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"Patrimónios" – n.º 4, Maio 2004, Ano XXV, 2ª série, 158 páginas.


ALGUNS APONTAMENTOS PARA UMA ESTRATÉGIA DE DESENVOLVIMENTO DO BAIXO VOUGA

Sónia Filipe 150

"Não há territórios em crise,
há somente territórios sem projecto"
(BENKO, 2001: 37).


Nota prévia

O presente trabalho corresponde grosso modo a um exercício teórico, académico, elaborado no decurso da parte escolar do Mestrado em Arqueologia Regional leccionado no Instituto de Arqueologia da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, no âmbito do Seminário de Estratégias de Desenvolvimento para as Beiras, o que determinou a sua estrutura organizativa bem como os conteúdos.
Não tendo nós por formação académica base a Economia, esta reflexão não pode ter a pretensão de indicar um modelo económico a seguir, mas antes alertar para algumas questões que julgamos pertinentes no âmbito da gestão sustentada dos recursos e do território pelas comunidades locais.

1. Introdução

Tendo por base o território da Região Centro – tradicionalmente denominado por Beiras –, o presente trabalho tem por objectivo caracterizar uma sub-região deste largo espaço geográfico: a área (NUTE III) do Baixo Vouga.

Desta forma, depois de uma breve caracterização do território e dos recursos da Região Centro, passaremos num segundo momento para a caracterização do Baixo Vouga – faixa territorial que se espraie do litoral oceânico em direcção ao interior –, procurando reconhecer-lhe os traços gerais que lhe conferem uma mesma identidade, bem como aqueles que lhe marcam as diferenças. Só desta forma poderemos depois (re)conhecer os valores patrimoniais (materiais e imateriais) passíveis de ser potenciados economicamente para, desta forma conduzir a políticas/acções/iniciativas je desenvolvimento local.

Uma vez que o objectivo fundamental desta reflexão é fornecer ferramentas que nos permitam desenvolver estratégias para desenvolver sítios/lugares/paisagens a partir do seu valor patrimonial, nomeadamente o arqueológico, só depois de um reconhecimento prévio does) espaço(s) onde nos movimentamos, poderemos passar à enumeração do património (edificado, no subsolo e imaterial) para, então, reflectir ;obre a estratégia de desenvolvimento adoptada pelo Plano de Desenvolvimento regional, especificamente quanto à gestão do conjunto patrimonial reconhecido e ao :eu aproveitamento como factor de desenvolvimento para a economia desta região.
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A zona do Baixo Vouga é pautada por uma grande unidade conferida pelo mar/linha de costa, mas que, ao mesmo tempo incorpora uma paisagem interior de altura, o que vai condicionar, pelas inerentes diferenças, uma análise integral do potencial patrimonial que possui. Por isso, optámos por nos centrarmos na área constituída pela zona urbana de Aveiro – Ílhavo. Esta escolha tem por base uma identidade fornecida por indicadores comuns. O Oceano, o sistema lagunar da Ria de Aveiro, o rio Vouga, as matérias-primas disponíveis, as actividades extractivas e transformadoras ainda hoje praticadas, mas fruto de um saber acumulado.

Pareceu-nos reconhecer uma base territorial sólida, alicerçada por actividades humanas seculares que permitem a adopção de iniciativas baseadas na defesa e valorização de um património vasto e diversificado. Destacam-se as actividades relacionadas com a linha de costa oceânica: a pesca (costeira e longínqua) e a construção naval; as que dependem directamente do peculiar sistema lagunar, principalmente a extracção de sal; e as que, recolhendo as facilidades de navegabilidade dos inúmeros canais existentes e a proximidade das matérias-primas se multiplicaram, desde pelo menos o período romano. Encontram-se neste último caso essencialmente as múltiplas unidades de fabrico de cerâmica, desde a cerâmica estrutural (de construção), à utilitária, à produção de faianças e porcelanas.

A linha de costa, ou melhor, a alteração da mesma até momentos muito recentes em termos históricos, condicionou a evolução da ocupação humana deste espaço. Talvez este factor justifique o número reduzido de estações/sítios arqueológicos identificados até ao momento. Excepção seja feita à arqueologia subaquática.

Tentámos na parte final do trabalho perceber até que ponto estes contributos específicos, ligados à arqueologia e ao património, têm sido valorizados e utilizados como estratégia de desenvolvimento para esta região. Neste sentido, apontam-se algumas conclusões e deixam-se algumas sugestões.

2. Caracterização sumária da Região Centro

Herdeira de um vasto território tradicionalmente denominado por Província da Beira ou território das Beiras151, a Região Centro converte-se naturalmente em tema de estudo no âmbito deste Seminário.

A Região Centro é a unidade de gestão do território que ocupa uma posição central no país, entre o Norte e o Sul, limitada pelo Atlântico a poente mas estendendo-se até ao interior da Península para leste. Precisamente pela posição que ocupa, constitui um "espaço charneira" e de articulação em termos físicos, económicos, sociais e culturais (Gaspar, 2002: 5).

Território de excelência, ocupa 23 668 km2 onde se concentram 17,2% da população nacional. Este espaço é feito de realidades distintas mas complementares. A geologia e a geomorfologia concretizam a primeira grande clivagem neste território. A / 137 / uma zona litoral de natureza sedimentar, contrapõe-se um interior mesetanho, de onde se ergue toda uma cortina de importantes acidentes orográficos de altura, com destaque para a Cordilheira Central (onde se posiciona a Serra da Estrela).

Destas diferenças físicas, moldadas pela acção humana ao longo de milénios, resulta uma multiplicidade de paisagens, desde longos prados junto à ria de Aveiro, encostas vinhateiras cuidadosamente cuidadas, áreas de prática de agricultura intensiva "dentro" dos vastos pinhais das Gândaras e da península das Gafanhas, a região do Dão com a sua paisagem vinícola, a agricultura florescente da Cova da Beira, as vastas áreas de pinhal do Pinhal Interior (GASPAR, 1993: 70), entre outras, que constituem uma enorme mais valia paisagística de enorme valor turístico.

A região Centro (NUTE II) é composta por 10 NUTE III, a saber: Baixo Vouga (fruto de análise posterior), Baixo Mondego, Dão – Lafões, Pinhal Litoral, Pinhal Interior Norte, Pinhal Interior Sul, Serra das Estrela, Beira interior Norte, Beira Interior Sul e Cova da Beira. Neste espaço estruturam-se 78 municípios.

