O
DISCURSO SEGUNDO AS PESSOAS
INTERVENIENTES
NA COMUNICAÇÃO
Antes de vermos, separadamente, os
tipos de discurso que poderemos considerar, tendo em conta as pessoas
intervenientes na comunicação ou enunciação linguística, vejamos o que, sobre o
assunto, nos é apresentado nos dicionários de linguística.
Vimos
anteriormente que, numa acepção linguística moderna, o vocábulo
discurso designa
todo o enunciado superior à frase, podendo ser considerado como sinónimo de
enunciado. A oposição entre enunciado e discurso corresponde apenas à oposição
entre linguística e não linguística. Enquanto a linguística se apoiava na
análise dos enunciados, as regras do discurso, ou melhor dizendo, o estudo dos
processos discursivos que regem o encadeamento das sequências frásicas era
remetido para outros domínios, para outros modelos e métodos. Foi
Jacques
Lacan quem
primeiro efectuou uma análise do discurso, tendo em conta o sujeito falante,
ainda que sob uma perspectiva psicanalítica. Foi ele quem pôs o problema
inicial do discurso ao estudar a função e o campo da palavra e da linguagem em
psicanálise.
A
partir da meditação dos textos escritos por Jacques Lacan,
Émile
Benveniste abordou,
numa perspectiva linguística, o problema
do discurso. Segundo
ele, as frases não constituem uma classe formal de unidades oponíveis entre si,
tal como os fonemas se opõem a outros fonemas, os morfemas a outros morfemas e
os lexemas a outros lexemas. Com a frase, sai-se do domínio da língua
como sistema de sinais para se entrar no domínio do discurso, em que a língua
funciona como instrumento de comunicação. Deste modo, a frase apresenta-se
como a unidade do discurso.
Benveniste
opõe o conceito de narração ao de discurso. Segundo ele, a
narração
representa o grau zero da enunciação, uma vez que nela tudo se passa como se
nenhum sujeito falasse. Os acontecimentos parecem surgir sem que alguém os
apresente. Contrariamente, o discurso
caracteriza-se pela existência da enunciação, do chamado
acto de
fala, o que
pressupõe, desde logo, a existência de dois sujeitos falantes
─ um locutor e um auditor
─ e
uma
vontade implícita ou explícita do locutor em influenciar o seu interlocutor.
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Figura 52:
As três pessoas gramaticais. |
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A
nível do discurso estabelecem-se, portanto, relações e oposições entre os
interlocutores de acordo com a pessoa verbal presente. Ao todo, podemos
considerar três
pessoas verbais ─ primeira, segunda e terceira pessoa
─ , cada uma delas com as suas características.
Segundo os
gramáticos
árabes, a primeira
pessoa
corresponde àquele que fala, a segunda
pessoa é aquele
a quem nos dirigimos e a terceira
pessoa aquele
que está ausente, que não participa no acto comunicativo, mas de quem se fala.
A
primeira pessoa, indicada pelo pronome «eu», corresponde, no esquema da
comunicação, ao sujeito emissor; é aquele que profere o enunciado e que se
torna, consequentemente, o responsável pelo enunciado proferido.
A
segunda pessoa, representada pelo pronome «tu», é designada a partir da
primeira pessoa e corresponde ao sujeito receptor, àquele a quem o «eu» se
dirige.
A
terceira pessoa, indicada pelo pronome «ele/ela», refere-se a
alguém que se situa fora da relação «eu/tu», ou seja, corresponde a alguém que
não é nem o emissor, nem o receptor. Não é, consequentemente, protagonista do
acto comunicativo, pelo que Benveniste a
considera como não-pessoa, correspondendo a um dos factores exteriores
aos protagonistas da comunicação; corresponde, neste caso, ao referente.
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Figura 53:
Correlações entre as três pessoas gramaticais, segundo Benveniste. |
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Entre as três
pessoas
─ eu/tu/ele
─ estabelecem-se dois tipos de correlações:
de personalidade e de subjectividade.
A
correlação
de personalidade
estabelece-se entre as duas primeiras pessoas e a terceira. Enquanto as
duas primeiras pessoas possuem a marca da personalidade, são pessoas, a
terceira caracteriza-se pela sua ausência, pelo que é considerada por Benveniste como não-pessoa.
Entre a
primeira e a segunda pessoa, estabelece-se uma
correlação
de subjectividade. Enquanto
o «eu» se caracteriza pela sua subjectividade e apresenta unicidade e
interioridade, o «tu» é uma pessoa exterior ao «eu» e, como tal, uma pessoa não-subjectiva.
Há, pois, oposição entre o «eu» e o «tu», a que se dá a designação de
correlação de subjectividade.
O
esquema da figura 53 permite-nos visualizar as relações existentes entre
as três pessoas. Segundo Benveniste, este esquema só é aplicável às pessoas
verbais do singular, não se podendo transpor esta rede de relações para as
pessoas do plural. O «eu» caracteriza-se pela sua unicidade e
subjectividade, pois não podem existir vários «eus». Significa isto que o «nós»
não constitui uma multiplicação do «eu», mas sim a junção de outras pessoas
exteriores «não-eu» ao «eu». O plural é, portanto, como que uma ampliação
da primeira pessoa do singular, à qual se juntam outras pessoas e onde
necessariamente está implícita a presença do «eu».
Com
as restantes pessoas do plural ocorre igualmente um processo de amplificação. No
«vós», quer se trate de um conjunto de pessoas, quer do «vós» como forma de
tratamento respeitoso, ocorre o mesmo processo de generalização; relativamente
à terceira pessoa, «eles» exprime uma ilimitação dos elementos não
pessoais[1].
Analisadas as
relações existentes entre as três pessoas verbais, poderemos
considerar
três tipos
de discurso
inerentes a cada uma destas três pessoas: discurso de primeira, segunda e
terceira pessoa.
O
discurso
de primeira pessoa
caracteriza-se, desde logo, pelo facto de estar centrado no sujeito
emissor, na medida em que é a primeira pessoa a responsável pelo
acto
elocutório[2]. Uma vez
que está centrado no sujeito emissor, caracteriza-se pela sua
subjectividade. Ao longo de todo o discurso, é a subjectividade do sujeito
emissor que, apropriando-se da língua, individualiza e organiza os signos
linguísticos segundo a sua própria vontade e intencionalidade num todo
coerente, que constitui o discurso. O emissor exterioriza toda uma série de
conteúdos que lhe dizem respeito, que podem ser de natureza emotiva ou
volitiva, fornecendo indicações sobre si mesmo.
Marcado
pela subjectividade, o discurso
de primeira pessoa
apresenta consequentemente marcas que dependem do carácter pessoal e individual
conferido à linguagem. A nível da língua, encontramos toda uma série de marcas
que permitem, desde logo, identificar o discurso de primeira pessoa,
tais como:
·1. predominância das formas verbais de primeira
pessoa;
·2. a presença de deícticos de primeira pessoa,
tais como demonstrativos, possessivos, pronomes pessoais;
·3. valor expressivo e afectivo atribuído a
determinadas instâncias do discurso, consubstanciado na função emotiva da
linguagem.
