José António Rebocho Christo *
Os cronistas da Ordem Dominicana,
como Frei Luís de Sousa, atribuem a Soror Isabel
Padilha (professa em 1618) as encomendas de duas
capelas dedicadas ao fundador da Ordem Dominicana,
São Domingos de Gusmão, nas quais se integravam,
para além
das imagens do orago, as representações e relíquias
de outros Santos e Beatos domínicos. Localizavam-se
elas, uma dentro do edifício conventual, no primeiro
piso, junto da enfermaria e a outra no pátio do
poço.
Domingos Maurício, naquele que é o mais amplo e
rigoroso trabalho realizado acerca do Mosteiro de
Jesus de Aveiro, refere-se-lhes diversas vezes(2) sem
que, no entanto, seja claro quanto às suas
denominações exactas: São Domingos ou São Domingos e Santos da Ordem. No seguimento das
hesitações criadas por este autor, Clementina de
Carvalho Quaresma, publica um artigo(3) em que
sustenta ser a Capela de São Domingos e Santos da
Ordem aquela que se encontrava junto da enfermaria,
no primeiro piso, contrariando uma descrição feita
por Rangel de Quadros(4) cerca de 1906, e leitmotiv de
toda esta questão. Vítor Serrão (5), que dedicou vários
estudos à figura de António André, pintor de óleo
que assina uma das tábuas da predela do altar
dedicado a São Domingos, é, por via de Rangel de
Quadros, induzido a situar a capela no pátio
interior e não junto à enfermaria, o que,
recentemente se voltará a verificar nos artigos do
Professor Doutor Luís de Moura Sobral(6).
Rangel de Quadros descreve-nos(7) a fortuna da pequena
capela exterior: No centro deste [pátio] existia
outrora uma capela, dedicada a São Domingos e que já
estava tão arruinada, que só poderia aproveitar-se,
se fosse completamente reconstruída. Sobre a
portada tinha a data de 1650. Em 1886 e
1887 fizéram-se, n 'este edifício, importantes obras,
como antes e depois se tem feito, para
/
76 / melhor ser adaptado ao utilíssimo fim, para que
serve actualmente [colégio feminino]. Foi então
demolida essa capella da qual não merece falar-se e
que há muito estava profanada e quasi em abandono.
[p.202].
|
De acordo com este autor, transferiu-se então o seu
acervo para o interior do convento, ficando numa
cela do primeiro piso, na ala poente, junto do
denominado dormitório de baixo(8): uma bonita capela
dedicada a S. Domingos. O tecto é em firma de
pyramide octogonal truncada paralelamente á base. Em
cada face, como em todas as paredes, há bellos
quadros de
madeira representando santos da Ordem dominicana
C...). Era a que estava no terreiro que fica a norte
do claustro [indicação errónea que conduzirá
a interpretações incorrectas] e a qual já fiz referencias diversas. [p.206] Designava-a então como
Capela dos Santos da Ordem Dominicana(9). |
Santa Joana Princesa; 1618-1625. António
André; Óleo s/ tela; Col. Museu de Aveiro; N.º
Inv.ª 384/A/ ©IMC, IP - Fotógrafo: José Pessoa |
Em 1916, como se pode verificar, ao fundo, o acervo
é integrado num último local, o lado poente da sala
onde hoje se encontra a exposição permanente
dedicada ao século XVII. (10)
Com as obras de adaptação do
convento/colégio a museu o espaço contíguo é já
destinado a apresentar pintura. Posteriormente, com
as obras realizadas pela Direcção Geral de Edifícios
e Monumentos Nacionais, entre 1930-1935, estas salas
são novamente remodeladas no sentido de ampliar os
espaços expositivos e o conjunto da capela passa a
reserva/tulha, na qual se manterá até aos anos 90,
sendo o conjunto pertencente ao retábulo
parcialmente exposto, até ao novo projecto de
ampliação e requalificação do museu, ainda a ser
ultimado, que realizou o seu restauro integral e
preconiza a sua exposição permanente.