Esta região apresenta um forte desequilíbrio demográfico entre litoral e interior, sendo que o primeiro é populoso e urbanizado, e o segundo possui uma ocupação humana menos densa. Esta população encontra-se distribuída segundo um modelo de povoamento de onde se destacam oito cidades que concentram na sua proximidade cerca de 75% do total da população da Região Centro (Ministério do Planeamento, 1999: I-164).

Não encontramos na Região Centro grandes cidades. No entanto, toda esta área é marcada pela presença de um conjunto de sistemas urbanos152 que articulam e estruturam territórios (sempre que em raios de acesso automóvel até meia hora se concentrem 100 000, 150 000 ou mais habitantes). "Trata-se de "constelações" de cidades e vilas que podem extrair novas oportunidades das suas capacidades de interacção e da relação com os espaços rurais que estruturam" (Ministério do Planeamento, 1999: I-169). Serão estes sistemas urbanos que se tomam efectivamente relevantes para a estruturação do território regional. E são eles também que explicam o porquê da não existência de uma capital desta região, papel tradicionalmente atribuído a Coimbra, mas sem que esta cidade o tenha assumido explicitamente. Este factor implica ainda que se assuma a necessidade de criar uma estratégia especificamente para esta região, que possui um sistema de organização territorial polinucleado.

Este sistema urbano possui virtual idades que não devem ser descuradas, uma vez que se baseia em "especializações funcionais" que se complementam e articulam a nível regional (GASPAR, 1993: 73). São estas cidades de dimensão média que tomam papel de intermediários entre o rural e o urbano, revitalizando económica, demográfica e socialmente os espaços rurais que articulam, "representando os agentes mais dinâmicos das novas relações de parceria entre o campo e a cidade" (GASPAR, 2002: 9), tomando-se num trunfo para o desenvolvimento da Região Centro.

Para além dos territórios estruturados pelos eixos de desenvolvimento proporcionados pelos sistemas urbanos, esta região possui espaços limítrofes, que / 138 / correm o risco de vir a ser marginalizados e/ou excluídos das políticas de desenvolvimento territorial que visem a transformação da região.

Em termos industriais dominam as pequenas e médias empresas, muito diversificadas em termos sectoriais, predominando a metalomecânica ligeira, material de transporte, o sector têxtil, a celulose e madeiras, o sector agro-alimentar e uma série de ramos minerais não metálicos. Particular importância deve ser atribuída à indústria de moldes para plásticos, pela qualidade dos serviços prestados e pela projecção, nacional e internacional que esta actividade adquiriu.

A actividade agrícola detém ainda um peso importante, estando na base da economia familiar, realizada muitas vezes em complementaridade com postos de trabalho no sector secundário ou terciário.

Este território de excelência possui 9 instituições do ensino superior que podem estruturar a necessidade de desenvolver uma "cultura de inovação (tecnológica, cultural, social)", de forma a valorizar os recursos humanos.

Encontramo-nos assim perante uma região rica e diversificada, só muito sumariamente caracterizada, com grandes potencialidades de desenvolvimento endógeno, precisamente se explorar as suas diversidades de forma complementar e integrada, apostando no desenvolvimento de uma cultura de exigência e qualidade, potenciando os recursos das áreas de baixa densidade (nomeadamente o património e a paisagem), consolidando os sistemas urbanos territoriais, peças chave da estratégia de desenvolvimento adoptada e a adoptar para esta região. O vasto património edificado, no subsolo, material (os comeres, os beberes, os trajes), e imaterial (aquele que faz parte da estrutura identitária das população: o sentimento de pertença, os valores, as tradições, as crenças), são pontos fortes a favor do desenvolvimento sustentado desta região.

Passamos agora à análise de uma sub-região deste espaço, o Baixo Vouga.

3. Um caso de estudo: o Baixo Vouga

3.1 Caracterização do território analisado: conhecer para valorizar

O Baixo Vouga corresponde a um território ligeiramente triangular que, desde Ovar se estende ao longo da costa atlântica até Vagos atingindo o seu vértice interior na região de Sever do Vouga. A esta área é conferida uma certa identidade pela presença de uma das maiores bacias hidrográficas deste região: a do Vouga, mais concretamente o curso inferior deste rio. De importância fundamental neste caso é o peculiar acidente físico que tem a sua expressão máxima em Aveiro (que lhe dá o nome), e que se denomina Ria de Aveiro. Trata-se de um sistema intrincado de canais de água, com 45 km de extensão, de vários afluentes subsidiários do rio Vouga que também aqui vai desaguar, que entram em contacto com o mar.

O Baixo Vouga é constituído por 12 municípios: Águeda, Albergaria-a-Velha, Anadia, Aveiro, Estarreja, Ílhavo, Mealhada, Murtosa, Oliveira do Bairro, Ovar, Sever do Vouga e Vagos. Podemos apresentar muito sumariamente estes concelhos para depois incidirmos a nossa análise na área sub-regional escolhida.
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Águeda possui 20 freguesias no seu concelho, ocupando 333,5 km2 de área ocupados, em 2001, por 49016 habitantes (CCRC, 2001: 92).

Águeda é um concelho marcado por uma industrialização difusa e uma ocupação urbana também algo difusa. O sector secundário dá o mote ao desenvolvimento económico local, com particular incidência para a indústria metalomecânica (54, 7%), mas com os sectores da cerâmica e dos têxteis a possuir algum peso relativo. É conhecida como a capital da "indústria das duas rodas" (fabrico de veículos de duas rodas motorizados e não motorizados).

Em termos culturais, deveria aproveitar a mais valia oferecida pela tradição na "indústria das duas rodas", revitalizando espaços industriais que não cumpram mais essa função e/ou promovendo acções específicas de reabilitação dessa actividade.

O concelho de Águeda convive com o binómio da urbanidade/ruralidade dentro do seu território, devendo potenciar os espaços de baixa densidade. O recurso ao seu património edificado, a criação de circuitos turísticos que visem conhecer o seu património milenar pode ser uma boa opção, já que muitos dos sítios arqueológicos identificados se encontram em áreas periféricas. O expoente máximo de testemunho de ocupação humana no passado é, em termos arqueológicos, o sítio do Cabeço do Vouga.