Estas marcas
subjectivas estão frequentemente patentes na utilização de certos adjectivos e
de certas formas adverbiais, que permitem exteriorizar uma visão pessoal,
subjectiva, da realidade ou de determinada situação.
O discurso de
primeira pessoa pode ser encontrado em vários tipos de enunciados, sejam eles
orais ou escritos. Mas encontra-se na sua forma mais pura em dois tipos de
textos: no
monólogo, em que
o emissor coincide com o receptor, na medida em que o «eu» escreve para si
mesmo, pensando, reflectindo e conjecturando sobre coisas ou factos ao sabor do
fluxo da sua consciência; no
diário, no qual
o sujeito emissor, o «eu», fixa no tempo, pela escrita, as suas impressões,
reflexões, experiências ou até mesmo acontecimentos do mundo exterior que, por
qualquer motivo, mais vivamente o impressionaram e sobre os quais tece
frequentemente considerações segundo o seu próprio ponto de vista. Em qualquer
destas duas formas de manifestação
─ monólogo
ou diário
─ todas as instâncias do discurso se definem a
partir da reflexão e percepção pessoais do mundo e da vida, tornando toda a
mensagem carregada, consequentemente, de subjectividade.
O
discurso
de segunda pessoa,
centrado no sujeito receptor, constitui um discurso
de persuasão,
característica esta já enunciada por Benveniste quando definiu discurso como «toda
a enunciação que pressupõe um emissor e um receptor, existindo no primeiro a
intenção de influenciar o outro de algum modo». Influenciar, persuadir,
aconselhar, advertir, ordenar, mandar, ameaçar, exigir, eis toda uma série de
intenções afins em que o sujeito emissor, em maior ou menor grau, exige ou
procura obter do receptor uma reacção específica. Consequentemente, o discurso
de segunda pessoa está centrado no sujeito receptor, desempenhando papel
importante os actos elocutórios, através dos quais o emissor se dirige ao
receptor, visando obter dele uma determinada reacção. Predomina,
consequentemente, a função apelativa ou conativa da linguagem, sendo o discurso
de segunda pessoa caracterizado por um conjunto de marcas linguísticas, dentre
as quais se destacam os verbos performativos[3] e as
formas do imperativo. Relativamente ao imperativo ou formas com valor afim, não
há qualquer dúvida sobre a intencionalidade do emissor em pretender impor ao
receptor um determinado comportamento. Quanto aos
verbos
performativos, estes
integram-se no discurso de persuasão só em determinadas circunstâncias,
quando implicam directamente a segunda pessoa como destinatário ou testemunha
de um acto performativo. Por exemplo, se o emissor A disser a B que lhe promete
fazer algo se B realizar determinadas acções, A está a procurar convencer B a
reagir de determinada maneira, pelo que aqui não há qualquer dúvida que toda a
enunciação vai recair sobre o receptor, evidenciando-se de imediato a
função conativa ou apelativa da linguagem, que também poderíamos aqui designar
por função persuasiva.
Convirá
chamar a atenção para o facto de que no discurso de segunda pessoa podemos
encontrar marcas gramaticais referentes à primeira ou à terceira pessoa. Por
exemplo, A diz «Garanto-te que te darei isto, se fizeres o que te pedi.»,
encontramos na primeira metade da frase elementos referentes à primeira pessoa;
no entanto, o objectivo fundamental é levar o «tu» a fazer algo, pelo que o
predominante é o discurso de segunda pessoa. Quando, numa mensagem
publicitária, encontramos uma frase do tipo «Faça desde já a sua assinatura
e evitará a decepção de deparar com a sua revista esgotada.», embora o
verbo esteja na terceira pessoa gramatical, não há qualquer dúvida de que o
sujeito elocutor está a centrar a sua atenção no receptor
─ o «eu» procura influenciar o «tu»
─ , tendo em vista levá-lo a agir. O que aqui
sucede é o facto da língua portuguesa apresentar esta forma de elocução, com a
qual se procura manter um certo distanciamento por deferência entre o emissor e
o receptor, sobretudo se as relações entre eles não permite um tratamento por
«tu».
O discurso
de segunda pessoa está
presente em diversos tipos de textos, dentre os quais se destacam os
textos
publicitários e o
discurso
argumentativo sob
várias formas: sermão, discurso
político, palestras, defesa
de uma tese, etc.
Quer na
mensagem publicitária, quer no discurso argumentativo, a pessoa privilegiada é
sempre a segunda pessoa
─ o
sujeito receptor
─ , pretendendo o sujeito
elocutor, o publicista, o orador, convencer e levar o receptor a adquirir um
determinado produto, a agir de determinada maneira ou persuadir e levar o
público à aceitação de determinadas ideias ou princípios, consoante o tipo de
situação e objectivos em vista.
O
discurso
de terceira pessoa, uma vez
que é inerente à terceira pessoa, refere-se, como já atrás foi dito, a
alguém ou a algo que se situa fora da relação «eu/tu», o que significa que
nunca participa no acto da comunicação, ao contrário das duas primeiras
pessoas. O discurso de terceira pessoa está centrado no referente e apresenta
por isso uma função informativa. Encontramo-lo em vários tipos de textos.
Está presente, por exemplo, no discurso de imprensa, tal como nas notícias e
artigos de pequena e grande actualidade (respectivamente os «faits divers»
─ ou casos do dia
─ criminais,
acidentais, sentimentais e notícias locais e os acontecimentos situados no plano
da grande actualidade nacional e internacional) e no discurso historiográfico,
que engloba também o discurso biográfico, e no ensaio.
Além dos três
tipos de discurso apresentados, podemos encontrar casos em que estes se podem
combinar, constituindo
discursos
híbridos. Acontece
isto frequentemente quando a enunciação incide ao mesmo tempo sobre duas
pessoas ou dois factores da comunicação, podendo-se encontrar discursos
híbridos de primeira e segunda pessoa, de primeira e terceira pessoa e de
segunda e terceira pessoa, centrados respectivamente no emissor/receptor, no
emissor/referente e no receptor/referente. Encontramos exemplos destes
discursos híbridos no género epistolar, nas crónicas e nos comunicados.
O TEXTO
LITERÁRIO E O NÃO LITERÁRIO
Dissemos anteriormente,
quando falámos dos níveis de língua, que a linguagem
literária
constitui um domínio específico da língua, uma forma de expressão artística que
transcende a escrita corrente, e que se caracteriza pelo seu apragmatismo, na
medida em que, num texto literário, é possível encontrarmos qualquer registo de
língua. No texto
literário, o
sujeito da enunciação, isto é, o autor, introduz uma forma pessoal, individual,
de realização da língua, adaptada aos seus objectivos, procurando imprimir ao
discurso uma maior expressividade mediante a utilização de diversos recursos
retórico-estilísticos, que fazem com que o texto se desvie do nível médio
ou norma padrão.
