NOMES PARA ÁGUA-RUÇA
Dissemos algumas linhas atrás que as tulhas tinham o fundo ligeiramente
inclinado e possuíam uma saída para a água-ruça, que as azeitonas
libertam.
Por
água-ruça, termo que é mais do domínio técnico do que da linguagem
corrente, pretende-se indicar aquele líquido escuro e ácido que a
azeitona liberta, quando conservada em tulhas, cestos, ou de outro modo
qualquer. Esta mesma designação é usada para indicar o líquido que se
separa do azeite, quando em decantação nas tarefas, e que é praticamente
o mesmo, embora misturado com a água das caldas. |
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Figura 16: Monte de azeitona com uma tabuleta artesanal de cana
para identificação do proprietário. |
O termo foi registado em várias regiões, ao lado de outros que
normalmente o substituem. O povo conhece-o, mas raramente o emprega. A
prova desta afirmação podemos encontrá-la nas respostas por nós
recolhidas em conversas com vários informadores e de que reproduzimos
dois exemplos:
«A almofeira
é a água-ruça (...). Assim nós aqui é almofeira sempre, mesmo aqui no
lagar. O que separa do azeite pra fora é almofeira.» – Braga, P. 29.
«O líquido
que escorre da azeitona durante o tempo em que está armazenada é
almofeira ou água-ruça.» – Leiria, P. 363.
É interessante registar o facto de que o próprio povo tem
a noção de que água-ruça
não pertence à esfera do seu campo linguístico, sendo apenas dos livros.
É o que o exemplo seguinte nos permite concluir:
«No princípio sai azeite
simples. Òdepois já sai junto com água, que chamam-la almofeira.
Outros chamam-l'água-ruça, assim como vem nos libros (...).» – Coimbra, P.
258.
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Figura 17: O
canto da sala do engenho serve frequentemente de manjedoura
(Cadeado, Stª Marinha do Zêzere, Baião, dist. Porto). |
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Registámos o emprego de água-ruça nos distritos de Aveiro
(P. 116), Braga (P. 28, 29, 31, 32), Bragança (P. 99), Coimbra (P. 236,
238, 245b, 262), Leiria (P. 363, 348) e Vila Real (P. 75, 80).
Antes de entrarmos no estudo pormenorizado de cada um dos
termos com a significação de
água-ruça, façamos a sua enumeração, indicando o número
correspondente à frequência de casos em que surgiram:
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água chilra – 2
água churra – 12
água zurra – 1
albufeira – 6
almofeira – 44
alpechim – 12
alpiche – 3
amufeira – 1
amurca – 1
azeabra – 1
azenagre – 1
azenegre – 1
azenhevre – 1
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azeabre – 1
azebre – 1
aziabre – 1
aziaga – 1
aziagra – 1
aziagre – 1
azinagre – 3
azinhaga – 2
reima – 3
salmoeira – 1
sangra – 7
zorra – 3
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No distrito de Vila Real, concelho de Valpaços (P. 80,
81), surge-nos água-chilra,
ao lado de água-churra. Esta última palavra está mais difundida
que a primeira. Assim, encontramo-la nos distritos de Aveiro (P. 116,
120, 164, 165, 166, 167), Bragança (P. 100), Porto (P. 52, 53, 57) e
Vila Real (P. 73, 78). No distrito do Porto (P. 51), foi registado ainda
o termo água zurra. Destes, apenas o primeiro se encontra no
dicionário de António de Morais Silva, 10ª ed., vol. I, pág. 498.
Albufeira
e almofeira (também
grafado almufeira) são palavras que teremos de analisar em comum,
pois que a segunda não é mais do que o resultado de um fenómeno fonético
operado na primeira. É interessante notar o facto de que, sendo o
primeiro o que está mais próximo do seu étimo árabe – al-buhajra
–, nem por isso é o mais documentado no nosso país. Efectivamente,
albufeira surge-nos muito raramente (foi registado apenas em seis
povoações), ao passo que almofeira se encontra praticamente
difundido por uma vasta área (44 povoações).
Arnald Steiger(6),
que se ocupou do estudo dos arabismos no ibero-românico e no siciliano,
aponta como resultado do árabe al-buhajra apenas o topónimo
Albufeira, relativamente a Portugal, que ocupa a área de Lisboa,
Estremadura e Algarve. A verdade é que do termo árabe subsistiu no nosso
território não só o topónimo, como também um nome comum para designar a
água que escorre das azeitonas antes de se fazer o azeite, enquanto
entulhadas, e se separa também do óleo durante a decantação. O termo
árabe deixou, portanto, um vestígio bem mais vasto no nosso território,
especialmente na sua derivada almofeira, que ocupa uma área que
se estende até ao distrito de Aveiro.
