

 
 

Planta de Aveiro em 1696. Clicar na imagem para visualizar em alta resolução (formato A3)

 

A Câmara Municipal, no arranjo urbanístico que se efectuou nesse espaço, mandou que uma escavadora fizesse alguns rasgos, na procura de alguns restos dos alicerces das muralhas. Também nada encontrou. O que levou um jornalista a escrever, de maneira apressada: Nada se encontrou porque as muralhas não passavam por ali.

De facto, das antigas muralhas de Aveiro nada resta hoje de visível. É possível que nos muros traseiros da Escola Secundária Homem Cristo ainda subsistam alguns restos. Mas só uma intervenção o comprovaria. O último pano de muralhas foi destruído há cerca de dúzia e meia de anos na Travessa das Beatas, resto do antigo postigo de Rabais. Também não podemos pensar as muralhas de Aveiro com a grandiosidade dum Castelo de Guimarães, de muitos metros de altura e de grossos silhares. Apenas nas portas, nas torres e nos ângulos e, com certeza, nas paredes sobre a encosta do Côjo a construção era mais imponente.
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Mas a maior parte era um simples muro de cerca de três metros de altura e pouco mais de um metro de largura, principalmente na parte alta da vila. É mesmo com o termo de muro que o Tombo o designa. Daí não precisar de grandes alicerces nem de grossas pedras. Só a parte virada para a ribanceira do Côjo, dado o desnível e a necessidade de segurança, seria construída com mais robustez.

Dois documentos nos descrevem, pormenorizadamente, as muralhas de Aveiro.

O mais conhecido e frequentemente referido pelos historiadores do último século, de Marques Gomes a Inês Amorim, é a descrição de Rangel de Quadros. E embora ele mesmo confesse que a documentação é muito deficiente sobre a construção e reparos posteriores das muralhas, a descrição é rigorosa pois uma grande parte das muralhas ainda subsistia no tempo em que escreveu, ou estava fresco na memória dos conterrâneos. Mas a descrição de Rangel de Quadros não nos permite, com exactidão e segurança, refazer o verdadeiro traçado.

Um outro documento, muito pouco referido mas que me parece ser o mais exacto na descrição das muralhas, é o Tombo da Casa de Aveiro, de 1692 a 1705, existente no Arquivo da Universidade de Coimbra. O Tombo é uma matriz predial de todos os bens imóveis pertencentes ao ducado de Aveiro, neste concelho e nas outras terras do ducado e que pagavam foral ao duque, como Albergaria-a-Velha, Vale Maior, Lamas, Pedras Talhadas, Balazaima, Boialvo, Arinhos, Oiã, Perrães, Loure, S. João de Loure, Águeda, Mouquim, Taipa, Ouca, Pedaçães, Cortovães e os coutos de Barrô e de Óis do Bairro, todas incluídas no Termo de Aveiro. Este Tombo começou a ser feito em 1692 pelo Juiz do Tombo Doutor Gaspar Mendes Grande e só terminou em 1705, já pelo Doutor Faustino de Bastos Monteiro. Cada um destes imóveis: casas, marinhas e terras de cultivo, era medido e descrito ao pormenor nas suas confrontações e dele lavrado um burocrático auto de medição composto por uma convocatória ao titular indicando a respectiva justificação de posse, o auto de medição propriamente dito e a sentença sobre o foro a pagar. A medição das propriedades era feita em varas de medir pano, correspondentes hoje a 1,10 metros cada vara.

O início da construção das muralhas foi o ano de 1418, sob a administração do Infante D. Pedro. Isso mesmo estava gravado no arco sob as portas da vila, logo por baixo do brasão do Infante. Mas já em 1413, D. João I se dirigiu à Câmara da cidade de Coimbra aceitando o protesto dos seus moradores contra a determinação em que estava de os moradores daquela cidade servirem e pagarem para a construção de cercas, muros e torres por ele mandadas fazer nas vilas de Aveiro e Penela.

