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"Patrimónios" – n.º 2, Março 2002, Ano XXIII, 2ª série, 160 páginas.


O CLAUSTRO DO CONVENTO DE JESUS DE AVEIRO

Uma intervenção sob a direcção do Dr. Alberto Souto

Paulo Jorge Dias *

Das diversas intervenções de que foi alvo o Convento de Jesus de Aveiro - e em particular o seu Claustro - com o intuito da sua harmonização com um percurso museológico, as que foram levadas a cabo pela Direcção Geral de Edifício e Monumentos Nacionais (DGEMN) não nos elucidam, por si só, de todas as mudanças operadas neste espaço.

De facto, a entrada em campo da DGEMN está documentada apenas a partir dos anos 30 do século XX 1, não havendo, nos arquivos desta Instituição registos anteriores que nos permitam melhor compreender a paulatina remodelação do espaço conventual e de alguns aspectos perante os quais, ainda hoje, nos interrogamos. Disso é exemplo a Capela de S. João Baptista, situada no registo térreo do referido Claustro, no seguimento da Capela de S. Simão e a das Fundadoras do Convento.

A Capela de S. João Baptista apresenta-nos um pórtico em clara linguagem formal do tardo-gótico, de cimento hidráulico rematado por escudo de tipo francês, à semelhança do existente no remate do pórtico da capela de S. Simão, apresenta-nos as armas da República, emolduradas por uma coroa de louros, tendo, ainda, inscrita no canto inferior esquerdo a data da sua factura: 1925.

Não existiam nos arquivos da DGEMN registos desta obra, pelo que a primeira hipótese que se nos apresentou foi a de a atribuir a uma iniciativa local.

Contudo, e durante as pesquisas efectuadas na Biblioteca e Arquivo do Museu de Aveiro, encontrámos um manuscrito que supomos original e inédito de um dos antigos Directores do Museu, Dr. Alberto Souto2 , e que segundo cremos poderá ser um precioso auxiliar no desbravar destas e outras questões relacionadas com os conceitos do restauro e da museologia em Portugal durante a primeira metade do século XX.
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O Dr. Alberto Souto (1888-1961) toma posse do lugar de Director do Museu de Aveiro – então, ainda, Regional – por Decreto de 11 de Março de 1925 3, sucedendo a outros dois grandes nomes de Aveiro: Marques Gomes e Pereira Tavares, sendo digno de referência o empenho do primeiro na criação do Museu nas dependências do antigo Convento de Jesus.4

A criação do Museu é consubstanciada pelo Decreto de 7 de Julho de 1912, sendo um dos primeiros a ser criado durante a I República5 e inscreve-se numa tendência de dotar as capitais de Distrito de infra-estruturas culturais, não apenas de âmbito generalista, mas onde se incluiriam aspectos regionais e locais. De facto, durante a I República são inúmeros os factos que conduzem a «[...] uma época em que a cultura tem uma dimensão pública e colectiva muito forte, associada à educação cívica, à maneira de estar como cidadão, à vida quotidiana da cidade [...]».6

Irá, dentro deste espírito, o Dr. Alberto Souto propor a criação de um Museu de Etnografia no então Museu Regional de Aveiro7, cujas instalações não eram já suficientes para albergar todas as preciosidades então aí existentes.

Assim, logo em 1925, inicia as obras no claustro por necessidade de instalar a colecção de Etnografia: «[...] Lancei os fundamentos da secção de Etnografia regional, mandando fazer uma coleção de modelos de barcos da Ria e do Rio Vouga. Já cá estão os primeiros modelos, bem como os de um moinho de vento de tirar agua, carro de bois, charrua, arado, carretas, grade de lavoura. Foi o inicio do novo Museu. Mas não tenho sala. Vou vêr se adapto a Sala do Capitulo com as duas capelas laterais que mandei destruir, como disse, por estarem a desmoronar-se. 26/5/25 (alterei este critério. As capelas foram restauradas e ficaram, ambas sem azulejos, o que foi pêna) [...]».8

A realização de obras no espaço conventual serão orientadas numa perspectiva de dotar o Museu de novas salas de exposição, não existindo preocupação clara na preservação da história e do ambiente religiosos. O Claustro do antigo Convento – sinónimo da vivência de recolhimento por excelência – será, segundo cremos, um dos espaços que, talvez, mais profundas alterações terá conhecido.

