Paulo Jorge Dias *
Das diversas intervenções de que foi alvo o Convento
de Jesus de Aveiro - e em particular o seu Claustro
- com o intuito da sua harmonização com um percurso
museológico, as que foram levadas a cabo pela
Direcção Geral de Edifício e Monumentos Nacionais (DGEMN)
não nos elucidam, por si só, de todas as mudanças
operadas neste espaço.
De facto, a entrada em campo da DGEMN está
documentada apenas a partir dos anos 30 do século XX
1, não havendo, nos arquivos desta Instituição
registos anteriores que nos permitam melhor
compreender a paulatina remodelação do espaço
conventual e de alguns aspectos perante os quais,
ainda hoje, nos interrogamos. Disso é exemplo a
Capela de S. João Baptista, situada no registo
térreo do referido Claustro, no seguimento da Capela
de S. Simão e a das Fundadoras do Convento.
A Capela de S. João Baptista apresenta-nos um
pórtico em clara linguagem formal do tardo-gótico,
de cimento hidráulico rematado por escudo de tipo
francês, à semelhança do existente no remate do
pórtico da capela de S. Simão, apresenta-nos as
armas da República, emolduradas por uma coroa de
louros, tendo, ainda, inscrita no canto inferior
esquerdo a data da sua factura: 1925.
Não existiam nos arquivos da DGEMN registos desta
obra, pelo que a primeira hipótese que se nos
apresentou foi a de a atribuir a uma iniciativa
local.
Contudo, e durante as pesquisas efectuadas na
Biblioteca e Arquivo do Museu de Aveiro, encontrámos
um manuscrito que supomos original e inédito de um
dos antigos Directores do Museu, Dr. Alberto Souto2
, e que segundo cremos poderá ser um precioso
auxiliar no desbravar destas e outras questões
relacionadas com os conceitos do restauro e da
museologia em Portugal durante a primeira metade do
século XX.
/
124 /
O Dr. Alberto Souto (1888-1961) toma posse do lugar
de Director do Museu de Aveiro – então, ainda,
Regional – por Decreto de 11 de Março de 1925 3,
sucedendo a outros dois grandes nomes de Aveiro:
Marques Gomes e Pereira Tavares, sendo digno de
referência o empenho do primeiro na criação do Museu
nas dependências do antigo Convento de Jesus.4
A criação do Museu é consubstanciada pelo Decreto de
7 de Julho de 1912, sendo um dos primeiros a ser
criado durante a I República5 e inscreve-se numa
tendência de dotar as capitais de Distrito de
infra-estruturas culturais, não apenas de âmbito
generalista, mas onde se incluiriam aspectos
regionais e locais. De facto, durante a I República
são inúmeros os factos que conduzem a «[...] uma
época em que a cultura tem uma dimensão pública e
colectiva muito forte, associada à educação cívica,
à maneira de estar como cidadão, à vida quotidiana
da cidade [...]».6
Irá, dentro deste espírito, o Dr. Alberto Souto
propor a criação de um Museu de Etnografia no então
Museu Regional de Aveiro7, cujas instalações não
eram já suficientes para albergar todas as
preciosidades então aí existentes.
Assim, logo em 1925, inicia as obras no claustro por
necessidade de instalar a colecção de Etnografia:
«[...] Lancei os fundamentos da secção de Etnografia
regional, mandando fazer uma coleção de modelos de
barcos da Ria e do Rio Vouga. Já cá estão os
primeiros modelos, bem como os de um moinho de vento
de tirar agua, carro de bois, charrua, arado,
carretas, grade de lavoura. Foi o inicio do novo
Museu. Mas não tenho sala. Vou vêr se adapto a Sala
do Capitulo com as duas capelas laterais que mandei
destruir, como disse, por estarem a desmoronar-se.
26/5/25 (alterei este critério. As capelas foram
restauradas e ficaram, ambas sem azulejos, o que foi
pêna) [...]».8
A realização de obras no espaço conventual serão
orientadas numa perspectiva de dotar o Museu de novas
salas de exposição, não existindo preocupação clara
na preservação da história e do ambiente religiosos.
O Claustro do antigo Convento – sinónimo da vivência
de recolhimento por excelência – será, segundo
cremos, um dos espaços que, talvez, mais profundas
alterações terá conhecido.
Sobre este espaço conventual escreve o próprio Dr.