As obras demoraram cerca de quatro anos, quase sempre com a presença e direcção de D. Pedro, segundo Rangel de Quadros. Mas tal não é exacto, pois ainda em 1451 as obras não estavam concluídas. Segundo este mesmo historiador aveirense, o arquitecto desta obra teria sido Lourenço Eanes de Morais, o mestre de obras do Infante. Sabemos, pelo mesmo autor, ter sido ele o construtor da Igreja de S. Miguel, em 1420. Mas, já em 1451, D. Afonso V / 77 / nomeia o mesmo Lourenço Eanes de Morais, agora já escudeiro e criado do Infante D. Henrique, juiz dos resíduos da vila e "vedor das nossas obras dos muros do dito lugar de Aveiro e pela guisa que o ele foi até agora".

Assim, contrariamente ao que diz Rangel de Quadros, as obras não foram realizadas em quatro anos, mas demoraram, pelo menos, para além de 1451, mais de 30 anos. Nessa data, além da renomeação do vedor das obras, D. Afonso V proíbe os pescadores de mudarem para a profissão de mareantes e condena os transgressores a servirem o dobro do tempo nas obras dos muros da vila, além de determinar que os dinheiros dos resíduos da vila sejam aplicados nas obras das muralhas.

De onde vieram os materiais para as muralhas?

Rangel de Quadros fala da pedra dos arredores de Aveiro e especialmente de S. Roque, de Santiago e do rossio de S. João. Não nos parece que aí tivesse havido tanta pedra, muito embora, em 1600, se fale da extracção de pedra de junto da Fonte da Pega para as obras da Santa Casa da Misericórdia e de que, do mesmo rossio de S. João, se tenha tirado pedra em 1857 para a construção do Liceu. O mais provável é ter sido importada de Eirol, uma pedra rija e avermelhada.

Não vamos aqui fazer a descrição completa das muralhas de Aveiro, pois o relato de Rangel de Quadros é elucidativo. Tão só é nossa intenção comparar e precisar alguns trechos desse relato com a descrição feita pelo Tombo de 1692, que, parece-me, Rangel de Quadros não conheceu.

Examinando os dois relatos e comparando com mapa do séc. XVIII existente no Museu e inserto, em fotografia, pelo Padre Domingos Maurício entre as páginas 14 e 15 do primeiro volume do seu Mosteiro de Jesus de Aveiro, elaboramos esta planta das muralhas.
  Cidade de Aveiro nos meados do século XVIII - Clicar para ampliar.  
 

Cidade de Aveiro nos meados do século XVIII

 

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Rangel de Quadros faz a sua descrição das muralhas começando pelas Portas da Vila, entre a Rua Direita e a do Espírito Santo e limitadas lateralmente pelas Ruas de Jesus (intramuros) e do Rato (extramuros) a Nascente e pelas Ruas do Caneiro (intramuros) e a que vai das portas da Vila para as Portas de Vagos, esta extramuros. Portas e não porta, porque se formava aqui um largo espaço sob o arco: os terminais da muralha formavam, de cada lado, um largo T, que se prolongava de rua a rua, de cada lado das portas. E havia duas portas: uma virada para dentro da vila, outra virada para fora. O Tombo confirma esta construção ao referir que a última casa a poente da Rua de Jesus tem as confrontações sul e poente encostadas ao muro, portanto metidas no ângulo interior do muro, no ângulo interior formado pelo T do muro.

Este espaço das Portas da Vila formavam como que o hall de entrada, de quem vinha por terra. Era um espaço abrigado, com sol, e amplo – lembre-se a largura que tinha a mercearia recentemente demolida. Aí estavam dois grandes bancos de pedra encostados à parede da muralha, um de cada lado, e aí estava sempre gente à espera ou em amena conversa. Também aí perto, nas três ruas extramuros adjacentes, se encontrava, como diz o Tombo, a estalagem de Maria de Oliveira e várias casas de comércio e armazéns de dois estrangeiros residentes em Aveiro.