Este espaço com ocupação proto-histórica, romana e medieval, tem sido apontado como possível localização da civitas de Talabriga, referida nas fontes clássicas. No entanto, hoje aponta-se como mais provável que este sítio correspondesse a um vicus (aglomerado urbano secundário) importante ao longo da via Olisipo-Bracara, controlando um importante ponto de passagem do Vouga e do MarneI.

Na Idade Média uma comunidade terá tentado estabelecer-se neste local, aparecendo na documentação como civitas MarneI. Águeda aparece ainda num itinerário do período islâmico (o texto refere a alcaria de Águeda). Terá sido a sua localização geográfica, a sua excelente posição entre vários eixos de comunicação que potenciaram a fixação humana neste local desde, pelo menos, o período romano. O Cabeço do Vouga parece-nos ser aquele que melhores condições oferece em termos de musealização e integração num circuito turístico, integrando este pedaço do passado colectivo num percurso de exploração da natureza, por exemplo.

Albergaria-a-Velha ocupa 156 km2 de área, onde se distribuem 8 freguesias habitadas por 24612 pessoas. Este concelho tem uma forte vertente industrial, essencialmente pela presença de indústrias ligadas à metalomecânica e à fundição, às confecções e à transformação de madeiras. O sector terciário encontra-se em expansão neste concelho onde o sector primário quase não tem expressão (CCRC, 2001: 96).

Albergaria possui vários imóveis classificados pelo IPPAR, nomeadamente a mamoa de Açores que atesta a ocupação humana nesta zona desde o IV milénio a.C.

Falar de património arqueológico no concelho de Albergaria-a-Velha é falar incontornavelmente da estação arqueológica do Cristelo da Branca, e da sua correspondência ou não com a cidade romana de Talabriga, sede da gestão territorial de um longo espaço entre o Douro e o Vouga em período pré-romano e Romano altoimperial.

Também neste concelho existem ainda outros testemunhos da ocupação humana no passado, nomeadamente: as mamo as do Taco 1, 2 e 3 e a anta de Arrotas / 140 / referidas em trabalho de Leite de Vasconcelos sobre Albergaria (1912); o monte de S. Julião que corresponderá a um povoado proto-histórico rodeado por um amuralhamento, cuja cronologia aferida pelo espólio, se poderá situar no Bronze Pleno / Bronze Final (c.1400/800 a. C.). Neste local foi ainda assinalada a presença de um monumento megalítico de cronologia anterior.

Infelizmente, os sítios arqueológicos reconhecidos e inventariados não se encontram actualmente em condições que permitam a criação de um circuito visitável.

Importante seria identificar e escavar, segundo metodologia arqueológica própria (WELLER, 2002), as salinas de Alquerubim referidas em documentação medieval (sec. XI)153. Estas poderiam depois ser integradas depois num circuito turístico mais vasto, transmunicipal, que tivesse por mote o conhecimento da evolução da exploração do sal ao longo dos tempos históricos. Da mesma forma poderíamos aproveitar a presença destas salinas para mostrar a fragilidade da linha de costa e a interacção provocada até à estabilização da abertura para o mar deste sistema lagunar.

Anadia tem a seu favor a posição geográfica, entre Aveiro e Coimbra, próxima de eixos ferro e rodoviários fundamentais. Mercê destas condições, possui neste momento um tecido industrial diversificado, assumindo-se como importante centro industrial e de serviços. Tem por actividade tradicional a vitícola, uma vez que se encontra na Região Demarcada da Bairrada. Estas actividades são praticadas entre as 15 freguesias que este concelho enquadra, em 217,1 km2 de área. Possuía em 2001 31574 habitantes (CCRC, 2001: 100).

A notícia de testemunhos do passado é algo difusa e fortuita, o que condiciona neste momento a adopção de uma política de gestão deste património e sua integração em acções mais vastas, com repercussões positivas no desenvolvimento deste território.

Aveiro é um concelho que muito deve às riquezas naturais da Ria; a pesca e a extracção do sal constituíram durante séculos as suas actividades económicas de excelência. Ao mesmo tempo foi-se desenvolvendo a indústria. A Ria de Aveiro constituiu, até ao advento dos caminhos-de-ferro, uma autêntica auto-estrada de mercadorias, pessoas, ideias e valores.

Actualmente a dependência da ria vai-se diluindo cada vez mais. A implantação da Universidade nesta cidade foi importantíssima, compensando a depressão verificada nos sectores tradicionais de actividade. Esta tomou-se receptora de novos postos de trabalho, criou novos consumos e forma recursos humanos cada vez mais qualificados. A própria cidade soube evoluir e dinamizar o sector terciário tomando-se num grande centro prestador de serviços na Região Centro. Tudo isto se desenvolve em 199,8 km2 de área, onde habitam 73136 residentes (CCRC, 2001: 104).

Em termos culturais e patrimoniais, este concelho será alvo de uma análise mais pormenorizada no sub capítulo seguinte.
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Estarreja é um concelho com 108,1 km2 de área, 7 freguesias e registo de 28217 habitantes em 2001 (CCRC, 2001: 108). É um importante centro industrial, cujo desenvolvimento se deve essencialmente à sua posição geográfica, acessibilidade e concentração demo gráfica. A proximidade de Aveiro é fundamental na bolsa de emprego de Estarreja.

O Instituto Português de Património Arquitectónico classificou até ao momento quatro edifícios dos quais de destaca a casa-museu de Egas Moniz e sua propriedade. Em termos arqueológicos só de detectaram achados dispersos, embora esta zona fizesse parte do longo território estruturado pela via romana que, de Braga descia até Lisboa, em tempos romanos. Este eixo de comunicação continuou activo pelos períodos históricos sequentes e ainda hoje é sobre ele que parcialmente se estrutura um eixo rodoviário fundamental (EN1), e parte da linha ferroviária do Norte.

No território hoje pertencente ao concelho de Estarreja existiu uma das paróquias suevo-visigóticas do nosso território (séc. V/VII): a paróquia de Antuanne, pertencente à diocese de Conimbria e seu limite norte. A sua localização exacta carece de comprovação arqueológica, mas em nosso entender, poderá localizar-se numa pequena povoação cujo topónimo é precisamente Antuã, no sopé da Senhora do Monte, às portas da cidade de Estarreja. A comprovar-se esta localização seria de uma enorme mais valia para a criação de uma estratégia de desenvolvimento voltada para a valorização do património arqueológico-cultural deste concelho.

