Um
dia de cada vez, mais velho um dia me sinto.
Lembro-me vagamente de ter vontade de ser mais
velho em anos do que era realmente. Também tinha a
ideia que sabedoria e experiência eram maiores e
melhores quanto mais velho fosse. E, de certo modo,
para mim a vida não era interessante e bem a
trocava por números maiores a representar a mesma
vida. À minha volta, todos me diziam que não tinha
razão.
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Aceitei passar a viver, acumulando lentamente a
sabedoria e a experiência. Lembro-me vagamente de
chegar a dar-me por satisfeito com esta lenta
acumulação por ver outras pessoas a elogiar este ou
aquele aspecto de coisas que eu dizia ou fazia. De
certo modo, devo ter incorporado na minha sabedoria
e também na minha experiência, os livros e os
filmes que ia vendo e, de tal modo o fazia que
passava por minha sabedoria e minha experiência o
que constava dos livros que lia ou dos filmes que
via. Lembro-me de ter como certo ter feito ou
descoberto algumas coisas que posso não ter feito e
muito menos descoberto. Dava por certo para mim
mesmo que uma boa parte da minha vida conhecida se
tinha forjado no que ouvia, lia ou via dos outros.
Hoje, duvido dessa razão e lamento o tempo que perdi
a ler os livros e a ver os filmes dos outros. Porque
não guardo memória dos livros que li nem dos filmes
que vi, nem dos meus actos passados, nem dos factos
a que assisti. Para mim, eu sou o livro que estou a
escrever e começo a pensar que, para os outros, eu
também sou o livro. O que me tem dado muitos
dissabores e complicações que perturbam a minha vida
que... não é mais que o livro que estou a escrever. |
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Por ter tomado consciência de não ter memória de
mim, em cada visita à biblioteca, procurava escrever
uma fatia da minha vida que permanecesse em
condições de ser consultada por mim em qualquer
momento. Comprei um caderno de folhas que fui
preenchendo laboriosamente. Como o tempo podia ser
pouco, tinha de ser rápido na construção da minha
vida. Esta, não a outra de que não guardara
memória. De manhã, ia para a biblioteca municipal,
perdido entre os outros velhos a ler as frescas
pelos títulos dos diários. E passava a maior parte
das tardes numa biblioteca que me diziam ser na
escola onde trabalhara a maior parte da minha vida.
Para não ser interrompido pela amizade curiosa das
pessoas, que me conheciam não me lembrava de onde,
passei a mostrar-me sempre muito ocupado e passei a
ir também à biblioteca da universidade. Bem, para
ser franco, eu não ia propriamente às bibliotecas.
Ia para as salas de leitura e procurava livros que
contassem uma história de vida de alguém que, em
cada momento, podia ser a história dos anos que me
faltavam à minha vida escrita. E copiava,
principalmente copiava, excertos de romances tendo o
cuidado de
mudar os nomes das
personagens. Em vez dos nomes dos personagens dos
romances, escrevia os nomes de pessoas de uma lista
laboriosamente escrita e confirmada pelas pessoas
que moravam na casa de que tinha chave e onde me
aparecia comida, cama e roupa lavada.
Foi
assim que eu escrevi milhares de folhas que foram
sendo ordenadas como um diário da minha vida, desde
o nascimento até agora. Por me ter sobrado algum
tempo, cheguei a substituir alguns anos da minha
vida por outros, se encontrava algum romance que
aumentasse a coerência do relato que eu ia lendo com
regularidade (era a minha vida que ali estava
guardada, que diabo!). Mas tinha sempre pouco tempo,
já que o tempo ia passando e eu tinha sempre de
acrescentar a vida lida por cada dia de vida.
Uma
mulher, de que me lembro de ver desde sempre, embora
me esqueça das pessoas todos os dias, falou-me do
meu caderno e de um outro acontecimento que lá
estaria descrito. Fui verificar e lá estava o
assunto de que ela me tinha falado. Ela estava
afinal a perguntar-me coisas sobre a minha vida!!!
Tinha andado a ler o romance da minha vida! Não me
zanguei, antes pelo contrário.
Na
altura até teve muita piada porque ela corrigia a
pontuação e até fazia comentários engraçados sobre a
forma como aparecia no meu caderno este ou aquele
acontecimento, esta ou aquela pessoa. A
confusão só começou quando ela deu a ler o caderno a
outras pessoas da
família e houve alguém que se lembrou
de dizer que aquilo era afinal o diário da minha
vida e fez notar que todos os nomes eram reais.
Alguém estava muito zangado com a forma como era
tratado nos meus cadernos.
Continua
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