O mesmo Tombo descreve, seguidamente, e em sentido contrário aos ponteiros do relógio, as casas das ruas de Jesus e do Rato, das portas da Vila para a Porta do Sol, a nascente, numa e noutra quer à mão esquerda, quer à mão direita.
 
 

Convento de S. Domingos. Clicar para ampliar.

 
 

Convento de S. Domingos - Imagem do espólio F. Morais Sarmento.

 

O comprimento deste troço das muralhas rondaria os 100 metros, pelo que supomos que a Porta do Sol estaria no prolongamento da Rua das Arribas de S. Domingos (hoje Rua do Batalhão de Caçadores 10), a uns metros a poente da chamada pérgola da Sé e a sul da porta da Igreja de Santa Joana.

Antes da Porta a muralha tinha aí um torreão ao qual estava encostada a casa de Maria Antónia. Subia-se para esse torreão por uma pequena escada de pedra. Da Porta do Sol saía-se para o Bairro dos Oleiros e para o caminho de Vilar, a sul (actualmente Av. 25 de Abril), e para a Fonte Nova, Barreiras e Côjo, a nascente.
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DAS PORTAS DA VILA PARA A PORTA DO SOL
RUA DE JESUS                                                              RUA DO RATO
PORTAS DO SOL


 

 

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U

A

 

D

E

 

J

E

S

U

S

varas

proprietário

 

 

M

U

R

A

L

H

A

proprietário

varas

 

R

U

A

 

D

O

 

R

A

T

O

proprietário

varas
6 1/3

João Arenas

Mª Antª (junto da Torre)

5 1/2

Pedro de Melo (esquina Rua Vilar)

18 1/2
6 1/2

Casas do Conv. S. Dom.

Francisco Soares

5 1/2

Capela de S. Vicente

 
3 2/3

João Pereira, barbeiro

Manuel de Pinho

4

Cap. Francisco Dias Carvão

14
10

Brites Cardosa (frente Mosteiro)

Maria da Maia

7 1/2

Brites Cardosa

9
10

Ant. Monteiro (frente Mosteiro)

Maria Coelho e irmã

7 2/3

Brites Cardosa

3 1/2
 

Freitas de Jesus (estrebaria)

Miguel Francisco

2 1/2

Cap. Manuel João Homem

6
5

Freitas de Jesus (TORRE)

João André, sacristão

4

Tomás Gil (mercador inglês)

3
8

Freitas de Jesus

António Francisco

7

Luís Dias

2 1/3
7

Maria Arenas

Lourenço dos Santos

6

fornos Cap. Manuel João Homem

8 2/3
5

Coresma dos Santos

João Monteiro

7 2/3

Luís Rodrigues

6
5 2/3

José Martins, alfaiate

Sebastião Lopes

4

António Dias

4 2/3
10

Miguel Ferreira Bettencourt

José Coelho

3 2/3

Maria Fragosa, a fanqueira

3
4 1/3

Francisco Soares

Cecília dos Santos

4

João Coll (virada à Rua Espírito Santo)

 
4

Francisco Coelho

António Leitão

14

 

 
7 2/3

Maria Ferreira, viúva

João André, oleiro

7 2/3

 

 
4 2/3

Casas das Freiras de Jesus

Manuel Dias

10

 

 
 

 

João Broter

7 1/3

 

 
 

 

João Monteiro (não foreira)

?

 

 
 

 

Manuel Dias, marceneiro

3

 

 
 

 

Inácio Cardoso

6 1/2

 

 
 

 

Cap. Manuel João Homem

11 1/2

 

 
 

 

P. Manuel Dias Tilheiro

8

 

 
 

 

P. Manuel Dias Tilheiro

5 1/2

 

 