Alberto Souto, sendo notório o entendimento que tem
sobre o seu escasso valor técnico e histórico:
«[...] Ao mesmo tempo,
/
125 / o edificio do antigo convento de Jesus na sua parte
historica e monumental e na parte que serviu a
colegio, de pessima construção, desconexo e
labirintico, retalhado nos seus baixos e em parte
ocupado pelas escolas primarias e pelos armazens,
oficinas e arrecadações municipais, e abandonado às
inclemencias dos tempos, apresentava aspectos
aterradores [...] A parte monumental, o precioso
côro de baixo com o seu revestimento de marmores, o
claustro simples e gracioso, estavam abismados em
cubiculos sem ar, sem luz, sem segurança e sem
aspecto. Era preciso [...] melhorar o que era digno
de ser admirado [...]»9
|
|
|
|
Fotografia do claustro do Convento de Jesus de
Aveiro num postal ilustrado de um coleccionador
aveirense. |
|
O entendimento da época sobre as intervenções de
restauro não poderá ser dissociado de um movimento
fortemente anti-clericalista, que encontramos em
muitos homens da I República, em especial quando
essas intervenções se efectivam em espaço religioso.
Assim, e não fugindo ao usual no tempo, as
intervenções neste claustro tenderão a tentar
minimizar os aspectos da vida conventual e podem ser
entendidos numa perspectiva progressista de
renovação. 10
Sobre este ideário que se relaciona intimamente com
a noção de intervenção em Monumentos Nacionais,
escreve Alberto Souto, em 1908, sobre a urgência da
República:
/
126 /
«[...] Fazer a República não é derrubar um trono; é
mais – acabar com o regime em que temos vivido e que
tem arruinado o país, é acabar com todos os restos
do passado [...] é promover a prosperidade, é
realizar as grandes reformas sociais, é varrer tudo,
renovar tudo, purificar tudo [...]».11
Assim, os restauros que irá promover e, até
superintender de forma muito próxima,
serão marcados por esta perspectiva de renovação.
Do Convento nascerá o novo Museu, dotado de
instalações à altura de um Museu Nacional com
grandes salas de exposição, sendo o claustro, já não
o que resta de uma remota vida religiosa, mas um
agradável percurso museológico para os visitantes.
Sendo um homem dotado de espírito de realização o
Dr. Alberto Souto promoverá ele mesmo muitas das
obras e pequenos arranjos, em virtude de não poder
esperar pelas dotações de um já crítico Orçamento de
Estado nos fins da I República.
Segundo cremos, o pórtico da Capela de S. João
Baptista – datado de 1925 – será
uma das suas primeiras realizações, bem como a
remodelação da Sala do Capítulo.
Face à inércia do Estado em
relação à necessidade de se levarem a cabo obras
profundas de melhoramento nas instalações do Museu
escreve nos seus apontamentos: «[...] Em setembro de 927 veio aqui o
engenheiro director dos Edificios Nacionais, do
Porto, vêr o que havia a fazer. Fez projetos [sic] e
medições. Mas os telhados continuam na mesma. Obras
nada! [...]» 12
Considerando que o estado de degradação do imóvel se
agravava de dia para dia o Dr. Alberto Souto assume
a incumbência de realizar por sua própria conta
estas obras até à entrada em força da DGEMN no
início da década de 1930.
A sua actuação relaciona-se, também, com a
preocupação em defender o património artístico13,
com especial ênfase para o que já se encontrava em
risco de perda, preocupação acentuada por diversos
problemas causados pela Lei de Separação de 1911.14
Não perdendo de vista a intenção que tem de renovar
o espaço e adaptá-lo às
novas exigências museológicas, bem como a premente
necessidade de salvar o património da completa ruína
Alberto Souto procede a novas obras no espaço
claustral: «[...] Ao lado da Sala do Capítulo havia
duas capelas revestidas de azulejo no chão e
paredes.
/
127 / As paredes ameaçam ruína. No chão, o azulejo estava
todo aos altos e baixos. Para salvar [o] azulejo
mandei arrear as paredes. Eram de adobo de terra e
caiam aos grandes pedaços. Aproveito o espaço para
ampliar a sala do Capitulo que tem muita e boa
aplicação e deixo a capela que está ao lado da sala
das esculturas em pedra (lado N do claustro) como
testemunho e recordação. [...] A capelinha que
estava ao lado do côro do tumulo, com entrada pelo
arco que dá para o claustro, tambem foi demolida.
Assim, alarga-se a
entrada para o [...] claustro e dá-se alguma luz a
mais ao tumulo cuja sala é muito sombria, humida e
mal ventilada.»15
|
|
|
|
Fotografia do Claustro do Convento de Jesus de
Aveiro. Colecção particular. |
|
Para além de subsidiar do seu próprio bolso algumas
das obras e outras reparações, conforme escreve no
seu caderno16, o Dr. Alberto Souto irá pedir
conselho a diversas personalidades de Aveiro,
formando-se, assim, um grupo de indivíduos unidos
sob um interesse comum: a salvaguarda dos bens da
cidade e das instalações do antigo Convento, em
particular.