Ora todos estes dados, que situam os elementos
decorativos da capela do pátio como sendo aqueles
que procuramos agora musealizar, contrariam ainda
outras fontes. Por um lado nunca se descobriram, nas
escavações levadas a cabo no pátio do poço,
fundações que nos revelem a planta da capela, a qual
deveria ser de construção muitíssimo frágil e, por
maioria de razão, talvez pouco sólida para receber
um aparato decorativo de boa qualidade e que
/
77 / denuncia uma encomenda de grande fôlego financeiro.
Por outro lado, eventualmente o
mais incisivo, existe um outro dado ao qual tem sido
dada pouca atenção. A 28 de Julho
de 1689, nas visitas e vistorias levadas a cabo por
D. João de Melo, Bispo Conde, e pelos
elementos do tribunal eclesiástico, designados para
examinar as imagens e relíquias da Princesa D. Joana
com vista a enformar o seu processo de beatificação,
o cortejo
percorre o Convento de Jesus. Após o exame do túmulo
da Princesa dirigem-se ao coro de cima em direcção à
capela da enfermaria. O que passa então ao documento
emanado pelas testemunhas descreve-a da seguinte
forma: No apainelado do tecto, havia pintados muitos
Santos da Ordem Dominicana e, entre eles, sobre o
alto do retábulo do altar e do tecto, estava
estampada
a Venerável em hábito dominicano, com três coroas ao
pé e uma açucena na mão, tendo a outra um
livro. Sobre a cabeça uma iluminação, a modo de
resplendor. A Pintura foi atribuída a António André,
Pintor da cidade do Porto, e feita 70 anos antes.(11)
O desenho do rosto apresenta uma fisionomia próxima
do "verdadeiro retrato" quinhentista, sendo esta a
pintura mais antiga que, segundo apurámos, sobrevive
até nós representando a Princesa em hábito
dominicano e com três coroas aos pés,
cristalizando-se assim o que passará a ser o seu
elemento iconográfico mais identitário.
Apesar de não ter professado, D. Joana vestiu sempre
o hábito branco e negro
dos Pregadores, o que o Memorial da Infanta,
produzido pelas religiosas coevas da
Princesa, apresentando-a de véu branco de noviça
pois não foi autorizada a tomar votos.
Estas coroas reportam-se às propostas de casamentos
que Soror Margarida Pinheiro
relata no Memorial(12).
Retomando a questão da Capela, e à falta de mais
argumentos que nos levem a por
em causa a proveniência do conjunto atribuído a
António André como sendo da capela do claustro, está
ainda o facto de que Rangel de Quadros nos indicar a
data inscrita na sua
porta – 1650. Será a época da construção, o que não
corresponde sequer ao tempo indicado pelo processo
de beatificação, ou seja, um conjunto pictórico
datável de 1619.
Em suma, o conjunto que agora passamos a tratar
directamente, composto por escultura, pinturas e
talha dourada é seguramente proveniente da capela
localizada no 1º
andar, e a ligação quase romântica a uma acanhada
estrutura no pátio do poço deve
/
78 /
prender-se essencialmente com a confusão entre a
invocação simples de S. Domingos, no pátio, com a de
S. Domingos e Santos da Ordem junto à enfermaria.
Esta questão não desmerece a qualidade artística e a
dimensão apologética do programa rigoroso e vigoroso
que o conjunto apresenta, mas importa ser revista em
abono da verdade que os documentos nos apresentam.
A encomendante
Não são vastos os elementos acerca da encomendante,
no entanto Rangel de
Quadros, sustentado nos Cronistas da Ordem,
descreve-nos desta forma a Dona Isabel Padilha, que
a Crónica da Fundação do Mosteiro de Jesus nos
relata ter professado em 1618: Era irmã de D. Brites
Sotto Mayor, e jói em tudo sua immitadora. Foi
grande devota do Patriarcha S. Domingos e tanto que
mandou fazer na enfermaria uma capella em honra do
mesmo Santo, na qual gastou muito dos seus haveres.