Leiam-se, antes
de apresentarmos as características do texto literário, os dois textos
seguintes:
texto 1
O SOL, A NOSSA ESTRELA
Para nós, o Sol é o astro mais
importante do firmamento. Sem ele não poderíamos existir e a Terra não teria
nascido. Pensa-se que a Terra e todos os outros planetas se formaram há mais de
4 500 milhões de anos, a partir de uma nuvem de matéria que na altura rodeava o
jovem Sol.
A
nossa estrela tem 1 392 000 km de diâmetro e é mais de um milhão de vezes maior
que a Terra. É constituída por gases e contém enorme quantidade do mais leve, o
hidrogénio, a substância mais comum em todo o Universo.
O
Sol é muito quente, com a temperatura superficial de 6000 C, mas não está a
«arder», no sentido usual do termo. Bem no interior, onde as temperaturas são
extraordinariamente elevadas, o hidrogénio está a transformar-se noutra
substância, chamada hélio. Durante esta transformação, liberta-se um
pouco de energia e perde-se um pouco de massa ou quantidade de matéria. É
esta energia que mantém o Sol a brilhar. A perda de massa é da ordem dos 4 000
000 de toneladas por segundo. Mas o Sol é tão grande que o seu tamanho não se
alterará muito, pelo menos nos próximos 5000 milhões de anos.
Na brilhante superfície do Sol
observam-se frequentemente manchas escuras, conhecidas por manchas solares.
Nunca se deve olhar directamente para o Sol, nem à vista desarmada, nem através
de telescópios ou mesmo de binóculos. Por esta imprudência concentrar-se-ia a
luz e o calor nos olhos, causando cegueira permanente. Mesmo o uso de um vidro
escuro em frente do telescópio é imprudência: estes vidros partem-se muitas
vezes sem aviso, e de resto também não bloqueiam suficientemente a luz e o
calor. Há só uma regra segura sobre a observação directa do Sol: não a fazer!
Nenhuma
das manchas solares dura mais do que uns meses. Cada onze anos, o Sol torna-se
muito activo, produzindo grande número de manchas. A actividade começa depois a
decrescer, e anos há em que poucas se observam. 1980 foi o último período de
grande actividade; o próximo ocorrerá provavelmente em 1991. (...)
Texto
extraído da Enciclopédia Cambridge da Ciência, vol. I, Espaço
exterior e espaço interior, Lisboa, Editora Verbo, 1986, pp. 18-19.
texto 2
RAIO DE SOL
Tinham travado amizade no meio de
grande confusão.
Assim
que as aulas começaram, Raio de Sol chegou à escola, com o melhor dos sorrisos.
Finalmente, as férias de Verão tinham acabado.
Alegres
como pardais, no rebentar de um novo dia, voltavam os companheiros, a quem se
iria juntar na festa da miudagem.
Coitado,
foi nisso que se enganou!
Todas
as manhãs os miúdos aproveitavam a sua chegada, para pôr a aula em rebuliço.
Pousava
no rosto de cada um, em carícia de amizade, e logo o moço gritava:
─ O Sol está a bater-me na cara. Posso afastar a
carteira?
Corria
em seguida para outro na esperança de mais carinho, e a reacção era igual:
─ Estou com o Sol na cabeça. Posso mudar de lugar?
E porque a professora concordasse
que o Raio de Sol era intruso, e além disso brigão, acabava por consentir na
gincana das carteiras.
E
zás!
Mal
o pobre se descuidava, retiravam-lhe o apoio, lá ia ele aos trambolhões,
agarra aqui, cai acolá, estatelar-se no chão.
Divertiam-se
à sua custa, disso, não tinha dúvidas.
Andou
nisto várias semanas, armado em bombo da festa, até que um dia, quase a ficar
desesperado, encontrou a perna amiga de um menino, que o ajudou a levantar.
─ Olá, patinador dos caídos. Chamo-me Mário. E tu,
tens nome?
─ Tenho pois! Raio de Sol todo partido, assim que entro
nesta sala. Ou se preferes, um poeta, que perdeu a inspiração.
─ Talvez te possa ajudar. Dá cá a mão, meu poeta.
Riram
os dois, satisfeitos com o desfecho da cena, e logo no mesmo dia falaram pelos
cotovelos.
Desde
então, mal surge na janela, Raio de Sol dispara em linha recta para a carteira
do amigo, e em voz baixa conversam as novidades do dia.
FERNANDO BENTO
GOMES, Enquanto
Houver Sol Há Esperança.
Não
é necessário grande esforço nem uma análise muito profunda para imediatamente
distinguirmos o texto
literário do texto não
literário.
O texto 1
apresenta uma linguagem objectiva, directa, e um fim utilitário. Utilizando um
discurso de terceira pessoa, apresenta uma função utilitária: a de nos fornecer
informações rigorosas e claras acerca da nossa estrela
─ o Sol.
O texto 2,
embora não apresente qualquer dificuldade de compreensão do ponto de vista
lexical, tem uma função essencialmente estética, situando-se no universo da
ficção literária. Embora faça referência ao Sol, na figura de um Raio de Sol,
vemos que este se encontra humanizado, transformado numa personagem com
características humanas, que encontra a amizade, após algumas frustrações, numa
criança da escola, que o compreende e com quem estabelece o diálogo.
As diferenças
entre o texto literário e o não literário são ainda mais notórias quando nos
encontramos na presença de textos poéticos. Confrontem-se, por exemplo, os
textos apresentados a seguir, na sugestão de trabalho, especialmente os três
textos em que se faz referência à árvore.
Em que consiste
então a
linguagem
literária?
De uma maneira
simplificada (e aproveitando o que nos é dito em diferentes
textos teóricos)[4], podemos
dizer que a linguagem literária constitui um universo da expressão humana com
características muito particulares, um universo que pode espelhar um mundo que
oscila entre o real e o fictício, entre um mundo à escala humana e um mundo
fantástico, mundo esse que, mesmo quando se procura uma aproximação, nunca é
rigorosamente igual ao real, muito embora possa apresentar muitas semelhanças
com ele
─ a
verosimilhança.
A linguagem
literária constitui um universo que abrange diversos géneros, reflectindo quer o
mundo subjectivo, o mundo interior, psicológico do Homem
─ plasmado
geralmente através do texto poético
─, quer o
mundo objectivo, revelado nas suas múltiplas relações com o Homem
─ plasmado quer através dos géneros narrativos, quer dos
dramáticos.
Desempenha a
linguagem literária
─ ou pode desempenhar
─
simultaneamente diversas funções, de
entre as quais destacamos a estética, a lúdica ou recreativa e a educativa ou
formativa.
E quais as
características intrínsecas da linguagem literária? Em que é que se distingue da
linguagem não literária?