/
128 /
Entre outros, poderemos encontra, assim, nomes como
Silva Rocha17 – conhecido arquitecto e antigo
professor de desenho da Escola Industrial – Dr.
Marques Gomes – antigo Director do Museu e celebrado aveirógrafo – e até o Dr. Lourenço Peixinho, ao
tempo Presidente da Câmara Municipal.
Junto destes pede conselho, debate opiniões técnicas
e estéticas, no intuito de melhor poder intervir.
Forma-se, assim – e de uma que poderíamos dizer
natural – um grupo de pessoas que o Director julga
avalizadas, quer pela formação, quer por obras
desenvolvidas, e que lhe possibilitarão melhor
ajuizar as intervenções que superintende no espaço
do antigo Convento.
Silva Rocha colabora inclusivamente, conforme o
próprio Alberto Souto confirma, com desenhos de sua
autoria para a entrada do Museu, cabendo à Câmara
Municipal a gentil cedência de alguns dos materiais:
«[...] Abril de 1926. Colocou-se o tijolo na entrada
e fez-se o adorno da porta com cimento modelado pelo Manoel Rapos[o] segundo desenho do sr. Silva Rocha.
O arranjo ficou muito harmonico com o estilo da
porta e frontaria. O dr. Lourenço Peixinho,
presidente da Camara, ofereceu o mozaico para o
chão, que ele mesmo escolheu e encomendou em Lisboa.
[...]». 18
No que concerne aos conceitos de intervenção,
poderemos concluír que a posição do Dr. Alberto
Souto diverge significativamente da que a DGEMN irá
efectivar nos Monumentos Nacionais, um pouco por
todo o País.
Com este organismo assistiremos, desde o ano de 1929
– quando é criado no âmbito do Ministério das Obras
Públicas – a uma continuada metodologia
interventiva. Assim, teremos como constantes os
princípios viollet-Ie-duquianos de intervenção,
marcados por uma tentativa de unicidade
estilística19 – segundo um pressuposto original e
retirando ao imóvel as "degenerescências" de épocas
construtivas não contemporâneas – sacrificando-se,
muitas vezes, parte da história e da vivência dos
monumentos.20
Não será, pois a unificação estilística a grande
preocupação do Dr. Alberto Souto, pois é notório
que, muitas vezes, para além de pequenas reparações
quotidianas, procura "completar" o que se encontra
em falta – ou que nunca chegou a ser construído –
segundo modelos que, no seu entendimento, melhor se
adaptem a cada local, estilo ou função.
Estaremos, assim, bem mais próximos das noções
veículadas por Luca Beltrami na sua definição de
Restauro Storico. Uma das mais importantes
vertentes, e que por diversas vezes poderemos
constatar na acção do Dr. Alberto Souto, é a do
"projecto-cópia"21
/
129 / ou seja a preferência pela recriação
arquitectónica do edifício «[...] como ele
deveria ser – sem porém nunca o ter sido [...]».22
Para além disso observamos, também a clara e
descomplexada contribuição de
técnicas, materiais e até autores modernos num
pressuposto maximista da intervenção
grosso modo definido pela «[...] adição de novas
construções de linguagem contemporânea,
o restauro "por semelhança" ou "all' identico" (ou
seja de reconstituição integral) ou o
restauro por recriação [...]».23
|
Assim, entenderemos melhor as intervenções que,
durante a sua direcção, o
Dr. Alberto Souto supervisiona e intervém em todo o
espaço conventual, e em particular
no claustro.
Para além do espaço, o Director remodela a
ambiência, retirando-lhe alguma da
austeridade, pretendendo que se tome uma parte
integrante do Museu, chegando,
inclusivamente a expor aí algumas peças de
estatuária monumental. Nesta sua actuação é
particularmente curiosa a "apropriação" que faz pela
decoração: «[...] Mandei pintar as
janelas-portas que dão para este claustro (parte
superior) [...] era desolador. Mandei comprar
vazos, pedi palmeiras e vasos com sardinheiras à
Camara, que m' as mandou logo, bambús
etc. e comprei cache-pots [n]as fabricas de faianças
de Aveiro. O claustro parece outro. Já
pela festa assim estava com vasos e flores e
palmeiras e fetos e toda a gente gostou de vêr
esta nota de animação e vida que as flores dão no
silencio do convento [...]».24 |
António Augusto Marques Gomes e
Dr. Alberto Souto,
no Claustro do Museu de Aveiro,
1926. Fotografia de colecção particular. |
________________________________________
* Licenciado em História, variante de História da
Arte, e Mestrando em Arte, Património e Restauro
pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
Faz parte de uma equipa de investigação do fundo
documental do "Ministério da Fazenda/Finanças" no
IAN/TT. Este artigo surge na sequência de um
trabalho elaborado para a Cadeira de História da
Conservação e Restauro de Monumentos, no âmbito do
Mestrado em Arte, Património e Restauro da Faculdade
de Letras
da Universidade de Lisboa.