E como era muito modesta pedia especialmente ao
mesmo Santo, que a livrasse de ser eleita prelada do
mosteiro. Aconteceu, porem, o contrário, porque mais
valeram os seus merecimentos do que as suas
instancias e as suas recusas. Quando tal soube,
dirigiu-se ao altar de S. Domingos e ahi, prostrada
e derramando muitas lágrimas, quase se queixava de
não terem sido ouvidos os seus rógos. Angustiada por
se vêr elevada a Prioreza, foi tomada de uma grande
agonia e, transportada pelas suas companheiras á
cella, ahi falleceu poucos dias depois, sem outro
achaque mais do que a contrariedade que soffrera na
sua modéstia e humildade.(13)
Desconhece-se a data da sua morte.
O acervo remanescente nas colecções do Museu de
Aveiro.
O que podemos observar hoje são os elementos que
sobrevivem da decoração
original: diversos elementos do retábulo maneirista,
as tábuas pintadas que ornamentavam a porta de
entrada, a imagem – relicário de S. Domingos e um
vasto conjunto de pinturas, num total de 28, tábuas
e telas.
Destinam-se a ser montados no Piso 1
– SALA 6,
procurando recriar o retábulo
principal a partir dos elementos de talha que
subsistem, incluindo ainda a imagem do orago, quatro
pinturas laterais e duas na predela, segundo uma
proposta apresentada pelo arquitecto Carlos Severo,
autor da nova museografia do museu.
O nicho, visível na imagem à direita, é a peça
central do retábulo, sendo todo dourado com um
trabalho quase de ourives puncionado.
As quatro colunas com os terços inferiores com os
tetramorfos, ou
/
79 /
seja, os quatro Evangelistas com os seus elementos
identificadores, deverão ladeá-lo, à direita S. João
Evangelista, com a águia, e à esquerda S. Mateus,
com um anjo, seguem-se-lhes dois vãos com pintura e
teremos então as duas colunas de remate lateral, por
sua vez à direita S. Marcos, com o leão, e à
esquerda S. Lucas, com o touro.
As colunas assentam sobre duas mísulas e dois
paralelepípedos, estes com
relevos representando santos dominicanos, S.
Raimundo e S. Jacinto. Integra-se esta tipologia
retabular nos modelos maneiristas, em voga na
dinastia Habsburgo, marcadamente arquitecturais, com
colunas separadas por painéis – modelo de ascendente serliano
– apresentando uma decoração naturalística,
na qual se evidenciam os cachos de frutos, compondo
festões (caso da mísula), com peras, cabaças, romãs,
etc., cuja simbologia canónica era facilmente
reconhecível. Nas colunas surge a grande moda do
terço inferior ornado, tendo como fonte o conjunto
de gravados presentes na obra de
Juan de Arfe e Villafañe, De varia comensuración,
publicada em Sevilha em 1585. Apresentam aqui cartelas à flamenga, utilizando
elementos característicos da ourivesaria como
os cabouchons e lembrando molduras de couro
recortado.(14)
A imagem do orago, São Domingos,
fundador da Ordem dos Pregadores, será
porventura a peça de maior qualidade da capela.
Desde logo trata-se de uma imagem relicário,
ostentando um pouco de tecido do que terá sido o
hábito de São Domingos, por esta via uma
aquisição avultadíssima e enquadrada na
espiritualidade contra-reformista em que a
relíquia sacraliza o espaço em que se encontra.
Para a sua obtenção, além dos créditos da
fundadora da capela, poderão ter aumentado os
cabedais com a presença no cenóbio aveirense de
D. Beatriz de Lara e Meneses, mulher da mais
elevada condição na esfera peninsular, devota e
culta, que habitou no mosteiro de Jesus entre
1602 e 1620 e a ele dedica parte da sua imensa
fortuna. A imagem é em madeira de nogueira e
executada a partir de um único bloco, com um
requintadíssimo trabalho de entalhe e estofo nas
vestes, exibindo uma paleta muito reduzida com
as cores aplicadas de forma homogénea. |
|
Imagem de São Domingos.