PORTAS DA VILA


Logo a seguir à Porta do Sol e do lado de fora, havia um grupo de casas encostadas ao torreão e respectivo muro, das quais sobressaiam as casas sobradadas do rico comerciante João Monteiro. O Muro seguia ao comprido com a Igreja do Mosteiro de S. Domingos, sensivelmente no lugar onde hoje está a já referida pérgola da Sé. Junto da parte traseira da Igreja e por detrás do Mosteiro e intramuros ficava um grande terreno vazio, que servia de picadeiro à nobreza e de recreio a todos os que possuíssem cavalo e para os cordoeiros / 80 / fabricarem as suas cordas. Corresponderá hoje a todo o terreno do cemitério e às casas e respectivos quintais a nascente da Rua de Caçadores 10, excluídos os que eram pertença directa do Mosteiro, entre a Igreja e a, hoje, Residência Paroquial. Era o Campo de S. Domingos. As muralhas abraçavam, em grande círculo, dos lados nascente e norte, todo esse terreno.
Logo por detrás da Igreja ficava a Torre dos Oleiros, com a sua escada pelo lado de dentro, e um postigo de passagem, o postigo do Campo de S. Domingos. Este postigo foi objecto de longas contendas dos Frades de S. Domingos com a Câmara e povo de Aveiro, nos séculos XVII e XVIII. Os Frades queriam apoderar-se do Campo para horta e seu lugar de passeio, de meditação e de descanso. Por isso, por várias vezes se dirigiram ao Rei, fazendo o pedido e dizendo que as pessoas da vila, usando aquele postigo e torre, lhes devassavam o recolhimento com barulhos e palavras injuriosas. A eles e, pior ainda, às Religiosas de Jesus, suas irmãs e vizinhas e em cujo convento estava o túmulo de Santa Joana. A demagogia não é só de hoje! Claro que o Senado da Câmara sempre rejeitou a cedência. Mas os Religiosos, em 1699, conseguiram que fosse proibido subir à Torre dos Oleiros, para não molestarem o recolhimento das Freiras. Falso pretexto, porque dali não se podia devassar o convento das Freiras. Por fim, em 1744, aproveitando a magnanimidade e beatice de D. João V, protestando que fariam outro postigo de mais proveitoso uso para a população em frente à rua do Campo, "a meio da Vila", (exactamente no local onde hoje estão as escadarias do Fórum, junto dos cinemas) e que se ofereciam para pregarem gratuitamente todos os sermões na Igreja da Misericórdia e criarem, na vila, uma cadeira pública de ensino da Filosofia, acessível a todos os estudiosos, conseguiram o alvará real.

Deste Postigo dos Oleiros e até ao ângulo nascente, onde as muralhas flectiam para norte, sobre as barreiras, havia um numeroso bairro de 16 pequenas casas, algumas com pequenos quintais, todas encostadas ao muro, pelo lado de fora. Ainda há poucos anos era possível ver algumas dessas pequeninas casas.

Daí as muralhas decorriam por sobre as barreiras do Côjo, até encontrarem novamente a Rua da Corredoura ou das Arribas de S. Domingos. Rangel de Quadros diz "de forma circular", fazendo um semi-círculo até quase à esquina do quintal das Freiras de Jesus (hoje jardim e parque infantil, na esquina da Rua Nascimento Leitão – antiga Rua do Campo ou das Laranjeiras – ou seja, até à escadaria do Fórum, pois não existiam as casas da esquina daquela rua). Porém o mapa de Aveiro existente no Museu, já acima referido, desenha-o seguindo o relevo das barreiras e do actual cemitério, como as conhecemos hoje.

Os muros desciam, de seguida, para as pontes do Côjo, paralelos à rua da Corredoura ou das Arribas de S. Domingos, até à Porta do Côjo. É difícil hoje situar com exactidão esta porta. As construções, ao longo de três séculos, na zona compreendida entre a Misericórdia e a casa dos Tavares, com casas, armazéns, terraços, varandas, arcos e passadiços por cima das casas e das muralhas, criaram uma confusão de labirintos de que hoje nada nos resta que nos ajude a destrinçar o que era particular e o que era público. No entanto creio que o beco / 81 / sem saída, a norte da actual Capela Mortuária da Misericórdia, deve estar relacionado com essa porta.