A região onde os vocábulos
albufeira e almofeira estão
mais representados é a de Coimbra, como se pode ver no mapa nº 3. Quer
um, quer o outro termo, apresentam uma antiquíssima história
relativamente a esta zona.
Albufeira
surge-nos num Regimento de
Lagar de Azeite, passado em Coimbra no ano de 1792, segundo se deduz
dos apagados vestígios da data. Nele se diz, pág. 6, parágrafo 22:
«Aos ditos
mestres pertence terem as águas da albofeira em canouces grandes, e bem
vedados, em tal maneira, que não possam deles sair a bom recado, por ser
coisa muito odiosa, e perigosa para o povo, e a não soltarão, senão uma
hora dada da noite, sob pena de mil reis, metade para esta Cidade, e a
outra para quem os acusar, e até à dita hora a soltarão, e não daí por
diante, e daí a duas horas a taparão, sob a dita pena.»
Almofeira
surge-nos em 1784, na já citada obra de Dalla Bella(7):
«... O azeite da segunda
espremedura se une na caldeira com o da primeira, juntamente com a água
quente, e com a almofeira; e se deixa ali escorrer por espaço de
quase 12 horas (...).»
Segundo o mesmo Autor, na obra citada, existia o costume de se embeber a
lenha com almofeira para evitar o fumo.
No glossário apresentado por Augusto César Pires de Lima(8),
a almofeira é apresentada como servindo «para destruir ervas e
insectos nocivos e como remédio em algumas doenças dos homens, das
ovelhas e dos bois.»
Além dos sentidos apontados para almofeira, surge-nos em
Famalicão, P. 143, e Paradela, P. 254, com acepções diferentes do
normal: «restos da azeitona
que ficam nas seiras depois de prensadas» (I.L.B., 1961, P. 254) e «massa
resultante da moagem da azeitona» (I.L.B., 1942, P. 143).
Da análise dos dois vocábulos em questão – albufeira e
almofeira –, tudo leva a crer que o primeiro apresenta acentuada
tendência para desaparecer, pois o número de casos em que aparece, por
vezes ao lado de almofeira, é bastante pequeno. Em contrapartida, o
segundo mantém-se bastante vivo, ocupando uma área vastíssima. Se tal
fenómeno está efectivamente a processar-se, a sua origem remonta ao
século XVIII, como as duas transcrições atrás apresentadas,
relativamente à zona de Coimbra, deixam supor. Note-se que Dalla
Bella(9),
que ao descrever a manufactura do azeite em Portugal toma como exemplo o
que se passa nesta região, não hesita em empregar o termo almofeira,
em detrimento de albufeira.
Tavares da Silva(10)
apresenta a variante amufeira, como pertencente à província da
Beira Baixa.
Os vocábulos que iremos agora analisar são
alpechim, alperche,
alperchim e alpiche. De todos, é sem dúvida o primeiro o mais
representado em Portugal (distrito de Bragança, P. 90, 92, 98; Coimbra,
P. 236, 237, 238, 245a, 245b, 245d; Guarda, P. 196,
197; Viseu, P. 188). Alperche e alperchim encontram-se
registados na "Revista Lusitana"(11),
vol. V, pág. 25, e o segundo ainda no glossário apresentado por
Pires de Lima, pág. 208.
Alpiche
encontra-se documentado em vários trabalhos. António Cardoso de Menezes(12)
define-o como «água de vegetação da azeitona». Álvaro Veiga, num
artigo publicado na revista "Douro-Litoral", IIIª série, 1948, pág. 67,
dá-o como pertencente à região de Carrazeda de Ansiães. Tavares da
Silva, pág. 44, indica-o como pertencente à Beira Alta, definindo-o do
seguinte modo: «água de vegetação da azeitona, carregada de albumina
e de matéria negra e amarga, resultante da acção da água das chuvas e
mesmo do orvalho e dos princípios amoniacais que contêm, sobre o óleo e
que com ele saem na espremedura.»
No mapa número 3 apenas se indica o vocábulo
alpechim, sem dúvida o que
apresenta maior vitalidade, como os inquéritos o
demonstraram.
Sobre o étimo de
alpechim, o dicionário de Augusto
Moreno(13)
diz-nos ter sido formado do árabe al mais o latim FAECINU(M). A
verdade é que o étimo é obscuro, tornando-se por isso
impossível apontá-lo com segurança. Corominas(14)
não o refuta, indicando-o como muito possível do ponto de vista
semântico. Além disso, segundo o mesmo Autor, a passagem de c a
ch não oferece dificuldades. O problema reside em explicar a
passagem de f a p que, segundo ele, só ocorre em casos
raros e incertos; e, nos poucos que são prováveis, devido a
ultra-correcção.
O vocábulo
amurca, apresentado por Tavares da Silva, pág. 49, e registado já em
alguns dicionários da língua portuguesa, tem o seu étimo na
correspondente latina AMURCA(M). Encontra-se representado no catalão e
aragonês sob a forma morca e em vários dialectos italianos.