Sobre este espaço conventual escreve o próprio Dr. Alberto Souto, sendo notório o entendimento que tem sobre o seu escasso valor técnico e histórico: «[...] Ao mesmo tempo, / 125 / o edificio do antigo convento de Jesus na sua parte historica e monumental e na parte que serviu a colegio, de pessima construção, desconexo e labirintico, retalhado nos seus baixos e em parte ocupado pelas escolas primarias e pelos armazens, oficinas e arrecadações municipais, e abandonado às inclemencias dos tempos, apresentava aspectos aterradores [...] A parte monumental, o precioso côro de baixo com o seu revestimento de marmores, o claustro simples e gracioso, estavam abismados em cubiculos sem ar, sem luz, sem segurança e sem aspecto. Era preciso [...] melhorar o que era digno de ser admirado [...]»9
 
 

Claustro do Convento de Jesus de Aveiro.Clicar para ampliar.

 
 

Fotografia do claustro do Convento de Jesus de Aveiro num postal ilustrado de um coleccionador aveirense.

 

O entendimento da época sobre as intervenções de restauro não poderá ser dissociado de um movimento fortemente anti-clericalista, que encontramos em muitos homens da I República, em especial quando essas intervenções se efectivam em espaço religioso. Assim, e não fugindo ao usual no tempo, as intervenções neste claustro tenderão a tentar minimizar os aspectos da vida conventual e podem ser entendidos numa perspectiva progressista de renovação. 10

Sobre este ideário que se relaciona intimamente com a noção de intervenção em Monumentos Nacionais, escreve Alberto Souto, em 1908, sobre a urgência da República:

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«[...] Fazer a República não é derrubar um trono; é mais – acabar com o regime em que temos vivido e que tem arruinado o país, é acabar com todos os restos do passado [...] é promover a prosperidade, é realizar as grandes reformas sociais, é varrer tudo, renovar tudo, purificar tudo [...]».11

Assim, os restauros que irá promover e, até superintender de forma muito próxima, serão marcados por esta perspectiva de renovação.

Do Convento nascerá o novo Museu, dotado de instalações à altura de um Museu Nacional com grandes salas de exposição, sendo o claustro, já não o que resta de uma remota vida religiosa, mas um agradável percurso museológico para os visitantes.

Sendo um homem dotado de espírito de realização o Dr. Alberto Souto promoverá ele mesmo muitas das obras e pequenos arranjos, em virtude de não poder esperar pelas dotações de um já crítico Orçamento de Estado nos fins da I República.

Segundo cremos, o pórtico da Capela de S. João Baptista – datado de 1925 – será uma das suas primeiras realizações, bem como a remodelação da Sala do Capítulo.

Face à inércia do Estado em relação à necessidade de se levarem a cabo obras profundas de melhoramento nas instalações do Museu escreve nos seus apontamentos: «[...] Em setembro de 927 veio aqui o engenheiro director dos Edificios Nacionais, do Porto, vêr o que havia a fazer. Fez projetos [sic] e medições. Mas os telhados continuam na mesma. Obras nada! [...]» 12

Considerando que o estado de degradação do imóvel se agravava de dia para dia o Dr. Alberto Souto assume a incumbência de realizar por sua própria conta estas obras até à entrada em força da DGEMN no início da década de 1930.

A sua actuação relaciona-se, também, com a preocupação em defender o património artístico13, com especial ênfase para o que já se encontrava em risco de perda, preocupação acentuada por diversos problemas causados pela Lei de Separação de 1911.14

Não perdendo de vista a intenção que tem de renovar o espaço e adaptá-lo às novas exigências museológicas, bem como a premente necessidade de salvar o património da completa ruína Alberto Souto procede a novas obras no espaço claustral: «[...] Ao lado da Sala do Capítulo havia duas capelas revestidas de azulejo no chão e paredes. / 127 /  As paredes ameaçam ruína. No chão, o azulejo estava todo aos altos e baixos. Para salvar [o] azulejo mandei arrear as paredes. Eram de adobo de terra e caiam aos grandes pedaços. Aproveito o espaço para ampliar a sala do Capitulo que tem muita e boa aplicação e deixo a capela que está ao lado da sala das esculturas em pedra (lado N do claustro) como testemunho e recordação. [...] A capelinha que estava ao lado do côro do tumulo, com entrada pelo arco que dá para o claustro, tambem foi demolida. Assim, alarga-se a entrada para o [...] claustro e dá-se alguma luz a mais ao tumulo cuja sala é muito sombria, humida e mal ventilada15
 

Fotografia do Claustro do Convento de Jesus de Aveiro. Colecção particular. Clicar para ampliar.

