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"Patrimónios" – n.º 9, Dezembro 2011, Ano XXXI, 2ª série, 240 páginas


JOSÉ FERREIRA DA CUNHA E SOUSA

O pioneiro da Museologia Industrial, em Portugal (1)

Margarida Ribeiro *

Homem culto, versado em letras e de grandes qualificações socioprofissionais e culturais, este ilustre aveirense nasceu, em Ílhavo, a 5 de Abril de 1813 e faleceu, a 19 de Novembro de 1912, em Aveiro.
   
 

Figura 1 – Retrato  de José Ferreira da Cunha e Sousa (2)

 

Conceituado memorialista, a quem se devem muitos dos contributos para a compreensão das gentes de Aveiro e da Ria; bibliófilo, e grande defensor de uma política de descentralização dos equipamentos culturais e de protecção dos valores patrimoniais, da sua acção e obra destacam-se, a Memória sobre Aveiro) no século XIX publicada na revista do Arquivo do Distrito de Aveiro, no vol. VI, de 1943; a criação do primeiro Museu Público no país – o Museu Distrital de Santarém (1876); o conceito de Exposições Feiras do / 112 / Distrito, de carácter permanente, nos Museus; uma carreira política, ao serviço da Carta Constitucional e à causa do partido cartista, o que lhe valeu o Hábito de Cristo, pelos bons serviços prestados ao país; o título honorífico de Conselheiro, adquirido como reconhecimento pela total disponibilidade que mostrou para servir a causa pública e pelas reconhecidas qualidades pessoais, engenho e carácter e o facto de ter sido presidente e um dos grandes impulsionadores da Caixa Económica de Aveiro - instituição de grande relevância, para o desenvolvimento regional.

José Ferreira da Cunha e Sousa foi, sublinhe-se, uma conceituada personalidade, defensora do Património Histórico e precursora da Museologia Industrial em Portugal que promoveu a constituição da primeira Comissão Administrativa (1876-1880)(3) para a instalação do Museu Distrital de Santarém – o de S. João de Alporão.

Filho do aveirense Manuel Ferreira Cunha e Sousa e de D. Rita Pinheiro Queirós, natural da cidade do Porto, aprendeu as primeiras letras em Aveiro, na casa do seu avô, na antiga Rua Larga, entre pontes, junto ao término dos arcos do Côjo. O pai, liberal, fora preso pelo regime absolutista, em 1828, após a revolução, pelo que consequentemente se veio a manifestar, contra a política miguelista. Exemplarmente, dedicado, ao bem público, vem a exercer na sua terra natal vários cargos, de carácter administrativo e judicial: foi escrivão do Publico Judicial e da Câmara; advogado de provisão; comissário do concelho da vila de Ílhavo; Contador; Distribuidor; Regedor da Paróquia de S. Salvador; 1.º Oficial (1840) e Secretário-Geral do Governo Civil de Aveiro (1858); várias vezes Governador Civil, em concelhos diversos como: Leiria (1868-1869), Viseu (1868 e 1870), Coimbra (1869-1870), Santarém (1871-1877), Portalegre (1877-1878), Faro (1878-1879), Aveiro4 (1890) e ainda foi juiz de direito desta comarca em regime de substituição de Jaime Magalhães Lima, por nomeação do presidente do Tribunal da Relação do Porto, em 1892.

As sucessivas nomeações para o cargo de Governador Civil reflectem a instabilidade política, em que o país estava mergulhado. Desde a primeira metade do século XIX, que se vivia um período conturbado do ponto de vista económico, político e social, a nível nacional. O descontentamento era enorme, das invasões francesas ao saque efectuado no país; à saída da Corte para o Brasil e à consequente governação britânica; e na década de 1890, ao Ultimato Inglês; às repercussões da Revolta de 31 de Janeiro de 1891 e à situação de bancarrota em que se encontrava o país, ainda, predominantemente, rural. Vivia-se, inclusive, um período de alterações institucionais e legislativas resultantes da queda do Antigo Regime e da ascensão da burguesia, nomeadamente, a cargos públicos e de consolidação do regime liberal. Esta nova classe valorizava actividades como o comércio, a indústria e as profissões liberais. A burguesia acreditava em valores como o trabalho, a ordem, a poupança, a instrução, a educação, o ócio e a filantropia como pilares para o almejado crescimento e progresso social e económico. Em Portugal, a Revolução liberal de 1820 e a Revolução de 1838 fizeram emergir e proliferar, a partir da década de 50 de oitocentos, o associativismo que se expandiu na sequência do fracasso / 113 / da Revolta de 31 de Janeiro de 1891, com fins formativos e de entretenimento (5), surgiram Teatros, Óperas, Clubes, Cafés e Museus privados. O direito à associação vinha já consagrado na Constituição de 1838, no seu art.º. 14 (6). A nível internacional vivenciava-se a 2.ª Revolução Científico-industrial e imperavam os movimentos liberais e laicistas, de carácter burguês, nacionalistas e independentistas, inspirados na Revolução Americana (1775-1783) e na Francesa (1789), e nos ideais iluministas que as alicerçavam, que pretendiam unir o povo sob a mesma identidade cultural, através do sentimento de pertença a um país e a uma cultura. Foi o período do surgimento de várias associações de defesa dos direitos de classe; da consolidação de conceitos como nação e cultura, requisitos exigíveis para a concretização do conceito de liberdade e para a construção da Democracia (7).