O concelho de Ílhavo possui só 4 freguesias, ocupa 75,1 km2 e 37103 habitantes (CCRC, 2001: 112). Caracterizar este concelho é falar da sua tradição marítima, tanto na pesca costeira como na lida do mar, especialmente a pesca do bacalhau. Actualmente o seu tecido produtivo assenta nos sectores secundário e terciário, com especial referência para o turismo de sol e mar que este concelho "vende" a cada época balnear. É de destacar as indústrias ligadas ao sector da cerâmica, especialmente a Vista Alegre, e a produção de maquinaria.

Também este concelho integrará a análise mais pormenorizada realizada no próximo ponto desta reflexão.

A norte de Coimbra, atravessado pelo IP1, o concelho da Mealhada, com 8 freguesias, ocupando 111,1 km2 habitados por 20763 pessoas (CCRC, 2001: 116). É na qualidade dos seus produtos tradicionais, aliado à riqueza da sua gastronomia que este concelho possui os seus maiores trunfos. É reconhecido o seu vinho bem como o leitão à moda da Bairrada. A este sector junta-se, em termos de dinamização económica, as indústrias ligadas ao sector da alimentação e bebidas e dos minerais não metálicos.

Território simultaneamente urbano e rural, o concelho da Mealhada possui os vestígios de um dos primeiros mosteiros do nosso território, anterior à nacionalidade (que, em conjunto com o mosteiro do Lorvão possuía a maior parte das propriedades localizadas entre o Douro e o Tejo): o mosteiro da Vacariça. Infelizmente, este património não tem sido alvo do devido interesse pelas entidades locais e não se encontra devidamente estudado nem preservado. Desta forma, inviabiliza-se o devido e merecido, retorno, quer às populações locais, quer ao transeunte que venha descobrir e usufruir das riquezas naturais e paisagísticas que o concelho possui. Neste concelho detecta-se ainda a presença de quatro estações ao ar livre (Pré-história) – Ferraria, / 142 / Fonte Fria 1 e 2 e Lajes/Ventosa do Bairro; um povoado no Alto da Ventosa, e, do período romano, dois marcos mi1iários (Leira Grande e Mea1hada), que testemunham a passagem da via romana de ligação entre Lisboa e Braga, uma villa, um santuário e um vicus (villa romana da Vimieira – cidade das Areias, Casal Comba e Igreja Velha respectivamente). No entanto este vasto património, que testemunha uma ampla diacronia de ocupação deste espaço, não se encontra escavado sistematicamente, o que impossibilita a sua usufruição.

A Mealhada detém ainda todo um conjunto paisagístico e construído de grande qualidade, verdadeiro símbolo de referência para toda a região: o Hotel Palace do Buçaco, sua mata envolvente, bem como todas as capelas e ermidas que nela se mantém, em conjunto com o Convento de Santa Cruz do Buçaco (conjunto monumental classificado pelo IPPAR). Este complexo de excelência é um verdadeiro ex-libris da região.

O concelho da Murtosa vive essencialmente do turismo balnear e das paisagens oferecidas pela Ria de Aveiro. Em 73,7 km2 e com registo de 9391 habitantes em 2001, distribuem-se 4 freguesias (CCRC, 2001: 120) cuja história se confunde com as histórias ligadas aos pescadores e à pesca, ao mar e à Ria. Logicamente, a actividade industrial deste concelho está intimamente ligado ao que ficou exposto, nomeadamente pela presença de indústrias conserveiras e de transformação de produtos agrícolas.

Oliveira do Bairro é um concelho que, tal como a Mealhada e Anadia, se encontra inserido na Região demarcada dos vinhos da Bairrada, daí que a base económica do concelho assente na cultura da vinha e na produção e distribuição do vinho. Os sectores de actividade secundário e terciário têm vindo a tomar terreno, até então principalmente primário, mais concretamente a agricultura. A economia concelhia cada vez se encontra mais integrada no contexto do eixo urbano – industrial Aveiro – Águeda. Este concelho tem 6 freguesias, 21216 habitantes e ocupa 87,3 km2 da superficie nacional (CCRC, 2001: 124).

Segundo a base de dados do Instituto Português de Arqueologia, em termos de património arqueológico possui um povoado fortificado proto-histórico (Bustos), um concheiro (tipo de povoamento típico do Mesolítico) e duas estações ao ar livre (oficinas de talhe) no rio Levira (Levira II, Levira I e III, respectivamente).

A riqueza em recursos naturais e uma localização favorável contribuíram para a fixação das populações no concelho de Ovar. Se até ao século XVIII a pesca assumiu papel preponderante na vida económica destas populações, depois do fecho do cordão litoral e da estabilização da barra de entrada entre mar e ria, mais a sul, a indústria veio substituir o seu perfil económico. Assume ainda importância o turismo balnear e a indústria extractiva de minerais não metálicos de apoio à produção cerâmica (é numa das suas freguesias – S. Vicente de Pereira – que se situam as primeiras explorações de caulino para o fabrico de porcelana pela Fábrica de Porcelanas da Vista Alegre). Ovar possui 8 freguesias, ocupa 149,9 km2 de área onde habitam 55178 pessoas (CCRC, 2001: 129).

Entre o litoral e a serra situa-se Sever do Vouga, detentor de um vasto património natural e edificado. Neste concelho, de 9 freguesias, com 129,9 km2 de área / 143 / e registo de 13183 habitantes (CCRC, 2001: 132), tem-se tentado construir um percurso de desenvolvimento sólido e sustentado. Neste sentido, a actividade industrial tem crescido ligeiramente, enquadrada urbanisticamente em parques industriais, e apoiada pela excelente rede rodoviária de suporte ao escoamento dos produtos aqui produzidos (nomeadamente o IP1 e o IP5). Os recursos paisagísticos deste concelho fazem com que a aposta no sector turístico seja uma forte realidade, procurando para isso reabilitar espaços edificados a necessitar de recuperação e criando facilidades para uma boa fruição do contacto com a natureza.

O concelho de Sever do Vouga é particularmente rico em termos de património arqueológico, nomeadamente numa série de monumentos megalíticos já classificados (Dólmen da Arca da Cerqueira, Dólmen da Casa da Moura, Monumento megalítico de Chão Redondo 1 e 2, Monumentos megalíticos do Souto do Coval, Anta da Pedra da Moura) e por classificar.