 
 

Fotografia do Claustro do Convento de Jesus de Aveiro. Colecção particular.

 

Para além de subsidiar do seu próprio bolso algumas das obras e outras reparações, conforme escreve no seu caderno16, o Dr. Alberto Souto irá pedir conselho a diversas personalidades de Aveiro, formando-se, assim, um grupo de indivíduos unidos sob um interesse comum: a salvaguarda dos bens da cidade e das instalações do antigo Convento, em particular.

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Entre outros, poderemos encontra, assim, nomes como Silva Rocha17 – conhecido arquitecto e antigo professor de desenho da Escola Industrial – Dr. Marques Gomes – antigo Director do Museu e celebrado aveirógrafo – e até o Dr. Lourenço Peixinho, ao tempo Presidente da Câmara Municipal.

Junto destes pede conselho, debate opiniões técnicas e estéticas, no intuito de melhor poder intervir. Forma-se, assim – e de uma que poderíamos dizer natural – um grupo de pessoas que o Director julga avalizadas, quer pela formação, quer por obras desenvolvidas, e que lhe possibilitarão melhor ajuizar as intervenções que superintende no espaço do antigo Convento.

Silva Rocha colabora inclusivamente, conforme o próprio Alberto Souto confirma, com desenhos de sua autoria para a entrada do Museu, cabendo à Câmara Municipal a gentil cedência de alguns dos materiais: «[...] Abril de 1926. Colocou-se o tijolo na entrada e fez-se o adorno da porta com cimento modelado pelo Manoel Rapos[o] segundo desenho do sr. Silva Rocha. O arranjo ficou muito harmonico com o estilo da porta e frontaria. O dr. Lourenço Peixinho, presidente da Camara, ofereceu o mozaico para o chão, que ele mesmo escolheu e encomendou em Lisboa. [...]». 18

No que concerne aos conceitos de intervenção, poderemos concluír que a posição do Dr. Alberto Souto diverge significativamente da que a DGEMN irá efectivar nos Monumentos Nacionais, um pouco por todo o País.

Com este organismo assistiremos, desde o ano de 1929 – quando é criado no âmbito do Ministério das Obras Públicas – a uma continuada metodologia interventiva. Assim, teremos como constantes os princípios viollet-Ie-duquianos de intervenção, marcados por uma tentativa de unicidade estilística19 – segundo um pressuposto original e retirando ao imóvel as "degenerescências" de épocas construtivas não contemporâneas – sacrificando-se, muitas vezes, parte da história e da vivência dos monumentos.20

Não será, pois a unificação estilística a grande preocupação do Dr. Alberto Souto, pois é notório que, muitas vezes, para além de pequenas reparações quotidianas, procura "completar" o que se encontra em falta – ou que nunca chegou a ser construído – segundo modelos que, no seu entendimento, melhor se adaptem a cada local, estilo ou função.

Estaremos, assim, bem mais próximos das noções veículadas por Luca Beltrami na sua definição de Restauro Storico. Uma das mais importantes vertentes, e que por diversas vezes poderemos constatar na acção do Dr. Alberto Souto, é a do "projecto-cópia"21 / 129 / ou seja a preferência pela recriação arquitectónica do edifício «[...] como ele deveria ser – sem porém nunca o ter sido [...]».22

Para além disso observamos, também a clara e descomplexada contribuição de técnicas, materiais e até autores modernos num pressuposto maximista da intervenção grosso modo definido pela «[...] adição de novas construções de linguagem contemporânea, o restauro "por semelhança" ou "all' identico" (ou seja de reconstituição integral) ou o restauro por recriação [...]».23
 
António Augusto Marques Gomes e Dr. Alberto Souto, no Claustro do Museu de Aveiro, em 1926. Clicar para ampliar.

Assim, entenderemos melhor as intervenções que, durante a sua direcção, o Dr. Alberto Souto supervisiona e intervém em todo o espaço conventual, e em particular no claustro.

Para além do espaço, o Director remodela a ambiência, retirando-lhe alguma da austeridade, pretendendo que se tome uma parte integrante do Museu, chegando, inclusivamente a expor aí algumas peças de estatuária monumental. Nesta sua actuação é particularmente curiosa a "apropriação" que faz pela decoração: «[...] Mandei pintar as janelas-portas que dão para este claustro (parte superior) [...] era desolador. Mandei comprar vazos, pedi palmeiras e vasos com sardinheiras à Camara, que m' as mandou logo, bambús etc. e comprei cache-pots [n]as fabricas de faianças de Aveiro. O claustro parece outro. Já pela festa assim estava com vasos e flores e palmeiras e fetos e toda a gente gostou de vêr esta nota de animação e vida que as flores dão no silencio do convento [...]».24

António Augusto Marques Gomes e Dr. Alberto Souto, no Claustro do Museu de Aveiro, 1926. Fotografia de colecção particular.