De
uma maneira bastante sintética e aproveitando o que nos dizem diferentes
autores, muito especialmente a exposição teórica feita por Carlos
Reis (de quem
transcrevemos na nota anterior parte de um texto, cuja leitura atenta desde já
recomendamos), poderemos analisar a linguagem literária a dois níveis: no
primeiro, mais superficial, as suas características prendem-se com as funções
desempenhadas; a um nível mais profundo, a análise tem essencialmente a ver com
o conceito de literariedade.
Num
primeiro nível de abordagem, podemos dizer que a linguagem
literária é:
·uma linguagem verbal dotada de uma certa
intencionalidade estética e, como tal, uma das muitas formas assumidas pela
Arte;
·uma linguagem capaz de criar um universo fictício,
um universo onde poderá mesmo reinar o impossível, ainda que, na maioria dos
casos, os factos apresentados obedeçam à lei da
verosimilhança;
· uma
linguagem cuja prática obedece a fins não utilitários.
Num
nível mais profundo, a essência da linguagem
literária
identifica-se com a noção de
literariedade.
O
que deverá entender-se por literariedade?
Dizemos
que num dado texto existe literariedade, isto é, uma dimensão estético-literária,
quando apresenta vocábulos ou expressões que se caracterizam pela
polissemia e pela
subjectividade.
Um
texto literário caracteriza-se pela sua polissemia, é
plurissignificativo, e, como tal, susceptível de mais do que uma leitura ou
interpretações diferentes, donde resulta uma segunda característica
─ a sua ambiguidade.
Por
outro lado, o texto
literário
apresenta um outro factor de literariedade: a subjectividade. Através
dele, e sobretudo no texto poético, no universo da lírica, é possível o sujeito
do discurso projectar no texto as suas emoções, os seus valores afectivos e
ideológicos.
Outra
característica do texto literário, além do valor conotativo assumido
pelos vocábulos, é o aproveitamento da dimensão material do próprio signo
linguístico, isto é, para além do próprio significado, o significante é
aproveitado enquanto material fónico, enquanto material sonoro, para, através
de certas sonoridades, como por exemplo os casos das aliterações, ou o caso da
utilização de sons nasais ou orais e também das rimas, no caso particular da
poesia, conseguir assim uma maior capacidade comunicativa pela transmissão de
certas impressões sonoras, que vêm reforçar o significado das palavras.
Como síntese de
todas as características do texto literário, consulte-se o quadro da figura 54,
que apresenta, lado a lado, o texto literário e o texto não literário.
Leia-se também o texto de Carlos Reis, transcrito na
nota nº 4, e procure-se
elaborar a sugestão de trabalho, onde se encontram diversos textos literários e
não literários.
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TEXTO
LITERÁRIO
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TEXTO NÃO
LITERÁRIO
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·
intencionalidade estética
· presença de
um universo fictício
· subjectivo e plurissignificativo (polissémico)
· vocabulário
conotativo
· grande
recurso aos processos retórico-estilísticos: figuras de estilo e
aproveitamento do aspecto físico do signo linguístico
·
frequentes desvios relativamente à linguagem corrente: anástrofes, por exemplo.
|
·
intencionalidade utilitária
· voltado
para o mundo real
· objectivo e
unissignificativo
· vocabulário
denotativo
· grande
pobreza de recursos retórico-estilísticos
· ausência de
desvios relativamente à norma padrão
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Figura
54: Quadro com a distinção
entre o texto literário e o texto não literário. |
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Sugestão
de trabalho 15
É-lhe
apresentada uma sequência de textos literários e não literários. Leia os textos
de cada uma das sequências e responda às questões formuladas.
Sequência
1:
A:
(...)
O carvalho comum é uma planta
de longa vida; tem por isso o nome de perene. Passa, porém, por um período de
repouso hibernal, porque perde as folhas com a aproximação do Inverno: é uma
árvore de folhas caducas; com o regresso da Primavera aparecem novas folhas no
alto dos ramos. (...)
Quando atinge quarenta anos,
começa a dar flor e depois continua todos os anos. Tem numerosas flores
masculinas bem como femininas, mas todas bastante pequenas e de cor esverdeada,
insignificantes, de forma que passam muitas vezes despercebidas. Cada uma das
flores femininas pode dar origem a uma glande. (...) Mas depois de uma
existência muito longa, a árvore, que constituiu o seu poderoso aparelho
vegetativo, que resistiu aos seus inimigos e durante anos seguidos floresceu,
frutificou e deu sementes, deixa de crescer e apenas consegue escassas
frutificações de glandes: entra no período de velhice e aproxima-se da morte.
As
suas raízes não podem crescer indefinidamente num espaço restrito e torna-se
insuficiente para alimentar uma copa tão pujante; a ramaria profusa não permite
expor directamente ao sol as folhas, que se tornaram numerosas; o tronco, por
mais forte que seja, não pode suportar cargas cada vez maiores. A velha árvore
fica então em perigo: pior alimentada, adoece e é alvo do ataque de fungos
parasitas que lhe perfuram o tronco, transformando a madeira numa massa
deslenhificada de celulose sem resistência, esponjosa e mole, e no primeiro dia
de tempestade o vento derruba o gigante da floresta, vencido pelos anos.
In:
O mundo das plantas, Verbo Juvenil.
B:
Ai a fome duma árvore, na cela!
(Verde rapariga de verdes tranças)
Quando eu partir, hei-de voar para ela
no voo das aves e das crianças.
E pendurar-me nela como os frutos
sentindo bicadas na mão!
E bailar-me nela como as folhas
até beijar-lhe o chão...
LUÍS DA VEIGA
LEITÃO,
Sonhar a
Terra Livre e Insubmissa...
C:
A árvore ainda, para terminar;
ergue-se no quintal da casa, como um templo, como um prédio de cimento armado;
cresce; os ramos desenvolvem-se para cima, para os lados; depois de
grandes, o peso tomba-os um pouco, lentamente, para baixo; floresce; nascem as
folhas brilhantes e sedosas, frágeis, puras, informes, como um raio de prata;
criam nervuras que endurecem, tornam-se rudes e pesadas; dão frutos, sementes,
sumos, cores, sabores, cheiros, saciedade; as flores sonham, adormecem, ficam
velhas e instáveis; tombam; e movem-se; e morrem; caem as folhas; fica a árvore;
permanece; anos e anos e estações e séculos; dá mais folhas, flores e
frutos, sementes, fecundidade; repete-se; e no tronco aparecem fundas rugas, em
que se ocultam os deuses, feiticeiros, visionários, profetas e a eternidade;
tira-se a seiva; resina; tira-se o casco, a saudade; fica a árvore; cortam
flores; enfeitam jarras, usam-nas com velha arte; colhem-se os frutos e, enfim,
apodrece a velha árvore; o tronco fende; as folhas caem; ficam os ramos no ar;
cortam-se os ramos despidos, o vento arranca as raízes e é então que tomba a
árvore.
ALMEIDA FARIA, A Paixão.
1 - Uma
palavra poderá constituir o tema comum aos três textos. Qual?
2 -
Identifique os textos literários e os não literários.