Para além deste vasto conjunto do período Neolítico, um conjunto de enigmáticas pinturas e gravuras ao longo do rio Vouga (até ao momento a simbologia dos motivos não foi ainda decifrada), encontramos ainda alguns troços de vias de traçado romano (dos quais só a que se encontra no lugar de Ereira está classificado) que certamente estruturariam uma rede de povoamento mais complexa do que aquela conhecida até ao momento.

Acrescente-se ainda um conjunto de povoados de altura da Proto-História, e vários indícios de ocupação humana no período romano. Parece-nos que este concelho possui o conjunto arqueológico mais coerente de todo o Baixo Vouga, passível de integração num circuito mais vasto de exploração e descoberta da natureza por novos "públicos", motivados e interessados por este tipo de turismo de qualidade – o turismo que conjuga a vertente patrimonial com a redescoberta de espaços naturais de excelência.

Por fim, o concelho de Vagos, com 11 freguesias, 165,6 km2 de área e 22045 habitantes (CCRC, 2001: 136), continua a ter na agricultura e pecuária as suas principais actividades económicas. As actividades do sector secundário são maioritariamente relacionadas com a actividade cerâmica (fábricas de porcelana, faiança, grés, olaria e extracção de barro). O turismo balnear tem também algum peso relativo na economia concelhia com uma forte aposta no turista que compra "sol, areia e mar". O apoio a práticas tradicionais de pesca – arte xávega –, aproveitadas turisticamente, traz um afluxo de pessoas a estas praias no Verão. Nem sempre a realidade urbana foi bem gerida nestes espaços junto ao cordão litoral (por exemplo a praia da Vagueira), embora noutros casos ainda se respeitem as suas características peculiares (praia do Areão).

Em termos de património arqueológico, a falta de estudos de carácter regional aliada a uma área costeira só recentemente ocupada pelo Homem, condicionam um insuficiente conhecimento neste domínio. Há no entanto a referir a existência das "paredes da Torre", junto à ermida de N. Sr.ª de Vagos (CARVALHAIS, 2000), que corresponderá, muito provavelmente, a um farol de sinalização da linha de costa (séc. XI?). No centro de Vagos identificaram-se também vestígios de ocupação do período romano (entretanto destruídos), bem como junto ao cemitério de Sosa.
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3.2 O eixo Aveiro – Ílhavo: actividades provenientes de um saber acumulado

Depois de conhecermos sumariamente os concelhos que integram o Baixo Vouga, vamos agora incidir a nossa análise sobre uma subunidade específica deste território, definida pelos concelhos de Aveiro e Ílhavo. A contiguidade geográfica destes dois espaços, aliada a uma "promiscuidade" nas actividades de exploração dos recursos existentes, faz desta área uma realidade coerente de gestão do espaço, consegui da pelas complementaridades e solidariedades praticadas entre os diferentes agentes e actores económicos.

Do ponto de vista da valorização do património, poderão surgir interacções entre os diversos agentes, que potenciem os recursos existentes e permitam desenvolver, de uma forma sustentada, as economias locais.

Aveiro é cidade, sede de distrito e concelho com o mesmo nome. É constituído por 14 freguesias 154. É totalmente dominada pela Ria de Aveiro, segundo Orlando Ribeiro "uma laguna fechada por uma restinga colmatada pelos aluviões do delta interior do Vouga. Os canais e os braços insinuam-se por uma terra rasa, banhada em humidade, retalhada de campos de milho e prados verdejantes, único sítio onde o mar domina toda a vida económica" (Ribeiro, 1986: 125).

Quanto ao património arqueológico neste concelho, as marcas das mais antigas manifestações da ocupação humana pertencem ao megalitismo, ou seja, ao IV/III milénio a.C., actualmente atestadas pelas marcas deixadas na toponímia (mama, mamarrosa, pedras da moura), ou mesmo pelos vestígios de um destes monumentos funerários de antanho (povoação de Mamodeiro). Da Idade do Bronze não se conhecia até há pouco tempo nenhum vestígio arqueológico. No entanto, recentemente uma equipa pluridisciplinar identificou em terrenos do campus universitário de Santiago (Universidade de Aveiro) vestígios de cerâmicas e objectos líticos que se enquadram tipologicamente neste período, a uma cota de 12 metros. As suspeitas motivadas pelo topónimo do local – Agra do Castro –, levavam a que, já desde a década de 40 do século passado, alguns autores155 sugerissem uma ocupação humana para este espaço. Só agora surge a comprovação arqueológica.

Quanto à estação arqueológica de Cacia (lugar da Torre), o que subsiste é claramente romano (Alarcão, 1988). Este sítio arqueológico poderá corresponder a uma vil/a (unidade de exploração semelhante a um monte alentejano) portuária, ou mesmo a um vicus, com indubitáveis relações com a linha de costa de então e as relações fluviais e marítimas que se estabeleceriam neste período. Tem vestígios arqueológicos que atestam a continuidade de ocupação deste local para além do período romano, nomeadamente durante a Antiguidade tardia (cerâmicas e moedas).
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Durante o período romano e medieval as pequenas explorações, do tipo casal estariam localizadas em sítios excelentes para a prática agrícola. Alguns destes sítios possuiriam fomos de fabrico de cerâmica e material de construção (fomos de Eixo I e II), conjugando assim a facilidade de obtenção de matéria-prima, os conhecimentos técnicos necessários e as facilidades de escoamento destes produtos pela vasta rede de canais navegáveis existente.
Perspectiva de uma marinha de sal em laboração. Clicar para ampliar.

Zona de altitudes muito baixas, é nos pontos mais altos que se posicionam os campos de cultivo e as povoações, com habitações concentradas (ex. Aveiro e Ílhavo), ou simplesmente habitações dispersas em pequenos casais (generalidade da estrutura habitacional das várias freguesias do concelho de Aveiro).

Na zona mais baixa, estes espaços são ainda pontuados pela exploração de uma verdadeira riqueza regional: o sal.

Perspectiva de uma marinha de sal em laboração.

Os montículos brancos do salgado marcaram durante séculos o trabalho de uma parcela da população aveirense, determinando a paisagem com inúmeras salinas, servidas por uma densa e eficiente rede de canais.