A partir de 1851, o movimento da Regeneração fomenta o bem-estar individual e o desenvolvimento material do país, aproveitando a estabilidade e a tolerância política que reinava, estimulou os transportes e a indústria, no sentido da busca da felicidade tecnológica prometida pela Revolução Científico-industrial e na obrigação de contribuírem para o desenvolvimento da comunidade local. Assim sendo, Santarém acolhe a linha de caminho de ferro que une Carregado a Santarém (1861); a primeira ponte sobre o Tejo (1876-1881) e uma empresa de viação (1882). O ócio era visto, pela nova classe em ascensão, como um direito e investir nas artes e nas letras um prestígio, assim como, ser visto em ambiência associativa  (8), ou em Salões de Festas, Passeios Públicos, Clubes, Cafés e Teatros, uma oportunidade de ostentarem a riqueza e o sucesso do seu modo de vida. Era na esfera pública que afirmavam os seus valores e as suas ideias.

Numa reacção ao constitucionalismo, progrediam as ideias republicanas, de Henrique Felix Nogueira, Lopes de Mendonça e de Sousa Brandão que viriam a influenciar a Geração de 70, como Antero de Quental e José Fontana e os precursores do Partido Republicano Português como, Sebastião de Magalhães Lima, António de Oliveira Marreca e Teófilo Braga. Esta geração ao progresso material acrescentou a procura da identidade cultural comum. Preocupava-se com princípios como a liberdade, a ordem, a igualdade e a fraternidade; o fomento das artes; da música; do teatro e das letras, enquanto fonte de educação e de desenvolvimento de um povo, que segundo ela, permitirá a este, ascender à plena cidadania; com o conhecimento da história e dos usos e costumes do país; com o incentivo à criação de associações fortes, porque "são o núcleo de resistência do individualismo contra o Estado"; com a necessidade de desenvolver o municipalismo "como um poder derivado directamente do povo"(9), porque são estes os fundamentos da coesão e progresso da Pátria. O movimento republicano tornou-se / 114 / popular nos últimos anos da monarquia constitucional, e cresceu muito, sobretudo após as comemorações Camonianas (1880) e com as do Centenário da morte do Marquês de Pombal (1882).

Em Santarém, liberais como Passos Manuel (1805-1862); Marquês de Sá da Bandeira (1795-1876); António Oliveira Marreca (1805-1889); Alexandre Herculano (1810-1877) e Almeida Garrett (1799-1854) e a designada Geração de 70 empenharam-se, ao longo do século XIX (10), no desenvolvimento e na definição das linhas de crescimento da urbe; em melhoramentos tecnológicos e no incentivo à criação de associações culturais. Alexandre Herculano pregava inclusivamente, à época, na "Voz do Profeta", as novas realidades culturais, defendendo uma política de descentralização cultural e o património, a história local e o municipalismo, como caminho natural, para o progresso do país e para a construção da História Nacional.

O Museu Distrital de Santarém (1876), fundado nesta ambiência sob o impulso de José Ferreira da Cunha e Sousa, tinha por missão primordial evitar a perda ou a saída para o Museu do Carmo, em Lisboa, de objectos considerados dignos de apreço e mérito artístico. Visava conservá-los e salvaguardá-los, para que os vindouros, desses documentos históricos, pudessem tirar ensinamentos para o provir. Espaço museológico onde se contemplavam, essencialmente, peças arqueológicas, o Museu era simultaneamente, um espaço onde ocorriam de forma permanente e também temporária, Exposições-Feiras, do Distrito, com produtos, onde "o passado e o presente se devem associar para conduzir ao melhoramento do futuro", isto é, tinha também por missão fazer a promoção e a divulgação nacional e internacional dos mais diversos produtos e potencialidades ribatejanas, desde as agrícolas aos industriais, ao minério local e à cultura. Como exemplo disso, tivemos a 1.ª Exposição Agrícola Distrital, em 1880, na data em que a gestão do Museu passou para a responsabilidade da Comissão Executiva da Junta Geral do Distrito.