Imagem 2 |
Esquema simplificado da colocação das pinturas
no retábulo. Museu de Aveiro - Dossier de peça |
A túnica
apresenta uma decoração estofada com
ramagens e flores, nas quais ao branco de base é
dado um contorno branco a pincel que realça os
elementos vegetalistas, tornando-a
/
80 /
apuradíssima. Os punhos, assim como o livro, a capa,
capeirão e escapulário, são decorados com um perlado
entalhado, alternando com cartelas e ramagens
simétricas, nas quais se vêem incrustações de
pedrarias. As cartelas, os panos pendurados que
seguram cachos, as aves, as cabeças de anjo
aladas, são todos eles elementos que se relacionam
com gravuras franco-flamengas. Esta imagem foi
objecto de um amplo estudo comparativo, chegando-se
à conclusão de que os peritos em escultura
envolvidos não conheciam qualquer paralelo com esta
peça que, a somar a todas as suas excepcionais
características, não apresenta relevos aplicados,
mas sim entalhados num mesmo bloco de nogueira. |
A pintura presente no retábulo desenvolvia-se
segundo um esquema cuja se inicia leitura a partir
da predela passando posteriormente à análise das
restantes quatro que se localizavam entre as
colunas.
Ao centro temos A Ceia no Convento de São Sisto, em
Roma.
Este episódio relata o tempo em que falta o alimento
a S. Domingos e aos frades da sua Ordem. O requinte
miniatural da composição é característico do seu
autor, António André, sendo esta a única pintura
assinada por entre as dezenas que executou para
diversas capelas do Convento de Jesus.
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A Ceia no Convento de São Sisto, em Roma
1618-1625 –
Assinado: António André – Óleo sobre madeira
Proveniente do Convento de Jesus, Aveiro Col. do
Museu de Aveiro; Nº Inv.º 88/ A; ©IMC,
IP – Fotógrafo: José Pessoa |
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Este pintor, abordado por historiadores como Vítor
Sertão ou Moura Sobral, terá nascido por volta de
1570, eventualmente em Aveiro, onde se detectam
alguns personagens de apelido André. Em 1588
encontra-se a trabalhar na oficina lisboeta de
/
81 /
Simão Rodrigues, pintor maneirista que funda a
Irmandade de São Lucas, a qual congregava os
pintores da capital. Em 1612, André aparece a
integrar uma lista de dezasseis pintores de óleo que
apresentam um pleito à câmara de Lisboa, reclamando
a "liberalidade da arte da pintura" e a sua nobreza,
reclamando os seus direitos e apartando-se das
obrigações impostas aos oficias mecânicos. Estatuto
maior que certamente André absorve e que o facto de
termos esta obra assinada atesta!
Entre 1619 e 1625 encontrava-se em Aveiro
respondendo a encomendas quer do Mosteiro de Jesus
quer do de Nossa Senhora da Misericórdia. Voltamos a
ter notícia dele, entre 1646 e 1652, período em que
esteve ao serviço da Ordem Terceira Franciscana do
Porto.
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A Virgem entrega o
verdadeiro retrato de São Domingos
1618-1625 –
Assinado: António André – Óleo sobre madeira
Proveniente do Convento de Jesus, Aveiro Col. do
Museu de Aveiro; Nº Inv.º 90/ A; ©IMC,
IP – Fotógrafo: José Pessoa |
|
A segunda pequena pintura que podemos observar, "A
Virgem entrega o verdadeiro retrato de São
Domingos", ou o "Milagre de Soriano", é um bom
modelo de narração policénica contra-reformista,
na senda das produções de Simão Rodrigues, na qual
o dinamismo do discurso se obtém através de níveis
de profundidade diferentes, relatando três
momentos: a Virgem, Santa Catarina e Santa Madalena
entregam
o verdadeiro retrato a Frei Lourenço de Grotéria,
num segundo momento Frei Lourenço reza perante o
retrato e sob uma aparição da Virgem e, por último,
a apresentação da imagem à comunidade de Soriano.
Falta, por ter desaparecido, o terceiro elemento da
predela, que sabemos tratar-se de uma representação
da morte de S. Domingos, a qual esteve presente na
Exposição de Arte Religiosa, realizada em Aveiro, no
Colégio de Santa Joana, em 1895.