3 -
Centre a sua atenção no texto B:
3.1 - Situe espacialmente o sujeito poético;
3.2 - Identifique as funções da linguagem
predominantes no texto;
3.3 - Identifique a «verde rapariga de verdes
tranças».
3.3.1 - Identifique a figura de estilo que lhe está
subjacente.
4 -
Ponha em destaque o valor conotativo dos vocábulos «voar», «voo», «aves» e
«crianças».
5 -
Explique o sentido dos versos da segunda estrofe.
6 -
Ponha em destaque os recursos a nível fónico.
7 -
Efectue o levantamento dos recursos estilísticos presentes no texto C.
Sequência
2:
D:
«Douro ─
Grande rio de Espanha (em esp. Duero) e de
Portugal: o terceiro da Península Ibérica pelo comprimento (927 km) e o segundo
pela área da bacia hidrográfica (98 370 km2, dos quais cerca de 18 550 em
Portugal) que, conquanto pouco desenvolvida em território português, se alarga
muito em Espanha, desde os Montes Cantábricos às Cordilheiras Centrais, pelos
vastos plainos de Leão e de Castela-a-Velha (...)
A
irregularidade do regime hidrográfico do Douro, aliada ao facto de a foz, muito
variável, ser rochosa e assoreada, e portanto de custoso aproveitamento para
uma zona tão povoada como a do Porto, fez com que se criasse um porto
artificial (Leixões) na foz do Leça. Não obstante, tem-se procurado
melhorar as condições de navegabilidade do rio, porque os desastres se sucedem
com muitas perdas de vidas. O Douro, duma maneira geral, tem o seu curso
inferior muito encaixado, estreito, com grandes rápidos (o da Valeira, o da
Cachucha, etc.) e rochedos nas margens a estrangulá-lo ainda mais nas
chamadas pontas, passos ou galeiras; o perfil transversal
predomina em V agudo, o que é pouco próprio para a navegação e não é vulgar
numa fase de maturidade. (...)
Não menos grave é o regime das
cheias, e a sua solução, ou pelo menos a sua atenuação, depende das obras
hidráulicas que se fizerem do lado espanhol. Nos últimos cinquenta anos têm-se
registado numerosas cheias, quase todas elas hibernais (por pluviosidade,
degelos ou maremotos) que enormes prejuízos causaram nas culturas ribeirinhas,
no tráfego fluvial e principalmente na parte baixa da cidade do Porto. Vários
documentos antigos falam também de inundações. Em 1727 houve uma enchente
repentina que matou mais de 100 pessoas e produziu muitos estragos ...»
Texto
extraído da Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira.
E:
«É um rio louco, que abriu
caminho em fúria por entre montes gigantes e, obstinado, quis ir ver o mar. E
chegou. Cansado, mas chegou.
Em
toda a jornada lutou sempre com penhascos e xistos, com fraguedo e granito,
dando a cara a tudo o que lhe quis barrar o caminho. E os homens das suas
margens aprenderam este sentido de luta. Construíram os seus barcos e
ofereceram batalha ao rio enlouquecido e raivoso no torvelinho das suas águas
traiçoeiras.
Babado de espuma nas galerias,
onde a morte espreita e os cachopos aguçados são punhais a desventrar barcos;
manso nos poços onde os remos e as espadelas gemem numa melopeia triste, que só
os marinheiros entendem.
Vai
por uma estrada tortuosa, retorcida e causticada, passando promontórios, fragões, baixéis e areias. Nunca a natureza lutou tanto com a natureza. E é
alucinante e maravilhoso para os homens ir nas mãos da morte
─ e vencer a morte.
É um rio sinistro de cor e
trágico de loucura. Parece que leva consigo as lavas dum vulcão, tão espessas
são as suas águas vistas de longe: barrentas, com olhos verdes e laivos
amarelos, gritando nos pontos, como se quisessem atemorizar os homens que ousam
devassá-las.
Em cada pedra há uma lenda ou o
nome de um arrais que lá naufragou. Em cada fraga, uma marca por onde os barcos
se conduzem. Em cada meneio, uma paisagem, em cada paisagem, uma cor.
É
um caminho de alucinação e de sonho
─ cansa e
conforta.
Por isso os marinheiros se
apaixonam por ele como por uma mulher de mil feitiços. Dão-lhe tudo ─ o esforço titânico, o suor que é sangue e o sangue
que é vida. Oferecem-lhe a vida a sorrir e o rio agora nada lhes dá em
troca. Não é mais do que uma estrada de mendigos cegos, que não podem tomar
outro rumo.
Cegos como o rio, loucos como ele.
O Douro, porém, chegou cansado para ver o mar, mas chegou.»
ALVES
REDOL, Porto
Manso
1 ─ Identifique
o texto literário e o não literário.
2 ─ Determine
o objectivo do texto D.
3 ─ Ponha
em destaque as características atribuídas por Alves Redol ao rio, que nos
permitem classificar o texto como literário.
4 ─ Efectue
o levantamento dos principais recursos estilísticos presentes no texto E.
Sequência
3:
1
- Leia o texto a seguir transcrito:
Texto 1
A PALAVRA
«1 ─ Em linguística tradicional, a
palavra é
um elemento linguístico significativo composto de um ou vários fonemas; esta
sequência é susceptível duma transcrição escrita (ideogramática, silábica ou
alfabética) compreendida entre dois espaços em branco; ela conserva a sua
forma, quer totalmente, quer parcialmente (no caso da flexão), nos seus
diversos empregos sintagmáticos; a palavra denota um objecto (substantivo ou
nome), uma acção ou um estado (verbo), uma qualidade (adjectivo), uma relação
(preposição), etc.
Uma
tal concepção encontra diversas reservas incidindo: a) sobre a identidade
postulada entre grafismo e funcionamento semântico; b) sobre o facto de que uma
palavra possui, em geral, não um único sentido, mas vários; c) sobre o facto de
que as mesmas noções, como a qualidade ou a acção, podem ser marcadas
indiferentemente por palavras de diversas naturezas gramaticais (por exemplo,
para a qualidade, branco e brancura, para a acção, saltar
e salto.
2 ─ Em linguística estrutural, a noção de
palavra é muitas vezes evitada devido à sua falta de rigor. (...)
In:
Dictionnaire de Linguistique, Livraria Larousse, 1973, pág. 327.
2 -Leia o texto nº 10,
transcrito no final do capítulo III, página 128, do volume 1 de Gramática da
Comunicação, intitulado
AS PALAVRAS, da autoria de EUGÉNIO
DE ANDRADE
(Texto 2).
3 -Leia, em seguida, os textos
transcritos, da autoria de Almada
Negreiros:
Texto 3
VIAGENS DAS PALAVRAS
As palavras têm
moda. Quando acaba a moda para umas começa a moda para outras. As que se vão
embora voltam depois. Voltam sempre, e mudadas de cada vez. De cada vez mais
viajadas.