Criado no último quartel do século XIX, o Museu Distrital de Santarém, foi uma iniciativa de grande alcance nacional e regional, face à realidade museológica portuguesa contemporânea. Tendo como modelo teórico o Museu dos Monumentos Franceses de Alexandre Lenoir (1790-96); o ideário Saint-Simoniano de organização do trabalho e o exemplo prático do Museu Arqueológico do Carmo (1866), da iniciativa da Associação dos Arquitectos Civis e Arqueólogos Portugueses, o Museu Industrial de S. João de Alporão, assumiu um papel interventor e esclarecido em relação às tendências da modernização da cidade, na linhagem do ideário herculaniano e pós-herculano de protecção aos valores patrimoniais. A perspectiva não era apenas local e regional mas nacional, europeia e mundial, querendo tornar-se garantes da divulgação dos bens distritais que lhe eram confiados. Este espaço museológico pretendia promover o Distrito por meio de exposições permanentes da actividade agrícola, manufactureira, mineira e fabril tanto no que se refere às matérias-primas como às máquinas, como ainda aos produtos transformados. Não excluindo concursos e exposições temporárias, sobre as potencialidades / 115 / I do distrito – Exposições-Feiras do Distrito. O Museu Distrital de Santarém era composto pelas seguintes valências: a científico-artística, a agrícola e a fabril.

À época a quantidade e a variedade dos espólios das demolições ia ao encontro da tendência da museologia contemporânea teorizada por Lenoir, que transformava o , museu oitocentista numa espécie de museu dos monumentos, isto é, da memória do património demolido na voragem das alterações urbanas, sociais e políticas. Em França, o Museu de Cluny tornou-se o exemplo desta concepção. Em Portugal, o Museu privado do Carmo fora o pioneiro, influenciando o de Santarém. A relação entre espólio protegido dos monumentos demolidos (no fundo bens móveis) e a salvaguarda e conservação dos monumentos estabeleceu-se implicitamente. As diferentes comissões administrativas do Museu dos finais do séc. XIX tinham essa relação presente, porque fazia parte das ideias iniciais e dos regulamentos aprovados. Todavia os responsáveis do Museu do primeiro quartel do século XX, colocaram, acima da protecção dos bens móveis, a salvação patrimonial dos edifícios, os próprios imóveis in situo Desenvolveram uma política de pressão sobre as autoridades com vista à classificação e protecção dos Monumentos de Santarém, chegando o Museu a integrar-se no 1.º Conselho de Arte e Arqueologia criado pela legislação republicana de 1911.

Esta inversão de perspectiva e a sensibilização da opinião pública por parte do Museu permitiu evitar a demolição de muitos monumentos da cidade.

A igreja de S. João de Alporão onde estava inicialmente albergado o Museu Distrital de Santarém era um espaço exíguo que abarcava uma multiplicidade de espólios resultantes de ofertas, achados e demolições diversas. A ideia inicial do museu, prevista no regulamento de 1878, era a de um Museu dos monumentos.

A Igreja de São João de Alporão acolheu o primeiro museu público do país – o Museu Distrital de Santarém. Este espaço museológico situado próximo da Torre das Cabaças, em pleno centro histórico da cidade de Santarém, constitui um dos monumentos mais emblemáticos do Distrito. É um belo exemplar de arte românica, datado do século XII, cuja fundação se deve à Ordem dos Hospitalários (11). Templo profanado no século XIX, após a extinção das Ordens Religiosas (1834), foi sede de uma sociedade particular de teatro (1849-1876) (12) e Museu Distrital criado por alvará de 16 de Fevereiro (1876) após obras de remodelação que ocorreram entre 1877 e 1889. Constituído por uma grande diversidade de colecções, destas destacam-se as peças arqueológicas provenientes dos templos e conventos profanados ou destruídos na antiga vila como: várias lápides sepulcrais e mausoléus quinhentistas, nomeadamente, o túmulo de D. Duarte de Menezes, proveniente do Convento de São Francisco; os túmulos de João e Martim de Ocem, oriundos do já desaparecido Convento de São Domingos e a arca tumular, de Martim Cachorro, filho bastardo de D. Afonso III transferida do Convento de Santa Clara. O espólio deste museu inclui ainda capitéis árabes, fragmentos cerâmicos, portais e fragmentos de janelas, bem como diversas pedras brasonadas.