Completam o discurso retabular três pinturas que
narram às religiosas a vida do patriarca e uma
quarta em que se representa um milagre seu. A
primeira representa, ainda segundo o esquema
policénico, o nascimento de São Domingos.
Segue-se a representação do seu baptismo, composição
em que se destaca a riqueza dos trajes dos nobres
personagens, o fundo arquitectural e o esquema usado
para destacar a figura do infante, vestindo a figura
feminina de branco.
/
82 /
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Baptismo de São Domingos
1618-1625
António André. Óleo s/ tela proveniente do
Convento de Jesus de Aveiro. MA - N.º Invº 82/A |
Entrega do rosário a São Domingos
1618-1625
António André. Óleo s/ tela proveniente do
Convento de Jesus de Aveiro. Col. do Museu de
Aveiro Nº Invº 85/A ©IMC, IP - Fotógrafo José
pessoa |
|
Se para as pinturas anteriores não se conhecem
fontes gravadas, o que credita os méritos
compositivos do autor, já a tela "Entrega do rosário
a São Domingos" reflecte um esquema regular com
origem em gravados, neste particular a composição
com o mesmo tema do flamengo Antoine Wierix(15),
Representa a Virgem com o Menino oferecendo um
rosário a São Domingos, altura em que a Senhora pede
que a sua Ordem seja a propagadora desta fórmula de
oração. A atenção dada à paisagem e o seu modelo de
representação, são uma constante nas obras de André,
aqui com uma ravina, pequenas casa e um curso de
água onde nadam patos, uma receita, quase marca
deste autor, próxima às figurações flamengas
quatrocentistas que representavam a profundidade com
a colocação em primeiro plano de elementos de
maiores dimensões, a par de uma gradação de tons
mais escuros para definir os ambientes e objectos
mais próximos e os mais claros para os mais
afastados. |
Entrega do rosário a São Domingos
c. 1600; António Wierix; Gravura |
/
83 /
Remata o programa pictórico do altar um milagre do
Fundador. Mestre Reinier desejava ardentemente
entrar na Ordem Dominicana mas foi achacado de
febres violentas. Aparece-lhe então a Virgem para o
salvar, assomando ao Mestre acompanhada de duas
belas jovens - vemos ao centro, junto à cama, a
Virgem, coroada e com a píxide que transportava o
remédio para a maleita, em primeiro plano Santa
Catarina e em segundo plano Santa Cecilia. Paira
sobre Nossa Senhora um anjo que leva um hábito da
Ordem que a Senhora estende a Rainier. São Domingos
entretanto tem uma visão, exactamente correspondendo
a este milagre e será ele a vestir o hábito ao Deão,
como se vê em segundo plano.
O tecto da capela é de forma piramidal, octogonal,
e na origem correspondia a uma planta truncada,
conforme ao desenho que observamos em baixo à
esquerda. Ao
centro S. Tomás de Aquino e a única pintura
trapezoidal que sabemos onde se localizava, como
vimos, é Santa Joana, imagem que o Processo de 1689
situa sobre o altar. O
programa deverá ter tido, na sua densa elaboração
hagiográfica que contempla os maiores santos e
beatos da Ordem com
especial relevância para os nacionais ainda que não beatos (caso da Princesa Santa
Joana, beatificada apenas em 1693), a participação
dos frades domínicos do Convento da Misericórdia de
A veiro, confessores das religiosas de Jesus.
No tecto, ao centro, temos então São Tomás de Aquino
(Doctor Angelicus), Italiano, filósofo e teólogo,
que foi o expoente máximo da escolástica, procurando
compatibilizar o pensamento racional com a Fé
Cristã, defendendo a ética racional e o livre
arbítrio. O Espírito Santo transmite-lhe sabedoria,
o sol ao peito é a luz da Fé e a custódia de desenho
arquitectónico maneirista que exalta a sua defesa em
prol da Fé Cristã, uma fórmula catequética também
ela integrada no espírito de combate
contra-reformista.
Compõem o restante programa do tecto oito pinturas.