A Porta do Côjo ficava muito perto da ponte com o mesmo nome. Dava para o campo do Côjo de Aquém e para a ponte, através de uma pequena viela, a viela das Alminhas. O Côjo de Aquém era um pequeno bairro de 41 casas, situado a sul do canal das azenhas, fora das muralhas, onde hoje está todo o complexo do Centro Comercial e Residencial do Fórum.

Neste lanço das muralhas, por detrás do primitivo Hospital da Misericórdia (onde actualmente está a Casa Mortuária) havia umas escadas por onde se descia para este pequeno bairro. Eram as Escadas do Muro.

Daqui até à Porta da Ribeira a muralha confundia-se com as casas, ou melhor, as construções foram feitas por dentro e por cima das muralhas, usadas como varanda, passadiço e até terraços. Esta utilização das muralhas como parede de casa vinha já desde o Infante D. Pedro que, em 1435, obteve de D. Duarte licença para construir o seu palácio junto da muralha da vila e algumas casas em cima dela "por haverem melhor vista" sem, contudo prejudicar que por cima se pudesse passar para vigilância e defesa.

RUA DAS ARRIBAS DE S. DOMINGOS
(OU RUA DA ESCADA DO MURO)

(DE S. DOMINGOS PARA A PRAÇA DA RIBEIRA)
 

do lado direito, encostadas ao muro, junto ao Côjo

do lado esquerdo quem desce, junto ao Côjo

 

varas

proprietário

rua

proprietário

varas

M

U

R

O

9

Manuel da Silva, de Vagos

 

 

 
5

Sogra de Manuel da Silva,

 

 
 

escadas do muro

Hospital Velho

 
5

Confraria de Nª Srª do Rosário

António Rangel

7
5

Manuel Coelho

António Tavares

11
4

Manuel Coelho

Manuel G. Janeiro

 
5

Francisco Pereira d'Eça

Pedro Francisco

 

O exemplo do Infante foi seguido por outras pessoas, nobres e homens bons. Até o bispo D. António Cordeiro, o 2° titular do cargo em Aveiro, ao criar o seu Paço Episcopal no palácio dos Tavares e querendo vir para a Sé Episcopal, na Igreja da Misericórdia, sem se molhar nem apanhar solou só para não ter o enfado de vir à rua pública, mandou construir um passadiço por sobre as muralhas, sobre o arco das portas da Ribeira e do Côjo e casas adjacentes e entrava na Sé por uma porta do andar superior da Misericórdia.

Logo a poente da porta do Côjo estavam as portas da Ribeira, no prolongamento da rua da Costeira e na entrada da ponte da Ribeira. Também portas porque, como as da Vila, / 82 / eram duas e formavam um átrio e era o lugar de honra onde se recebiam solenemente as pessoas nobres que vinham por mar. Muitas aí foram recebidas, mas a mais notória e anedótica, porque caricata, foi a recepção feita à Rainha Da. Maria da Glória, em 1852. Já as muralhas estavam a ser destruídas ou em avançada ruína, já as portas tinham desaparecido, mas o Presidente da Câmara, Dr. Bento José Rodrigues de Magalhães, quis receber condignamente Sua Majestade e entregar-lhe solenemente as chaves das portas da cidade, como era do protocolo oficial. Mas, e as portas? Para grandes males, grandes remédios. Mandou pintar uma grande tela: portas, colunas, cimalha, as armas da cidade e duas figuras mitológicas: a Abundância e a Esperança. Mas a Rainha vinha tão cansada do calor da viagem pela Ria, desde Oval', que dispensou todas as cerimónias e recolheu-se de imediato.

Da porta da Ribeira até à porta do Cais ou do Norte a muralha continuava ligada às casas, na sua maior extensão ao palácio dos Tavares. A porta do Cais ficava no fim da viela do Correio e por esta se subia até à Albergaria de S. Brás e rua do Loureiro. Era também a principal porta de serviço de marnotos, marinheiros e comerciantes ligados ao porto e que, como se depreende do agravo que os oficiais da Câmara fizeram para o Rei contra o Ouvidor da vila em Julho de 1550, estava sempre aberta para, a qualquer hora do dia ou da noite, puderam acudir à entrada ou saída de navios, dependendo da hora das marés.