Grupo de palavras que, à primeira vista, parecem ser da mesma família, é
o seguinte: azeabra, azenagre, azenegre, azenhevre, azeabre, azebre,
aziabre, aziaga, aziagra, azinagre e azinhaga.
Azenegre
é apresentado por Jaime Lopes Dias(15),
que o indica como sendo próprio da Beira Baixa. Azenhevre é
apresentado por Alice Pereira Branco, na sua tese, já anteriormente
citada, sobre o concelho da Covilhã. Azinagre foi registado por
Jaime Lopes Dias e por Tavares da Silva. Os restantes vocábulos foram
por nós encontrados em inquéritos directos, quer do I. L. B., quer dos
efectuados para a realização do presente trabalho.
A dificuldade apresentada
por estas formas reside essencialmente no estudo da sua etimologia. Por
outro lado, os dicionários não apresentam a maioria delas. Os únicos
vocábulos registados são azebre, com o sentido de «verdete de
cobre; aloés; (ant.) amargura; mortificação; (pop.) malícia; finura;
gaiatice» e azinhavre, com o sentido de 'água-ruça'.
À primeira vista parecem pertencer toda estas palavras à mesma família.
Uma análise mais cuidada permite-nos dividi-las em dois grupos: o
primeiro, formado por azeabra, azeabre, azebre e aziabre; o segundo,
pelas restantes formas.
Dissemos há pouco que
azebre tinha, entre outros, o sentido
de 'amargura'. As águas libertas pela azeitona caracterizam-se pelo seu
gosto bastante amargo e ácido. Há, portanto, uma certa relação
semântica, pelo que tudo nos leva a fazer crer ser azebre ('amargura') a
mesma palavra para 'água-ruça'. Assim, o primeiro grupo de palavras terá
como étimo o árabe aç-cibar, de que ficaram várias formas na
Península, como o espanhol acíbar, o catalão acèvar, o
valenciano antigo açever, o português azebre, o espanhol
zabila, etc. As evoluções sofridas por azebre terão sido:
aç-cibar > port. azebre > aziabre > aziabra > azeabre > azeabra
O segundo grupo assenta no étimo árabe
azzinjar. As formas existentes fazem
pressupor dois tipos de evolução na passagem da palavra árabe ao
português.
Segundo Steiger (obra já citada, pág. 39), «sabido
es que en las voces patrimoniales del portugués la -n- intervocálica
evoluciona a mera resonancia nasal, que en algunos casos se mantiene, y
en mucho mayor grado, sobre todo en sílaba átona, desaparece totalmente.»
Ora, da análise da evolução dos dois tipos, que veremos, nenhum dos
fenómenos apontados por Steiger parece ocorrer. Se não, vejamos.
No primeiro tipo, em que se incluirão
azinhavre, azinhevre e
azinhaga, a sequência -ni- sofreu uma evolução que é, aliás, normal
na passagem do latim ao português, palatalizando-se. Esquematicamente,
podemos apresentar a seguinte evolução:
azzinjar > *azinhare
> azinha v re > azinhevre
No segundo tipo, em que incluiremos
azinagre, azenegre, aziagra
e aziaga, a nasal desaparece, mas só depois de ter surgido em
português a forma azinagre. Portanto, a sequência -ni- perdeu
apenas o elemento semi-vocálico, donde a seguinte evolução:
azzinjar > *azinare
> azinagre
A partir da forma
azinagre foram-se formando as
restantes:
azinagre ––> azenegre
\ ––> aziagre > aziagra > aziaga
A análise do mapa nº 3, no que se refere às palavras que acabámos de
ver, faz suscitar uma pergunta para a qual não encontramos resposta:
– Se a influência árabe se
fez sentir sobre uma grande parte do território, por que motivo essas
formas só aparecem numa área tão restrita, como é esta, que abrange três
distritos (Castelo Branco, Coimbra e Guarda)?
Os termos restantes –
reima, salmoeira, sangra e zorra – pouco
oferecem para dizer.
Reima,
proveniente do grego rheuma,
através do latim, está pouco documentado. Surge-nos apenas em duas
povoações do distrito de Coimbra, P. 243, 244. Os dicionários
apresentam-no, embora nem sempre com o sentido de 'almofeira'. Também no
distrito de Coimbra, P. 300, surge-nos salmoeira, como caso único
e esporádico.
Dos dois últimos, é sangra o mais documentado. Foi
registado nos distritos de Aveiro (P. 145), Bragança (P. 85, 86),
Coimbra (P. 257), Porto (P. 54a, 54b) e Vila Real (P. 69).
Zorra
surge-nos apenas em três povoações do distrito da Guarda (P. 226, 229,
230). O seu emprego com o sentido de 'almofeira' deve ser pouco frequente. |