A sua colocação parte da figura da Princesa, sobre o
altar. À sua direita o Fundador da Ordem e, segundo
proposta de Moura Sobral, à esquerda estaria São
Gonçalo de Amarante, beatificado em 1561. Nas
representações das figuras masculinas, das quais
apenas mostramos alguns exemplos, constam Santo
Alberto Magno, padroeiro dos cultores das ciências
naturais, cientistas, filósofos, estudantes e
médicos. Também São Pedro Mártir, Grande Inquisidor,
taumaturgo e mártir; São Vicente Ferrer, teólogo e
pregador, etc.
Aquele que intuímos ser a representação de mais um
elemento masculino e que faria com que no tecto
estivessem as duas figuras femininas afrontadas,
rodeadas pelas figuras masculinas, cujas orientações
dos rostos nos permitirão, perante a falta de fontes
uma proposta de composição credível.
/
84 /
Remata esta sequência a figura de uma Santa
Dominicana, podendo-se, pelos poucos elementos
iconográficos que o tempo e a incúria nos legaram, propor Santa Catarina de
Sena, declarada Doutora da Igreja em 1970, em cuja
iconografia se
inclui o casamento místico com o Menino
Jesus. Desta forma se remata o programa com o
terceiro ramo da Ordem, compreendendo teólogos e
filósofos, mártires e evangelizadores.
Para rematar o esquema laudatório
dos dominicanos portugueses, foquemo-nos na figura
maior de D. Frei Bartolomeu dos Mártires, Arcebispo
de Braga, Primaz Espanhas, que apresentou e defendeu
268 artigos no Concílio de Trento, valendo-lhe a sua
doutrina o epíteto de "O Reformador". É considerado
na devotio popular como Pai dos pobres e dos
enfermos. Aqui a sua representação é idealizada,
longe da gravura de Schorquens que o retrata com uma
fisionomia pouco agradável mas aparentemente verista.
|
Ao seu lado vemos o Pregador
português mais famoso na esfera nacional e
internacional, São Frei Gil, nascido D. Gil de
Valadares, em Vouzela no ano de 1184, e falecido em
Santarém em 1265. Teólogo e pregador, médico de
enorme fama e taumaturgo, formado em Santa Cruz de
Coimbra, foi Provincial das Espanhas e morre com
fama de santidade. Na mão segura um manuscrito,
tratando-se certamente do célebre tratado médico
árabe de Al Razi, que Frei Gil ajudou a traduzir
aquando da sua estada em Toledo em 1218.
Situando-se junto da enfermaria, a presença de todos
estes personagens com ligação à prática médica e à
cura fazem todo o sentido, permitindo às enfermas o
socorro por que anseiam. |
São Gonçalo de Amarante. 1618-1625. António
André; Óleo s/ tela proveniente do Convento de
Jesus de Aveiro; MA - Nº Inv.º 399/A/foto José
Pessoa. |
Assim se justifica referir ainda a presença de Santa
Joana de Orvieto, advogada contra as dores de
dentes, câncer, acidentes apoplécticos (desmaios,
afrontamentos, crise conversivas) e febres malignas.
Por último, e sem pretensões de referir todos os que
na capela estão representados, São Pedro Gonçalves
Telmo, que embora não seja português, foi Prior do
Convento de S. Domingos de Guimarães, e é o
protector dos pescadores e marinheiros, o que em
terra de homens do mar tem o maior cabimento.
Como refere Vítor Serrão16 este conjunto será uma
das páginas mais interes¬santes, e seguramente a
mais completa, da iconografia dominicana em
Portugal, um
/
85 /
unicum na sua história ainda imperfeitamente
estudada, que se evidencia pelo detalhismo
da representação e profundidade catequética do seu
programa imagético. Este, incluindo figuras que a
Igreja ainda não tinha elevado aos altares, procura
essencialmente dar voz às vivências e virtudes da
Ordem dos Pregadores, cuja importância no quadro
nacional era exponencial, casualmente procurando
estabelecer uma iconografia credível a ser usada por
toda a Ordem.
A Capela de São Domingos e dos Santos da Ordem
constituía-se como um Olimpo ou um panteão, no qual
se conjugavam as mais caras invocações dos
Pregadores, apresentando-se como um modelo
sincrético no qual se fundem as magnas
representações dos Santos e Beatos dominicanos.