Da porta do Cais as muralhas curvavam para sul, em redondo, até ao postigo da Cale ou porta do Alboi e que servia todo o bairro deste nome. Esta porta ficava mesmo nas traseiras da Albergaria de S. Brás e abria para a Travessa da Rua das Barcas e, para sul, para a Rua das Arribas de Santo António.

Do Postigo da Cale as muralhas subiam para sul, por toda a encosta da baixa de Santo António, em linha quase recta até às Portas de Vagos ou de Santo António. A meia distância tinham o Postigo de Rabais, ladeado por uma grande torre de vigia.

Estava num ponto alto e boa vista sobre toda a baía e marinhas, era um bom ponto de vigilância, o melhor sobre a entrada da barra.

Quem hoje se colocar na Rua Homem Cristo Filho ou na Rua Capitão Sousa Pizarro e reparar no grupo de casas entre as duas ruas verá, na separação das casas, costas com costas, todos os acrescentos para utilização dos espaços deixados pela demolição das muralhas.

Entre o Postigo de Rabais e as Portas de Vagos havia dois pequenos torreões, no meio dos quais se construiu mais tarde e depois de demolidas as muralhas, o palácio da baronesa de Almeidinha. O palácio era no local onde hoje está o Governo Civil e as duas ruas laterais ocupam o espaço exacto dos torreões.

As Portas de Vagos eram em tudo semelhantes às da Vila e da Ribeira. Ficavam no local exacto do actual cruzamento onde estão os semáforos. Foi por estas portas que entrou, à força de anuas, D. António, Prior do Crato, em 1580, deixando-as completamente destruídas. Daqui as muralhas flectiam a nascente, em direcção às Portas da Vila, em linha recta. Rangel de Quadros refere que existia um postigo por detrás do Convento das Carmelitas. E até lhe chama o Postigo do Sol. Deve ser confusão com o Postigo do Campo ou do Sol, a nascente / 83 / da Porta do Sol e de que já falámos. O Tombo, pelo menos, não refere nenhuma entrada nesta zona. Ou melhor, fala no caneiro da água que vinha da fonte junto da Igreja do Espírito Santo e que atravessava a muralha. Não diz se eram águas de escoamento ou se para uso do Convento e sua horta.

DOS POSTIGOS DA CAL E DE RABAIS PARA A PORTA DE VAGOS
RUA NOVA   RUA DAS ARRIBAS DE S. ANTÓNIO

 

 


R

U

A

 

 

N

O

V

A

varas

proprietário





 

 



M

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A

L

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A

proprietário

varas


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D

A

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B

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S

 

D

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S

A

N

T

O

 

A

N

T

Ó

N

I

O

11

Manuel Florim

 

 
4

Ana das Costa, viúva

    (junto da Torre)

 
4

André Ferreira

Francisco Soares

11
8

António Gomes Janeira

 

 
6 2/3

Manuel Miguéis

 

 
5

João Tavares

pousio devoluto

 
4

Luís da Silva Mendes

 

 
4

Domingos Francisco, o catavento

José Pereira da Silva

9 1/2
4

Luís da Silva Mendes

 

 
3

Manuel André, o Sardo

 

 
3 1/2

Manuel Soeiro Cardoso

 

 
24 2 palmos

Gonçalo de Sousa e Menezes

 

 
13

Padre Matias Cabral da Veiga

5

Padre Matias Cabral da Veiga

 

 
6

Madalena Fernandes

 

 
3 1/3

Manuel Florim, pedreiro

Isabel Freire Pimentel,

18 1/2
3 2/3

Manuel Francisco, o curtido

 

 
4

Maria André

 

 
5

Francisco Cardoso Pacheco

 

 
14

Cap. António Seabra Ribeiro

 

 
16 2/3

estrebaria de Marta da Cruz

Maria Simões

4 1/4
14

quinta de Geraldo Pacheco Masc.