Do sal aveirense há inúmeras referências documentais, muitas delas contidas numa colectânea documental editada pela Câmara Municipal (MADAHIL, 1959) e referências da Prof' Virgínia Rau e de Charles Lepierre (RAU, 1951; LEPIERRE, 1936), os quais se reportam também à pesca, ao pescado e aos pescadores e, mais modernamente, àquela que foi uma dinâmica actividade cerâmica (Almeida, 2001: 6-7).
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O concelho de Ílhavo é constituído por 4 freguesias 156, das quais três se encontram em áreas só recentemente ocupadas pelo homem, dada a sua formação geomorfológica recente. A sua confrontação com o oceano Atlântico, a poente, constitui a sua melhor mais-valia. É no mar e na ria que a história das suas gentes se alicerça157, estando com eles confundida. É também a Ria e o Oceano que nos legam os mais antigos testemunhos arqueológicos identificados até ao momento (sécs. XIV/XV): os vários barcos navios identificados (locais identificados por "Aveiro A" a "Aveiro F"). Decorrem actualmente projectos de investigação orientados no sentido de "mapear" o subsolo aquático, e, posteriormente musealizar.

Processo tradicional de obtenção de sal, numa das poucas salinas ainda activa de Aveiro. Clicar para ampliar.

Processo tradicional de obtenção de sal, numa das poucas salinas ainda activa de Aveiro.

Ílhavo possui um Museu referência no âmbito do património marítimo a que se junta desde há pouco tempo o Navio-Museu Santo André onde podemos experenciar a vida quotidiana num barco de pesca de bacalhau.

A pesca, tanto a longínqua como a costeira, constitui uma das actividades tradicionais de excelência desta zona (MARQUES e LOPES, 1996). Foi deste pedaço de costa que, no século XV, os primeiros navegadores fUmaram ao norte, descobrindo a Gronelândia e a Terra Nova, bem como a espécie piscícola proveniente destas águas que se iria transformar num símbolo nacional: o bacalhau.

A "faina maior" cedo se tomou imagem de referência da actividade desenvolvida pelos homens das terras de Ílhavo, sendo raro (até à crise de finais da / 147 / década de 1980 do século passado) existir uma família neste concelho sem ligações à pesca do bacalhau. As viagens pautavam o ritmo de toda a população: os nascimentos, os baptizados, os casamentos...

Em terra ficavam as mulheres que se dedicavam, indirectamente, ao mesmo ramo de actividade: a seca tradicional do bacalhau para posterior comercialização (a par da agricultura, "trabalhar na seca" era mesmo a profissão mais comum para as mulheres).

A par desta importante actividade, surge outra não menos importante: a construção naval.
 
Local de secagem tradicional do bacalhau, localmente designado por "seca". Clicar para ampliar.

Dada a sua localização, local de excelência de contacto com a água, desde sempre se deve ter desenvolvido esta actividade. Mesmo sem vestígios arqueológicos que o confirme, é muito provável que os vários povos que pelo aportaram ao nosso território (Fenícios, Romanos, Árabes), por cá tenham tido os seus portos e respectivos estaleiros. Será no entanto, com o séc XV, com o advento da pesca longínqua, que se instalaram e desenvolveram os estaleiros de construção naval. Destes saíram belos navios como os Lugres, os Patachos ou as Escunas. Não se pode falar desta arte sem referir o Mestre Mónica, com os seus estaleiros em Ílhavo e Gafanha da Nazaré.

Local de secagem tradicional do bacalhau, localmente designado por "seca".

Actualmente ainda resistem alguns estaleiros, tanto os artesanais, que se dedicam principalmente à construção das embarcações da ria – o quase mítico barco moliceiro (até ao momento única embarcação tradicional do país com interesse histórico reconhecido e protegido), os barcos mercantéis (transportavam o peixe dos barcos de pesca costeira para o mercado do peixe no centro da cidade), os barcos / 148 / saleiros, de transporte do sal, os batéis, a barca "ílhava" –, como os industriais. Ainda é possível encontrar bons executantes desta arte manual, com a sabedoria herdada dos antigos mestres, mas que já não se encontram em actividade por falta de trabalho. Excepção recente, verificou-se na (excelente) recuperação da fragata D. Fernando II e Glória, realizada em estaleiros da Gafanha da Nazaré.

Depois desta curta apresentação, parece ficar comprovada a contiguidade não só física mas sócio-cultural e económica que existe entre estes dois concelhos. Mais do que definir uma estratégia (a tal não nos atreveríamos) que vise o desenvolvimento desta micro-região, parece-nos ser possível apontar medidas de acção que complementem as mais gerais indicadas no Plano de Desenvolvimento Regional, visando potenciar os seus pontos fortes e diluir os fracos. Uma das mais fortes oportunidades de desenvolvimento deste espaço está em "valorizar as promessas (recursos hídricos, turismo, amenidades)" (MINISTÉRIO DO PLANEAMENTO, 2001: I-178). Segundo este "a cultura abrange transversalmente a generalidade dos sectores da actividade económica e constitui um denominador comum às políticas sectoriais e regionais" (MINISTÉRIO DO PLANEAMENTO, 2001: V -36), pelo que o
crescimento deste sector contribuirá decisivamente para um desenvolvimento sustentado deste espaço territorial. Para tal é necessário partir do pressuposto fundamental que um território é mais do que um mero espaço físico que obedece a fronteiras artificias, mas antes um produto histórico-cultural com capacidade de fomentar desenvolvimento a partir dos seus recursos endógenos. A relação estabelecida com o território faz emergir um novo modelo económico: o do desenvolvimento local (VASQUEZ-BARQUERO, 2002).

Assumimos um território, conhecemos-lhe as características, o que o individualiza dos demais. Estes espaços só concretizam fisicamente se existir uma intensa rede de relações, um forte sentimento de pertença das comunidades locais. Ora tal existe neste caso; esta área ribeirinha possui uma herança cultural constituída pelos seus trajes, suas crenças, seu linguajar peculiar, suas actividades tradicionais de que muito se orgulha e pretende manter158. É necessário agora mostrar como podemos criar acções mobilizadoras que potenciem estes factores.

Esta área possui três cidades (Aveiro, Ílhavo e Gafanha da Nazaré), duas das quais sede de concelhos. Sendo as cidades espaços por excelência de desenvolvimento e articulação dos espaços que envolvem, existe desta forma um óptimo ponto de partida.