Depois
dizem-nos adeus e ainda voltam depois de nos terem dito adeus. Enfim! toda essa
«tournée» maravilhosa que nos põe a cabeça em água até ao dia em que já
somos nós quem dá corda às palavras para elas estarem a dançar.»
ALMADA
NEGREIROS
Texto 4
─
Releia o
texto de Almada Negreiros, História das Palavras, transcrito na página
13 deste volume.
4 -Identifique, em seguida, os textos não
literários e os literários, justificando convenientemente a sua escolha
Texto
suplementar
Leia atentamente o texto de MIA COUTO,
O rio, além da curva, transcrito
nas páginas 49 a 52 deste volume e responda
às questões formuladas.
1 -Terá certamente reparado que há duas partes distintas
no texto, embora ideologicamente interligadas:
1.1 - Identifique-as;
1.2 -Determine o que pertence a Mia Couto e o que
não lhe pertence, estabelecendo a relação entre esses dois elementos;
1.3 -Tendo em conta os critérios de literariedade,
identifique as partes não literária e literária;
1.4 -Justifique adequadamente a resposta anterior.
2 -Centrando a nossa atenção apenas na segunda parte,
efectuámos o levantamento das seguintes palavras:
abstenso; zaragatunagem; calcanhava-se, xicuembos;
hiperpótamo; bichorão; pícnico; mpfuvo; artiodactilógrafo; desengenhosos;
enfumavam; estremurchou; propérios; safaninho; insuportar; extravagou-se
À excepção de
uma, que poderá encontrar num dicionário de língua portuguesa, todas estas
palavras terão sido inventadas pelo Autor.
2.1 -Qual a palavra registada no dicionário e qual o seu
significado?
2.2 -É relativamente fácil explicar a formação e o
sentido duplo (ambíguo) que o Autor procurou dar à maioria dessas palavras. Procure
descobrir como foram formadas e qual o sentido a atribuir-lhes.
2.3 -Efectue um comentário pessoal, tendo em conta a
originalidade e o valor ideológico alcançado.
3 -Há ao longo do texto alguns recursos estilísticos
que, juntamente com o exotismo da história, conferem ao texto uma certa riqueza
expressiva. Comente os seguintes excertos:
3.1 -«as versões dos que testemunharam em imperfeito
juízo»;
3.2 -«não há fontes indignas de crédito»;
3.3 -«olhos ensonados, postos no sótão da testa»;
3.4 -«laçou o órfão nos braços»;
3.5 -«voltava a gaguejar os passos pela lama»
[1] -
Transcreve-se parte do texto de Émile Benveniste,
referente à estrutura das relações de pessoa no verbo:
«Só se pode constituir uma teoria linguística da pessoa
verbal com base nas oposições que diferenciam as pessoas; e ficará inteiramente
resumida na estrutura dessas oposições. Para a formularmos, podemos partir das
definições utilizadas pelos gramáticos árabes. Para eles, a primeira
pessoa é al-mutakallimu, "aquele que fala"; a segunda, al-muhãtabu,
"aquele a quem nos dirigimos"; mas a terceira é al-yã'ibu,
"aquele que está ausente". Nestas denominações encontra-se implicada uma noção justa das relações entre as pessoas; justa, sobretudo
porque revela a disparidade entre a 3ª pessoa e as duas primeiras. Ao contrário
daquilo que a nossa terminologia levaria a supor, não são homogéneas. É o que é
preciso esclarecer em primeiro lugar.
Nas duas primeiras pessoas, há simultaneamente uma pessoa
implicada e um discurso sobre essa pessoa. "Eu" designa aquele que
fala e implica ao mesmo tempo um enunciado à conta do "eu": dizendo
"eu", eu não posso não falar de mim. Na 2ª pessoa, "tu" é
necessariamente designado por "eu" e não pode ser pensado fora de uma
situação colocada a partir de "eu"; e, ao mesmo tempo, "eu"
enuncia algo como predicado de "tu". Mas, quanto à 3ª pessoa, um
predicado é enunciado, somente fora do "eu-tu"; esta forma é
assim excluída da relação específica do "eu" e "tu". A
partir daqui, a legitimidade desta forma como "pessoa" encontra-se posta em questão.
Estamos, neste momento, no centro do problema. A forma dita
de 3ª pessoa comporta uma indicação de enunciado sobre alguém ou alguma coisa,
mas não se refere a uma "pessoa" específica. Falta aqui o elemento
variável e propriamente "pessoal" destas denominações. É mesmo o
"ausente" dos gramáticos árabes. Apresenta apenas o invariante
inerente a toda a forma de uma conjugação. Devemos formular nitidamente a
consequência: a "3ª pessoa" não é uma "pessoa"; é até a
forma verbal que tem por função exprimir a não-pessoa (...)
Com efeito, uma característica das pessoas "eu" e
"tu" é a sua unicidade específica: o "eu" que
enuncia, o "tu" ao qual o "eu" se dirige são sempre únicos.
Mas "ele" pode ser uma infinidade de sujeitos
─ ou nenhum. É por isso que o "je est un autre"
de Rimbaud fornece a expressão típica daquilo que é propriamente a
"alienação" mental, onde o eu é despossuído da sua identidade
constitutiva.
Uma segunda característica de "eu" e "tu" é serem invertíveis: aquele que
"eu" defino por "tu" pensa e pode inverter-se em "eu", e "eu (eu mesmo) torna-se
um "tu". Nenhuma relação semelhante é possível entre uma destas duas pessoas e
"ele", visto que "ele" em si mesmo não designa especificamente nada nem ninguém.
Enfim, devemos tomar plenamente consciência desta particularidade da
"terceira pessoa" ser a única pela qual uma coisa é predicada verbalmente.
Não devemos, pois, representar a "3ª pessoa" como uma pessoa apta a
despersonalizar-se. Não há aférese da pessoa, mas exactamente a não pessoa,
possuindo como marca a ausência daquilo que qualifica especificamente o "eu" e o
"tu". Porque não implica nenhuma pessoa, pode ter qualquer sujeito ou não ter
nenhum, e esse sujeito, expresso ou não, nunca é assumido como "pessoa". Esse
sujeito apenas acrescenta como aposto uma precisão considerada necessária para a
compreensão do conteúdo, não para a determinação da forma. (...)
Tudo o que fica fora da pessoa estrita, isto é, fora do
"eu-tu", recebe como predicado uma forma verbal da "3ª
pessoa" e não pode receber nenhuma outra.
Esta oposição muito particular da 3ª pessoa explica alguns
dos seus usos particulares no domínio da "fala". Podemos ligá-la
a duas expressões de valor oposto. Ele (ou ela) pode empregar-se como forma de alocução junto de alguém que está presente quando queremos
suprimi-lo da esfera pessoal do "tu" ("vós"). Por um
lado, como reverência: é a forma de delicadeza (utilizada em italiano, em
alemão ou nas formas de "majestade") que eleva o interlocutor acima
da condição de pessoa e da relação de homem a homem. Por outro lado, como
testemunho de desprezo, para rebaixar aquele que nem sequer merece que se lhe
dirijam "pessoalmente". Da sua função de forma não-pessoal, a
"3ª pessoa" fica apta não só a ser uma forma de respeito que faz de
um ser muito mais do que uma pessoa, mas também uma forma de ultraje que pode
aniquilá-lo enquanto pessoa.