 

 
10

Isabel Cardoso da Silveira

 

 
10

Geraldo Pacheco de Mascarenhas

 

 
6 1/2

Maria da Apresentação

 

 
15

Miguel Rangel de Quadros

 

 
12

Roque Pimentel Coelho

 

 
6 1/3

António André, o lapa

 

 
2

Roque Pimentel Coelho

 

 
4

Miguel Rangel de Quadros

 

 
7

Manuel Fernandes, o serrano

 

 
2 1/2

Manuel de Paiva

 

 
4 1/2

António Fernandes, o tropezo

 

 
4 1/2

Manuel João, o Vagos

 

 
5

Frades de S. Domingos

 

 
18

pardieiros de Francisco Rangel

 

 
 

pardieiros de Francisco Rangel

Geraldo Pacheco Mascarenhas

13 1/2
 

postigo de Rabais

 

 
 

Travessa das Beatas

José Pereira da Silva

5 1/2
 

 

Custódio Fernandes

5 3/4
 

 

António Manuel

5 1/2

/ 84 /
   

 

 

quintal de Manuel Francisco

8 1/2

 

A

R.

 

D

E

 

S

T

O

 

A

N

T

Ó

N

I

O

   

 

 

João Domingos, tanoeiro

3 1/4
   

 

 

João André da Marnota

3 1/2
   

 

 

João André da Marnota

3 1/2
   

 

 

Manuel Afonso

4 1/4
   

 

 

Francisco Barbosa

3 1/2
   

 

 

Manuel Afonso

4 1/2
   

Traseiras da Albergaria de S. Brás

 

Manuel dos Santos Sete

5
   

 

 

Padre Manuel Lopes

4
   

 

 

Manuel Rebelo

3 1/2
   

 

 

Custódio Francisca

4
   

 

 

André da Costa Bombarda

6
   

 

 

herdeiros de Manuel Pinheiro

3 1/3
   

 

 

Padre Diogo Leitão

5
   

 

 

António Afonso

4
   

 

 

Padre Tomé Rebelo Mendonça

3 1/2
   

Traseiras do Palácio do Marquês de

 

Maria Tavares

2 1/2
   

Arronches

 

Maria João, a manjão

3
   

 

 

José Fernandes, sapateiro

10
   

 

 

pardieiros de João André

11 1/2
   

 

 

Domingos Rodrigues, barbeiro

10
   

 

 

João Call, mercador inglês

6 1/3
   

 

 

postigo da Cal

 

Precisaria Aveiro de muralhas? Ou a construção de muralhas teve uma finalidade mais política, integrada na centralização do poder régio?

Não é momento de entrarmos nesta polémica. Mas é facto que as muralhas só serviram, e mal, na invasão de D. António, apesar do muito dinheiro que se gastou na sua construção e frequentes reconstruções. Também as muralhas de Aveiro não eram umas muralhas de castelo. Eram mais um muro que cercava a cidade, muro pouco alto e de pouca grossura. As gravuras existentes são laudatórias da grandiosidade da cidade. Mais real é o tombo, na medição das casas e do lugar que deixava livre para o muro e as ruas. Isto estava bem patente nas ruas de Jesus e do Rato, onde a casa recentemente demolida e que foi mercearia/drogaria ocupava a largura de duas casas e das muralhas.

E por que é que não se encontrou nenhum resto das muralhas nas escavações, quer quando se fez a pérgola, quer quando se urbanizou a Avenida Central?