1 – V. Arquivo da DGEMN relativo ao Convento de Jesus,
Aveiro, 7 caixas e respectivos Processos
Fotográficos.
2 –
Manuscrito de 44 páginas com dimensões semelhantes a
A4 (210x297 mm), parcialmente assinado e datado
pelo próprio – e que foi Director entre 1925 e 1959
– num âmbito cronológico entre 1925 e 1953. Não nos
foi, por enquanto, possível apurar se estes
apontamentos se encontram incompletos ou truncados
ou se, por algum motivo, deixou de tomar as suas
notas a partir do referido ano de 1953.
3 – Diário do Governo, n° 58,11 de Março de 1925.
4 – MARQUES GOMES, J. A., O Muzeu Regional de Aveiro,
Aveiro, 1921.
5 – Cf. GOUVEIA, Henrique C., "Acerca do Conceito e
Evolução dos Museus Regionais Portugueses desde
finais do século XIX ao Regime do Estado Novo",
Bibliotecas, Arquivos e Museus, Vol. I, N°. I,
Lisboa, 1985, p. 165.
6 – DIONÍSIO, Eduarda, "A Vida
Cultural durante a República", MEDINA, João
(dir.), História Contemporânea de Portugal –
Primeira República, Lisboa, 1995, p. I!.
7 – Cf. GOUVEIA, Henrique c., op. cit., p. 168.
8 – Museu de Aveiro, Arquivo, Apontamentos sobre o Muzeu Regional de Aveiro e seus serviços pelo
Director Alberto
Souto, p. 13.
9 – SOUTO, Alberto, Etnografia da Região do Vouga
(Beira Litoral)..., Aveiro, 1929, p. 16. Itálicos
nossos.
10 – Cf, SERRÃO, Joaquim V, História de
Portugal, Vol. XII, Lisboa, 1990, pp. 285-291.
11 – MIRANDA, Luís S., Alberto Souto - Vida e Obra, I
Parte, Aveiro, 1993, p. 43. Itálicos nossos.
12 – Museu de Aveiro, Arquivo, Apontamentos sobre o Muzeu Regional de Aveiro e seus serviços pelo
Director Alberto Souto, p. 26.
13 – N'O Democrata de 29.09.1949 escreve sobre o
problema de venda de bens móveis: «[...] Em vez da
venda dos móveis artísticos, podia-se ter pedido uma
comparticipação do Estado nas obras que a Igreja
carece. Se o exemplo do Carmo pegasse, Aveiro
ficaria em breve, despojada de todos os valores
artísticos e acabaria por preencher o vácuo.. .com
mobiliário da feira dos 28 pintado a ripolin! [...]»
14 – Cf. SERRÃO, Joaquim V., História de Portugal, Vol.
XII, Lisboa, 1990, pp. 350-352.
15 – Museu de Aveiro, Arquivo, Apontamentos sobre o Muzeu Regional de Aveiro e seus serviços pelo
Director Alberto Souto, pp. 9-10.
16 – idem, p.
17 – Sobre a vida e obra de F. A. Silva Rocha, v.
NEVES, Amaro, A Arte Nova em Aveiro e seu Distrito,
Aveiro, 1997, pp. 129-137 e RODRIGUES, Manuel,
"Francisco Augusto da Silva Rocha: 1864-1957,
Boletim da Câmara Municipal de Aveiro, n° 23, 1996.
18 – Museu de Aveiro, Arquivo, Apontamentos sobre o Muzeu Regional de Aveiro e seus serviços pelo
Director Alberto Souto, p.17.
19 – Cf. PEREIRA, Paulo et alli,
Intervenções no
Património, 1995-2000 – Nova Política, Lisboa, 2000,
pp. 14-15.
20 – A actuação da DGEMN foi já largamente tratada em
NETO, Maria João, A DGEMN e as Intervenções no
Património (1929-1960), Dissertação de Doutoramento
apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de
Lisboa, 1996.
21 – Sobre as noções de Restauro Storico e de
projecto-cópia v. PEREIRA, Paulo et alli, op. cit.,
Lisboa, 2000, pp. 13-16.
22 – idem, p. 16.
23 –
idem, p. 13.
24 – Museu de Aveiro, Arquivo, Apontamentos sobre o Muzeu Regional de Aveiro e seus serviços pelo
Director Alberto
Souto, p. 13. |