Compreendemos neste momento em que consiste a oposição entre
as duas primeiras pessoas do verbo e a terceira. Opõem-se como membros de
uma correlação, que é a correlação de personalidade: "eu-tu"
possui a marca de pessoa; "ele" está privado dela. A "3ª
pessoa" tem como característica e função constantes representar, sob a
relação da própria forma, um invariante não-pessoal e nada mais do que
isso.
Mas se "eu" e "tu" são ambos caracterizados pela marca de pessoa,
facilmente se vê que se opõem, por sua vez, um ao outro, no seio da categoria
que constituem, por um traço cuja natureza linguística tem de ser definida.
A definição da 2ª pessoa como sendo a pessoa à qual a
primeira se dirige convém sem dúvida ao seu uso mais vulgar. Mas vulgar não
quer dizer único e constante. Podemos utilizar a 2ª pessoa fora da alocução e
fazê-la entrar numa variante de "impessoal". Por exemplo,
"vous" funciona em francês como anafórico de "on" (ex.:
"on ne peut se promener sans que quelqu'un vous aborde"). Em
muitas línguas, tu (vós) utiliza-se como substituto de on (...)
É preciso e é suficiente representar uma pessoa diferente de "eu" para
que se lhe aponha o índice "tu". Assim, toda a pessoa que se representa é da
forma "tu", muito particularmente
─ mas não necessariamente
─ a pessoa interpelada. O "tu" ("vós") pode, pois,
definir-se: "a pessoa não-eu". Em que base se estabelece?
É própria do par eu/tu uma correlação especial a que chamaremos, à falta de
melhor, correlação de subjectividade. O que diferencia "eu" de
"tu" é, em primeiro lugar, o facto de ser, no caso do "eu",
interior ao enunciado e exterior ao "tu", mas exterior de um modo que
não suprime a realidade humana do diálogo; (...) além disso, "eu" é
sempre transcendente em relação ao "tu". Quando saio de
"mim" para estabelecer uma relação viva com um ser, encontro, ou
coloco necessariamente um "tu", que é, além de mim, a única
"pessoa" imaginável. Estas qualidades de interioridade e de
transcendência são próprias do "eu" e invertem-se no
"tu". Poderemos, pois, definir o "tu" como a pessoa não-subjectiva,
perante a pessoa subjectiva que "eu" representa; e estas duas
"pessoas" opor-se-ão conjuntamente à forma de "não-pessoa"
(="ele").
Parece que todas as relações estabelecidas entre as três formas do
singular deveriam permanecer semelhantes se as transpuséssemos para o plural.
Contudo sabemos que, nos pronomes pessoais, a passagem do singular ao plural não
implica uma simples pluralização. Além disso, existe numa certa quantidade de
línguas uma diferenciação da forma verbal da 1ª pessoa do plural sob dois
aspectos distintos (inclusivo e exclusivo) que denuncia uma complexidade
particular.
Como no singular, o problema central é também o da primeira
pessoa. O simples facto de palavras diferentes serem geralmente utilizadas para
"eu" e "nós" (e também para "tu" e
"vós") chega para excluir os pronomes dos processos vulgares de
formação do plural (...). Na maior parte das línguas, o plural pronominal não
coincide com o plural nominal, pelo menos tal como é representado vulgarmente.
Com efeito, é evidente que a unicidade e a subjectividade inerentes ao
"eu" contradizem a possibilidade de uma pluralização. Se não pode
haver vários "eu" concebidos pelo próprio "eu", é que
"nós" é, não uma multiplicação de objectos idênticos, mas uma junção
entre o "eu" e o "não-eu", seja qual for o conteúdo
desse "não-eu". Esta junção forma uma totalidade nova e de um
tipo muito particular, cujos componentes não são equivalentes: em
"nós", é sempre "eu" que predomina visto que não há
"nós" senão a partir do "eu", e este "eu"
subordina a si o elemento "não-eu" pela sua qualidade
transcendente. A presença do "eu" é constituída do "nós".
(...)
De um modo geral, a pessoa verbal no plural exprime uma
pessoa amplificada e difusa. O "nós" anexa ao "eu" uma
globalidade indistinta de outras pessoas. Na passagem do "tu" ao
"vós", quer se trate do "vós" colectivo ou do
"vós" de delicadeza, verifica-se uma generalização de
"tu", quer metafórica, quer real, e em relação à qual, nas línguas de
cultura, sobretudo ocidentais, o "tu" toma muitas vezes o valor de
alocução estritamente pessoal, logo familiar. Quanto à não-pessoa (3ª
pessoa), a pluralização verbal, quando não é o predicado gramaticalmente
regular de um sujeito plural, desempenha a mesma função que nas formas
"pessoais": exprime a generalidade indecisa do on (francês) (tipo
dicunt, they say). É a própria não-pessoa que, extensa e ilimitada pela
sua expressão, exprime o conjunto dos seres não-pessoais. No verbo como
no pronome pessoal, o plural é factor de ilimitação, não de multiplicação.
Assim, as expressões da pessoa verbal são, no seu conjunto, agrupadas em
duas correlações constantes:
1.- Correlação de personalidade que opõe as
pessoas eu/tu à não-pessoa ele.
2.- Correlação de subjectividade, interior à
precedente e opondo eu a tu.
A distinção vulgar entre singular e plural deve ser, se não
substituída, pelo menos interpretada segundo a ordem da pessoa, como uma
distinção entre pessoa estrita (=singular") e pessoa ampla
(="plural"). Só a "terceira pessoa", sendo não-pessoa,
admite um verdadeiro plural.»
ÉMILE BENVENISTE, O Homem na Linguagem,
Lisboa, Arcádia, 1976, pp. 24-32.
[2] - Entende-se por acto elocutório todo o tipo de enunciado
realizado durante o acto de fala entre o sujeito emissor e o sujeito receptor.
Quando se enuncia uma frase qualquer, isto é, quando realizamos actos de
fala, realizamos três actos distintos: 1º
─ Um acto locutório, na medida em que se articulam e combinam sons
e na medida, também, em que se evocam e realizam sintacticamente as noções
representadas pelas palavras; 2º
─ Um acto elocutório, na medida em que a enunciação da frase
constitui em si própria um certo acto, realizado na própria fala; 3º
─ Um acto perlocutório, na medida em que a
enunciação serve fins mais longínquos. (Veja-se OSWALD DUCROT e TZVETAN
TODOROV, Dicionário das Ciências da Linguagem, 2ª edição, Lisboa,
Publicações D. Quixote, 1974, pp. 401-403.
[3] - Designam-se como verbos performativos aqueles que
descrevem uma certa acção do sujeito falante, tais como jurar, prometer,
nomear, etc., verbos que se encontram em enunciados performativos. Segundo J.