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Igreja de S. João de Alporão Santarém (13)

 

O Museu Distrital foi criado, pela iniciativa do então Governador Civil de Santarém, José Ferreira da Cunha e Sousa, abriu ao público no ano de 1889, na Igreja de S. João de Alporão, tendo por base, o Regulamento de 8 de Maio de 1885, passando para a alçada municipal a 24 de Dezembro de 1892.(14)

Actualmente, a igreja de S. João de Alporão alberga o núcleo de arqueologia do Museu Municipal de Santarém. Este documento histórico encontra-se classificado como Monumento Nacional, desde 1910.

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Fontes
Alvará do Museu Distrital de Santarém, datado de 16 de Fevereiro de 1876;
Barbosa, Luísa, Cidadania e Cultura / O Movimento Associativo, do Liberalismo ao Republicanismo, Círculo Cultural Scalabitano – 50 anos de actividade cultural;
Cadernos de Sociomuseologia nº 8, 1996;
"Campeão das Províncias", n.º 6220, datado de 14 de Dezembro de 1912;
Enciclopédia Luso-Brasileira, vol. XXIX;
Gomes, Marques, Monumentos, Retratos, Paysagens, p. 83-84;
Gomes, Marques, Subsídios para a História de Aveiro, p. 230;
Monumentos e Lendas de Santarém, p. 474-475;
Livro de Baptismos, fl. 139 v;
Neves, Amaro, Conselheiro José Ferreira da Cunha e Sousa (1813-1912) / Insigne Aveirense, Homem de Bem, Aveiro, 2011.
Revista Occidente – Revista Illustrada de Portugal e do Extrangeiro [1878-1914];

NOTAS

(1) – Comunicação apresentada às Jornadas de História Local – Património Documental Aveiro 2011, Biblioteca Municipal de Aveiro, 25 de Novembro de 2011.

* Técnica Superior da CMA / Museu da Cidade. Membro da Direcção da ADERAV

(2) – Neves, Amaro, Conselheiro José Ferreira da Cunha e Sousa (1813-1912) / Insigne Aveirense, Homem de Bem, Aveiro, 2011, pp. 69 e 90.

(3) – Custódio, Jorge (Coord.), S. João de Alporão, na História, Arte e Museologia, Santarém, Câmara Municipal de Santarém, 1994, pp. 45-57.

(4) – Relação dos Governadores Civis do Distrito de Aveiro...", A.D.A., vol. lI, p. 75.

(5) – Vd. O Associativismo, antes e depois do 25 de Abril – Conferência inaugural proferida pelo Professor Doutor António Reis, no colóquio "Cidadania e Cultura, Cinquenta Anos de Intervenção Cultural", Santarém, Círculo Cultural Scalabitano, 27 de Novembro de 2004.

(6) – Em 1791, o direito à reunião estava previsto, na lei de Le Chapelier, de 17 de Março. Cf. Santos, Fernando Piteira, "Direito de Associação" in Joel Serrão (Dir.), Dicionário de História de Portugal, vol. I, Porto, livraria Figueirinhas, 1989, pp.236-238.

(7) – Cf. Ramos, Rui, História de Portugal, ... de José Mattoso, vol. VI, Lisboa.

(8) – Alves, Ana Búzio e outros, O Teatro Clube Ribeirense, Santarém, ESES, 2005, texto policopiado, p.3.

(9) – Círculo de Leitores, 1994, pp. 565-569.

(10) – Cf. Alves, Maria João Búzio, A Casa das Freiras, Trabalho final da licenciatura em Artes Decorativas, Design de Interiores, Fundação Ricardo Espírito Santo Silva, Lisboa, 2002 (texto policopiado) e Custódio, Jorge (Coord.), Santarém, Cidade do Mundo, vol. I, Santarém, C. M. de Santarém, 1977, pp. 91-94.

(11) – Designada por Ordem de Malta a partir de 1530.

(12) – Até à constituição da 1.ª Comissão Administrativa (1876), para instalação do Museu Distrital de Santarém.

(13)http://www.museu-santarem.org

(14) – Decreto no. 295, de 28 de Dezembro de 1892.


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