O património arqueológico não apresenta uma coerência passível de se transformar em factor de desenvolvimento per si. A falta de projectos de estudo sistemáticos nesta área muito tem condicionado a evolução do conhecimento da ocupação humana neste espaço. Seria interessante conduzir um projecto
pluridisciplinar de estudo da evolução da linha de costa, onde se confrontassem, pelo menos, os documentos medievos, a arqueologia e a geologia.
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Pelo contrário, o conjunto de actividades económicas de cariz tradicional que enumeramos apresentam uma coerência tal que podemos entendê-las como pertencentes a um potencial circuito. Permitir a continuidade destas actividades e integrá-las num percurso turístico de qualidade poderia não só desenvolver os sectores que normalmente andam "a reboque" do turismo (restauração e hotelaria), como também, e fundamentalmente, fomentar a formação de recursos humanos voltados para estas tarefas especializadas (e a absorção da existente actualmente a trabalhar em áreas que não têm directamente a ver com as competências que possuem), permitir a continuidade de empresas dedicadas a estas actividades tradicionais, mediante apoios específicos neste sentido.

A partir da paisagem única e singular desta zona lagunar de Aveiro, os turistas poderiam ser transportados, à semelhança do que já acontece durante o Verão, em moliceiros pelos canais, fazendo uma primeira paragem no Ecomuseu da Troncalhada, uma salina da Câmara Municipal de Aveiro adaptada a esta função. Aqui pode-se tomar conhecimento da tradição local da extracção do sal e da sua metodologia. Os marnotos e as salineiras poderiam estar a trabalhar in loco, mostrando não só o processo físico de produção, mas revelando ainda tudo aquilo que não é fisico: o traje, a gíria, os hábitos alimentares, ...

Continuando a viagem, o segundo ponto de paragem seria junto dos cais dos barcos de pesca longínqua. Aqui encontram-se os estaleiros de construção naval, as empresas de pesca, as "secas" de bacalhau (algumas ainda praticam a seca do peixe ao ar livre, com dezenas de mulheres a realizar esta tarefa), os barcos de pesca atracados à espera de nova viagem, ...

Barcos moliceiros de transporte de turistas na Ria de Aveiro. Clicar para ampliar.

Barcos moliceiros de transporte de turistas na Ria de Aveiro.

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Perspectiva do Ecomuseu da Troncalhada, com sal à entrada, produzido localmente.

 

Perspectiva do cais de pesca longínqua do Porto de Aveiro, localizado na Gafanha da Nazaré.

 

A visita continuaria em direcção ao forte da Barra, onde se encontra o navio museu Santo André, um antigo bacalhoeiro adaptado a estas novas funções.
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Depois de conhecer por dentro as condições de uma pequena comunidade de homens que se dedica à pesca do "fiel amigo", a visita continuaria até à saída da Barra159, contacto entre o oceano e a Ria.
 
  Navio museu Santo André (antigo barco bacalhoeiro). Clicar para ampliar.   ocalização do Navio museu Santo André (Forte da Barra). Clicar para ampliar.  
  Navio museu Santo André (antigo barco bacalhoeiro)   Localização do Navio museu Santo André (Forte da Barra)  

As diversas ilhas que existem entre os canais poderiam ser aproveitadas no sentido de aí se estabelecerem pontos de apoio a este circuito. A zona do forte da Barra encontra-se neste momento muito subaproveitada. Neste espaço poderiam nascer estruturas ligadas à hotelaria e à restauração, que tirassem partido da paisagem ímpar que se desfruta a partir do Castelo da Gafanha (um dos poucos monumentos classificados pelo IPPAR no concelho de Ílhavo), com a localidade da Praia da Barra em frente, no pequeno cordão de areias que separa o sistema lagunar do oceano.

Um circuito integrado, que englobe o conhecimento de bens e saberes tradicionais que existem nos dois concelhos, não está ainda implementado.

A Ria de Aveiro é uma autêntica certidão de nascimento desta comunidade. Um percurso com estas características seria necessariamente acompanhado pela observação de uma fauna e flora únicas, conjugando-se assim o turismo de descoberta da natureza com a vertente patrimonial dos sítios a visitar.
a conhecimento deste espaço só estaria concluído com um percurso terrestre pelos núcleos urbanos, com a visita, em Ílhavo ao Museu Marítimo e Regional, e, em Aveiro, ao desenvolvimento da cidade respeitando e mantendo os seus canais. Paralelamente, poderiam existir percursos alternativos, mais voltados para a permanência de bolsas de rural idade nesta faixa de terreno tão densamente (e desordenadamente) urbanizada.

Por fim, a valorização do património gastronómico.

Este circuito levaria certamente à descoberta de outros bens patrimoniais, como o lugar da Vista Alegre, em Ílhavo, com a sua quase bicentenária fábrica de vidros (nas suas primeiras décadas de laboração) e porcelana e o seu característico / 152 / bairro social; as fachadas ao estilo Arte Nova em Aveiro e Ílhavo; o "museu vivo de arquitectura" que a Universidade constitui; movimentando e dinamizando desta forma amplos sectores da economia regional.

Parece-nos que esta hipótese é exequível, desde que para isso os diversos actores e instituições, públicas e privadas, cheguem a uma concertação.

A região possui os recursos para trilhar um caminho de desenvolvimento sustentado: é auxiliada por uma boa rede de infra-estruturas rodoviárias (EN1, IP5 e A1), ferroviária (Linha do Norte), portuária fluvial e marítima e mesmo o aeródromo de São Jacinto que embora militar, está aberto ao tráfego civil. Falta talvez melhorar a rede rodoviária de apoio, de carácter intermunicipal. Possui também mão-de-obra especializada subaproveitada que poderia ser canalizada para estas actividades. A Universidade possui o domínio de vastas áreas do saber necessárias à execução desta estratégia: lecciona cursos como Biologia e Geologia, Economia, Novas Tecnologias de Comunicação, Engenharia do Ambiente e do Planeamento, entre outras, que poderão contribuir para a realização de diversas actividades voltadas para a usufruição da comunidade.

Existem as acessibilidades base. É necessário saber como ir para além delas.

Uma vez que "todo o diagnóstico é já uma estratégia", parece ter ficado exposto aqui pelo menos uma boa caracterização das potencialidades da região estudada. Através de uma dinâmica de trocas entre espaços físicos e actividades culturais destinadas a um público-alvo poderemos ir construindo, pouco a pouco, uma nova forma de explorar o território, desenvolvendo-o de um forma coerente e sustentada.