Aveiro tem pouca pedra para as construções. Para se construir a Misericórdia importou-se quase toda a pedra de Ançã. A pedra dos arredores da cidade seriam pouco mais que calhaus roladas, arrastados pelas enxurradas pós-glaciares. Ligados com argamassa e cacos de bano, dariam um muro consistente. Apenas as torres, as portas e os lanços mais estratégicos teriam pedra trabalhada. E isso é provado por duas fotografias que chegaram até nós: uma da tone do Postigo de Rabais, de 1959, inserta na Colectânea de Documentos Históricos, edição da Câmara Municipal de Aveiro, a páginas 156 do 10 volume. Uma outra é da torre que ficava junto da Porta do Sol. E as actuais obras da construção da passagem inferior tem posto à luz exactamente esse tipo de pedra. Claro que a sua maior parte foi sendo extraída pela população para as suas obras.
/ 85 /
Depois de D. João V não se fizeram mais reparações nas muralhas. As rendas da Alfândega eram nulas, a população estava na miséria, reduzida a um quarto do que fora no século XVI. A crise da barra dava mais preocupação. Os muros começam a cair e as pessoas a aproveitar as pedras para reparar as suas casas. Com as obras da barra autorizou-se que se começassem a demolir as muralhas. O mesmo na construção do Liceu José Estêvão (hoje Escola Secundária Homem Cristo) e dos paredões dos canais. E, a pouco e pouco, os muros foram desaparecendo.

DAS PORTAS DE VAGOS PARA AS PORTAS DA VILA

   RUA DE STº ANTÓNIO PARA AS PORTAS DA VILA                 RUA DO CANEIRO
 

RUA

VARAS

PROPRIETÁRIO

 

PROPRIETÁRIO

VARAS

RUA

   

 

 

pardieiro de  Diogo Soares

7

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A

 

 

D

O

 

 

C

A

R

N

E

I

R

O

 

 

pardieiro de Francisco Dias

4
 

 

pardieiro de Francisco Jorge

8
 

 

pardieiro de Manuel Florim

6
30

armazém de Miguel Gomes

Manuel Florim, pedreiro

4 1/2
 

 

António Fernandes, o paixão

5
 

 

Pedro Ribeiro de Oliveira

2
 

 

Maria João, a torta

5 1/2
 

 

Manuel António, o sapateiro

3 1/2
6 1/2

pardieiros Freitas de Jesus

Catarina Barbosa

3 1/2
 

 

Manuel Fernandes, herveiro

15
5

Sebastião Fernandes

Manuel Pacheco, armador

15
 

 

Tomé Gonçalves, o raposo

5 1/2
2 1/2

Isabel da Silva

Domingos Lopes, o mostarda

13 1/2
 

 

Manuel António, o sapatinho

14
 

 

Francisco Almeida

6
 

 

José de Paiva, pedreiro

2 2/3
 

 

pardieiro de Catarina Barbosa

 

caneiro da água

           caneiro da água

  2 1/2

Isabel da Silva

 

   
8

Geraldo Pacheco

Manuel Francisco, sapateiro

40
24

armazém de João Call

 

 
4 1/2

Ana João

 

 
12 1/2

Ana Ribeira

Domingos Migueis, o malhado

6
 

RUA DO ESPÍRITO SANTO

 

RUA DIREITA

 

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E até os alicerces? Mas, pergunto eu, haveria grandes alicerces para muros de menos de três metros de altura? Onde estavam os alicerces das casas recentemente demolidas frente ao Museu? Alguém os viu?
Mas, mesmo assim, ainda lá estão algumas pedras possivelmente do resto das muralhas. Vi duas, no sítio das Portas da Vila, mas em local não explorado pelo arqueólogo que dirigiu a intervenção. As portas e torreões, esses sim, teriam levado maiores silhares, para maior robustez.

As muralhas desapareceram. Mas não devem desaparecer da MEMÓRIA da cidade. Seria fácil assinalar com um pequeno memorial nos locais das Portas de Vagos, da Vila e do Sol. Seria fácil, ao longo da separatória a meio das faixas de rodagem da Avenida Central colocar um empedrado simulando as lajes da muralha.

Aqui fica a lembrança para a Câmara Municipal.
_________________________________________

* Mestre em História Moderna pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra; Professor do Ensino Secundário (aposentado); Docente no I.S.C.I.A.; Membro da ADERAV.


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