L. Austin, há dois tipos de enunciados opostos: os performativos e
os verificativos. Segundo ele, «chama-se a uma expressão
verificativa se só tende a descrever um acontecimento. É chamada performativa
se: 1) - descreve uma certa acção do seu emissor; e se 2) - a sua enunciação
é o mesmo que cumprir essa acção; diremos, portanto, que uma frase que comece
por "Prometo-te que" é performativa, porque, usando-a, realiza-se o acto de prometer. Não somente se diz prometer, mas, fazendo-o, promete-se. Ainda mais, deveria considerar-se falsa uma
representação semântica dessas frases que omitisse a indicação deste facto, e
que as caracterizasse como simples descrições de acções (do mesmo modo que
"Passeio"). Os performativos têm, portanto, esta propriedade de o seu
sentido intrínseco não se perceber independentemente de uma certa acção que
permitem realizar.
Mas, uma vez que esta propriedade foi descoberta no caso
particular
─ e
particularmente espectacular
─ dos
performativos, podemos aperceber de que pertence também as expressões não
performativas. É o caso das formas imperativas e interrogativas. Para descrever
o sentido de uma expressão interrogativa é necessário precisar que aquele que a
emprega não somente exprime a sua incerteza e o seu desejo de saber mas
sobretudo que realiza um acto particular, o de interrogar. Ou ainda, dizendo
"Devias fazer isto", exprimo não somente a minha opinião sobre o que
é melhor para o meu interlocutor, mas realizo o acto de aconselhar». (Veja-se
O. DUCROT e T. TODOROV, Dicionário das Ciências da Linguagem, 2ª ed.,
Lisboa, Publicações D. Quixote, 1974, p. 401.
[4] - Transcreve-se parte de um texto da autoria de Carlos Reis
acerca do CONCEITO DE TEXTO LITERÁRIO (destacámos certos elementos para
facilidade de estudo):
«Linguagem e discurso literário: Toda a leitura do
texto literário que se pretenda minimamente exigente deve partir dum
conhecimento rigoroso do fenómeno sobre que se debruça. Deste modo, antecedendo
qualquer orientação de tipo prático e metodológico, é necessário procurar
responder a esta questão: em que consiste a linguagem literária?
Aparentemente a resposta não levanta dificuldades: a
linguagem literária é, antes de mais, uma linguagem verbal dotada de
certa intencionalidade estética. Esta noção pode, entretanto, completar-se
com duas outras, igualmente numa perspectiva genérica: a de que a linguagem
literária é capaz de criar um universo fictício (por exemplo, a história
contada num romance) e a de que a sua prática não obedece, em primeira
instância, a intuitos utilitários, como acontece, por exemplo, com o
discurso de imprensa ou com o discurso jurídico.
Isto não significa que a linguagem literária aponte para um
divórcio em relação ao mundo que a rodeia: muitas obras de ficção (sobretudo
narrativa e dramática) revestem-se de certo grau de verosimilhança
─ mas não de verdade
─ que lhes permite documentarem aspectos particulares da
vida histórica, social, económica, política, etc., das comunidades em que
surgiram.
Se quisermos, entretanto, passar a um nível mais profundo,
poderemos dizer que a essência da linguagem literária se identifica com aquilo
que modernamente se chama literariedade, conceito que só será
devidamente entendido se atentarmos num conjunto não exaustivo de factores
constitutivos; por outras palavras: a literariedade não é uma característica
monolítica ou indivisível, dependendo a sua instauração da vigência duma série
de elementos específicos.
Assim, pode dizer-se que se instaura literariedade
(logo, dimensão estético-literária) sempre que vocábulos ou expressões
dum texto são caracterizados pela plurissignificação ou ambiguidade.
Distinguindo-se do cunho literal dos textos não literários, o sentido dos
literários não é unívoco, isto é, não se esgota com uma única significação;
(...)
Implicando uma utilização muito peculiar da linguagem, a
ambiguidade aponta para um outro factor de literariedade: a subjectividade,
ou seja, a projecção no texto das emoções, valores afectivos e ideológicos
próprios do sujeito do discurso. Essa projecção concretiza-se por meio
de registos do discurso (ou da fala); assim, consideram-se registos do
discurso todas as práticas particulares da língua que, servindo-se de instrumentos adequados (conotações, figuras de retórica, valorações, etc.)
permitem deduzir o perfil subjectivo do sujeito. Deste modo, num texto de Eça
de Queirós, é possível encontrar uma realização de discurso valorativo (ou
avaliativo) em «mostrava um pé pequeno, bonito», já que o segundo
adjectivo («bonito») constitui, ao contrário do primeiro, uma impressão subjectiva
do narrador que conta a história. Se ao valorativo juntarmos o discurso
conotativo, o abstracto e o figurado, teremos as mais expressivas modalidades
de projecção subjectiva, cuja concretização, em associação com outras
características genéricas e específicas da linguagem literária, contribui para
a constituição da literariedade.
Finalmente, podemos considerar que outra das características
essenciais do fenómeno literário é o aproveitamento da dimensão material do signo.
Como se sabe, na linguagem não literária, a relação entre os sons
(significante) e os sentidos (significado) é, em princípio, desprovida de
motivação; ora a linguagem literária implica muitas vezes que os vocábulos
prolonguem na sua dimensão material (som ou configuração gráfica) os sentidos
que expressam. É assim que, no poema «Relâmpago» de Miguel Torga, o
primeiro verso («Rasguei-me como um raio rasga o céu») consuma,
pela aliteração dos «rr» e pela sua afinidade com o que designa, a utilização
do significante (neste caso a sonoridade) como factor de valorização estético-literária.
Todas estas características (que não esgotam, como é óbvio,
a problemática da literariedade) encontram-se definidas em termos
acentuadamente abstractos. Isto significa que só em contextos particulares é
possível aferir, como nos breves exemplos dados terá sido sugerido, o grau de
expressividade e a eficácia própria dessas características. Por outras
palavras: o fenómeno literário é susceptível de ser encarado em termos de
discurso, na medida em que cada escritor confere uma feição particular aos
elementos (ou só a alguns deles) aqui referidos. Este facto leva a concluir que
a literatura constitui um domínio altamente diversificado, em função de dois
grandes condicionamentos: a dinâmica pessoal do escritor que pode levá-lo, por exemplo, para o campo da poesia lírica e não para o da narrativa ou do
drama; a evolução literária que, por força de imposições de ordem histórica e
cultural, permitiu configurar sucessivos períodos literários. (...)»
CARLOS REIS, Português, Colecção de textos pré-universitários,
nº 7, s/d, pp. 7-8.
Acerca do texto literário e não literário, veja-se também:
MÁRIO CARMO e M. CARLOS DIAS, Introdução ao texto
literário. Noções de linguística e literariedade, 1ª ed., Lisboa, Didáctica
Editora, 1976, pp. 59-67.
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