Todo este processo estará condenado à nascença se a comunidade não tiver em relação a este território um sentimento de posse, de pertença, se não se envolver e acreditar nas políticas seguidas. A auscultação da população é fundamental em qualquer medida desta dimensão. Parece-nos, mais uma vez, que, neste caso esta questão dificilmente se porá.

4. Reflexões finais

O objectivo deste estudo era reconhecer as potencialidades de um espaço concreto – o Baixo Vouga, mais concretamente o (sub)eixo Aveiro-Ílhavo –, e procurar estabelecer alguma metodologia de acção que possibilitasse o seu desenvolvimento sustentado a partir de uma base patrimonial. Parece-nos que o primeiro ponto foi conseguido.

A Região Centro detém, mercê da sua posição geográfica condições de desenvolvimento excelentes, no contexto do nosso território nacional.

Alicerçada num sistema urbano polinucleado, com oito cidades de dimensão média e sistemas urbanos que se articulam entre si, formando eixos de desenvolvimento, esta Região pode potenciar os seus recursos (naturais, patrimoniais, humanos), de forma a conseguir trilhar um caminho de desenvolvimento económico a partir de um modelo de desenvolvimento local. Desta forma, poderá tirar partido da diversidade que encerra em si.
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Os dez concelhos que constituem o Baixo Vouga possuem características próprias que permitem reconhecer uma grande diversidade de "paisagens culturais". De entre os seus recursos emerge o potencial cultural, na sua vertente do património (nomeadamente o arqueológico). O concelho de Sever do Vouga parece ser o que melhor pode dinamizar o seu património arqueológico, pela coerência que este conjunto possui. Neste concelho a dinamização da fruição dos espaços arqueológicos representa uma aposta segura no âmbito de uma política de desenvolvimento local.

De entre o Baixo Vouga elegemos um pequeno território, articulado pelas cidades de Aveiro e Ílhavo.

Não nos parece ser possível desenvolver uma estratégia estruturada a partir unicamente do património arqueológico até agora identificado neste território. Pelo contrário, neste espaço coexistem uma série de actividades tradicionais, fruto de um saber acumulado, que, articulados entre si, podem constituir factores de desenvolvimento endógeno. A extracção do sal, a pesca, a construção naval, constituem verdadeira herança cultural, definindo a estrutura identitária das populações que ocupam. Isto com tudo o que de material e imaterial lhe corresponde.

Dependerá do envolvimento de todos os actores e agentes económicos estruturar e tomar viável a prossecução de uma estratégia dirigida para a dinamização deste património. A componente cultural, pela transversalidade que a caracteriza, poderá ser verdadeiro factor de desenvolvimento, neste ou noutros espaços territoriais. Basta para isso uma conjugação de vontades e a assunção desta política pela comunidade local. Se estas medidas não forem sentidas, aceites e vividas pelas pessoas destes espaços, estas políticas dificilmente terão bons resultados. As políticas/medidas devem ser assimiladas pelos agentes locais, complementadas por iniciativas de carácter local. São os sentimentos de pertença que permitem identificar um território e desenvolvê-lo.

O território de Aveiro / Ílhavo apresenta os recursos para que se possam desenvolver estratégias que conduzam a um desenvolvimento sustentado.

Importa fazer do passado deste território um passaporte para um futuro sustentado.

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NOTAS:

(150) – Arqueóloga, mestranda em Arqueologia Regional na FLUC.

(151) –  "O Centro corresponde, de algum modo, à antiga província da Beira ou das Beiras, que tem a sua primeira delimitação como comarca no século XIII, confinando-se a um território interior, entre Douro e Tejo, que ia da fronteira até sensivelmente ao meridiano de Viseu. Desde então a Beira "cresceu" na direcção do Litoral" (GASPAR, 1993: 65).

(152) – Falamos de 5 sistemas urbanos: 1. Coimbra – Figueira da Foz; 2. Aveiro – Ílhavo – Águeda – Oliveira do Bairro; Leiria – Marinha Grande; 4. Dão – Latões, com centro em Viseu; 5. Guarda – Covilhã – Fundão Castelo Branco.

(153) – "Já o inventário das propriedades e igrejas de Guimarãis, de 1059, regista a vil/a alcaroubim integra et cum sua prestancia te cum suas salinas, remetendo para o célebre testamento da riquíssima Mumadona (Dias), de 959, que incluía "in território Colimbrie villa de alcaroubim.." (...) Alquerubim e S. João de Loure ficavam á vista do oceano e era possível a existência da marinhas nesses lugares, muito distantes hoje da linha de maré" (MADAHIL, 1938: 72)

(154) – As freguesias do concelho de Aveiro são: Aradas, Cacia, Eira!, Eixo, Esgueira, Nariz, Nossa Senhora de Fátima, Nossa Senhora da Glória, Oliveirinha do Vouga, Requeixo, Santa Joana, São Bernardo, São Jacinto e Vera Cruz.

(155) – Alberto Souto, em 1942, escrevendo sobre os Castros que experimentaram romanização refere que "havendo entre eles alguns como (...) Verdemilho de Aveiro, que não oferecem qualquer documento ou vestígio de habitação e cultura e que apenas se identificam pela persistência do topónimo nos respectivos locais..." (SOUTO, 1942: 14). Também António Manuel Silva elenca o castro entre as estações castrejas entre o Douro e o Vouga (SILVA, 1994).

(156) – São elas: S. Salvador (Ílhavo), Gafanha da Nazaré, Gafanha da Encarnação e Gafanha do Carmo.

(157) – "Ílhavo, heróico poema / Escrito em sangue no mar! (...) – Canção de Ílhavo, autoria de Guilhermino Ramalheira.

(158) – Ver a este propósito as excelentes obras de carácter monográfico e regional: sobre Aveiro, Cultura Popular em terras de Aveiro, de António Capão; relativo a Ílhavo a obra de Diniz Gomes, reeditada recentemente pela Câmara Municipal, Costumes e Gentes de Ílhavo e, do Padre João Vieira Resende A monografia da Gafanha.

(159) – Esta barra foi aberta e estabilizada artificialmente em 1808. Até aí a abertura natural entre a laguna e o mar foi migrando de norte para sul, estando localizada em locais tão díspares como ao sul de Ovar (por volta do ano 1200) a norte, ou perto de Mira (em 1756), mais para o Sul.


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