O espólio que dela ainda existe é, por várias
razões, notável e precioso, quer pela qualidade da
talha e da excepcional imagem relicário do seu
orago, quer pelo conjunto pictórico que apresenta, o
maior que se conhece do pintor António André, quer
ainda, talvez sobretudo, pela erudição e carácter
propagandístico do seu programa. Este exalta, não
apenas os grandes Santos dominicanos mas sobretudo
os Santos, Beatos e candidatos a Santos portugueses:
Santa Joana, S. Gonçalo de Amarante, D. Frei
Bartolomeu dos Mártires, S. Frei Gil de Vouzela ou
Santarém. Nas pinturas, muitos destes personagens
foram figurados sentados sobre nuvens e revestiam a
quase totalidade das paredes e tecto da capela que,
por ser de pequenas dimensões, traria a sensação
sedutora e apelativa de estarmos a entrar num céu
povoado pelos "Santos da Ordem".
Hoje, afortunadamente, está em vias de ser exposto
este precioso legado patrimonial de que Aveiro se
deve orgulhar!
BIBLIOGRAFIA
CHRISTO, José António Rebocho, São Domingos Relicário
e a Capela de São Domingos e dos Santos da Ordem, in:
"A escultura policromada religiosa dos séculos XVII
e XVIII – Estudo comparativo das técnicas, alterações
e conservação em Portugal, Espanha e Bélgica",
Lisboa, Instituto Português de Conservação e
Restauro, 2004
GOMES, João Augusto Marques, Museu Regional de
Aveiro. Sessão de Arte, 16 de Janeiro de 1916,
Aveiro, 1916
GOMES, João Augusto Marques, VASCONCELOS, Joaquim,
Exposição Districtal de
Aveiro em 1882, Aveiro, Grémio Moderno, 1883
MADAHIL, António Gomes da Rocha,
Crónica da Fundação
do Mosteiro de Jesus de Aveiro, e Memorial da
Infanta Santa Joana filha dei Rei Dom Afonso V
(códice quinhentista), Aveiro, Francisco Ferreira
Neves, 1939
MECO, José, As artes decorativas, In: "História da
Arte em Portugal", Lisboa, Alfa, 1986, voI. 7
QUARESMA, Clementina Carvalho, Reflexões sobre a
Capela de São Domingos e Santos da Ordem, "Boletim
Municipal de Cultura", Aveiro, CMA, Ano XVIII, n° 35
QUADROS, Rangel de, Aveiro - Apontamentos
históricos, policopiado
ROIG,Juan, Iconografia de los Santos, Barcelona, Omega, 1950
SANTOS, Domingos Maurício Gomes dos (s.j.),
O
Mosteiro de Jesus de Aveiro, Lisboa, C.D. Angola,
Museu do Dundo, vol. I / 1-2- 3, voI. II / 1-2-3,
1963
/
86 /
SERRÃO, Vítor, Estudos de pintura maneirista e
barroca, Lisboa, Caminho, 1989
SERRÃO, Vítor,
Pintura e propaganda nos programas artísticos
dominicanos em Portugal durante a Idade Moderna, policopiado
SMITH, Robert, A talha em
Portugal, Lisboa, Livros
Horizonte, sd
SOBRAL, Luís de Moura, Pintura Portuguesa do século XVII
– lendas, histórias e narrativas, Catálogo de
exposição, Lisboa, IPM, 2004
SOUSA, Frei Luís de, História de São Domingos,
Porto, Lello e Irmãos, 1977, voI. I
_______________________________________
(1) – Comunicação apresentada às Jornadas de História Local
– Património Documental Aveiro 2011, Biblioteca
Municipal de Aveiro, 25 de Novembro de 2011.
* Licenciado em História da Arte pela Faculdade de
Letras da Universidade de Coimbra. Desde 1993 exerce
funções de conservador no Museu de Aveiro,
pertencente ao Instituto dos Museus e da
Conservação, IP, no qual é o curador das colecções
de pintura, desenho, aguarela, manuscritos e Livro
Antigo.
(2) – SANTOS, Domingos Maurício Gomes dos (s.j.), O
Mosteiro de Jesus de Aveiro, Lisboa, c.D. Angola,
Museu do Dundo, voI. I /1-2- 3, voI. II / 1-2-3,
1963
(3) – QUARESMA, Clementina
Carvalho, Reflexões sobre a
Capela de São Domingos e Santos da Ordem, "Boletim
Municipal de Cultura", Aveiro, CMA, Ano XVIII, nº 35.
(4) – Aveiro – Apontamentos históricos, policopiado.
Este historiógrafo aveirense situa a Capela de São
Domingos e Santos da Ordem no pátio.
(5) – Entre outros, ver: SERRÃO, Vítor,
Estudos de
pintura maneirista e barroca, Lisboa, Caminho, 1989
(6) – SOBRAL, Luís de Moura,
Pintura Por1uguesa do
século XVII – lendas, histórias e narrativas,
Catálogo de exposição, Lisboa, IPM, 2004
(7) – QUADROS; Rangel de,
Aveiro –- Apontamentos
históricos, policopiado. P.202 e 206
(8) – É assim designado muito embora se localize no
primeiro andar do edifício.
(9) – CFR. QUARESMA, Clementina Carvalho,
Museu de
Aveiro, Aveiro, AMUSA, 1991, p. 47
(10) – No inventário do museu, realizado em 1922,
identifica-se a imagem de São Domingos relicário,
inv.º 124/B, com o nº 61 (fig.0) na capela chamada
dos Santos da Ordem Dominicana contígua à sala G
(...) e que é toda dourada com trinta quadros a
óleo; uns em tela, outros em madeira representando
Santos da Ordem de S. Domingos. (Inventário do Museu
de Aveiro de 1922).
(11) – SANTOS, Domingos Maurício Gomes dos (s.j.),
O
Mosteiro de Jesus de Aveiro, Lisboa, C.D. Angola,
Museu
do Dundo, 1963, p. 209
(12) – Era natural que D. Afonso V, seu pai, e o
Príncipe Perfeito, seu irmão, almejassem para ela um
consórcio
numa casa real europeia mas, em boa verdade, nenhum
dos cronistas refere estas diligências. Seriam
tratadas
em "privado"? Parece-nos um argumento pouco
consistente pois estas uniões pressupunham grandes
mediações e negociações políticas das quais não há,
aparentemente, notícia. No entanto existem
referências
em Rui de Pina, Damião de Góis ou em Garcia de
Resende de manobras diplomáticas com as cortes em
relação às quais se ambiciona, como refere Margarida
Pinheiro, o enlace, e são elas a Inglaterra, a
França e o
Sacro Império Romano-Germânico. Pode, à falta de
dados mais consistentes, imaginar-se que, tendo
acesso
ao conteúdo narrado nas crónicas, fossem os dados
metamorfoseados em esponsais. Além do mais era
altamente dignificante e significativo que, para
além de prescindir dos apanágios de Princesa, D.
Joana tenha
também abdicado de ser rainha, pondo em evidência a
opção feita de viver pobre e em clausura, apartada
de
toda a mundanidade. Toda esta encenação ganhava
ainda mais créditos quando, por vontade divina, os
pretendentes morriam antes que o contracto dos
nubentes pudesse ser realizado – não era esse o
esposo que
queria a Infanta, mas sim o Altíssimo como refere o
"Memorial", pondo-se o próprio Deus solidário com a
opção tomada e tomando-se o mito por milagre.
(13) – QUADROS, Rangel de,
Aveiro – Apontamentos
históricos, policopiado. p.159
(14) – SMITH, Robert, A talha em Portugal, Lisboa. Livros
Horizonte. sd. pp.49-52
(15) – SERRÃO, Vítor, Pintura e propaganda nos programas
artísticos dominicanos em Portugal durante a Idade
Moderna, policopiado. artigo gentilmente facultado
pelo autor
(16) – SERRÃO, Vítor, Pintura e propaganda nos programas
artísticos dominicanos em Porlugal durante a Idade
Moderna, policopiado, artigo gentilmente facultado
pelo autor
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