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* Licenciado em História, variante de História da Arte, e Mestrando em Arte, Património e Restauro pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Faz parte de uma equipa de investigação do fundo documental do "Ministério da Fazenda/Finanças" no IAN/TT. Este artigo surge na sequência de um trabalho elaborado para a Cadeira de História da Conservação e Restauro de Monumentos, no âmbito do Mestrado em Arte, Património e Restauro da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.


1 –  V. Arquivo da DGEMN relativo ao Convento de Jesus, Aveiro, 7 caixas e respectivos Processos Fotográficos.

 

2 – Manuscrito de 44 páginas com dimensões semelhantes a A4 (210x297 mm), parcialmente assinado e datado pelo próprio – e que foi Director entre 1925 e 1959 – num âmbito cronológico entre 1925 e 1953. Não nos foi, por enquanto, possível apurar se estes apontamentos se encontram incompletos ou truncados ou se, por algum motivo, deixou de tomar as suas notas a partir do referido ano de 1953.

 

3 – Diário do Governo, n° 58,11 de Março de 1925.

 

4 – MARQUES GOMES, J. A., O Muzeu Regional de Aveiro, Aveiro, 1921.


5 – Cf. GOUVEIA, Henrique C., "Acerca do Conceito e Evolução dos Museus Regionais Portugueses desde finais do século XIX ao Regime do Estado Novo", Bibliotecas, Arquivos e Museus, Vol. I, N°. I, Lisboa, 1985, p. 165.

 

6 – DIONÍSIO, Eduarda, "A Vida Cultural durante a República", MEDINA, João (dir.), História Contemporânea de Portugal – Primeira República, Lisboa, 1995, p. I!.


7 – Cf. GOUVEIA, Henrique c., op. cit., p. 168.


8 – Museu de Aveiro, Arquivo, Apontamentos sobre o Muzeu Regional de Aveiro e seus serviços pelo Director Alberto Souto, p. 13.

 

9 – SOUTO, Alberto, Etnografia da Região do Vouga (Beira Litoral)..., Aveiro, 1929, p. 16. Itálicos nossos.

 

10 – Cf, SERRÃO, Joaquim V, História de Portugal, Vol. XII, Lisboa, 1990, pp. 285-291.

11 – MIRANDA, Luís S., Alberto Souto - Vida e Obra, I Parte, Aveiro, 1993, p. 43. Itálicos nossos.

12 – Museu de Aveiro, Arquivo, Apontamentos sobre o Muzeu Regional de Aveiro e seus serviços pelo Director Alberto Souto, p. 26.

13 – N'O Democrata de 29.09.1949 escreve sobre o problema de venda de bens móveis: «[...] Em vez da venda dos móveis artísticos, podia-se ter pedido uma comparticipação do Estado nas obras que a Igreja carece. Se o exemplo do Carmo pegasse, Aveiro ficaria em breve, despojada de todos os valores artísticos e acabaria por preencher o vácuo.. .com mobiliário da feira dos 28 pintado a ripolin! [...]»

14 – Cf. SERRÃO, Joaquim V., História de Portugal, Vol. XII, Lisboa, 1990, pp. 350-352.

15 – Museu de Aveiro, Arquivo, Apontamentos sobre o Muzeu Regional de Aveiro e seus serviços pelo Director Alberto Souto, pp. 9-10.
16 – idem, p.

17 – Sobre a vida e obra de F. A. Silva Rocha, v. NEVES, Amaro, A Arte Nova em Aveiro e seu Distrito, Aveiro, 1997, pp. 129-137 e RODRIGUES, Manuel, "Francisco Augusto da Silva Rocha: 1864-1957, Boletim da Câmara Municipal de Aveiro, n° 23, 1996.

18 – Museu de Aveiro, Arquivo, Apontamentos sobre o Muzeu Regional de Aveiro e seus serviços pelo Director Alberto Souto, p.17.

19 – Cf. PEREIRA, Paulo et alli, Intervenções no Património, 1995-2000 – Nova Política, Lisboa, 2000, pp. 14-15.

20 – A actuação da DGEMN foi já largamente tratada em NETO, Maria João, A DGEMN e as Intervenções no Património (1929-1960), Dissertação de Doutoramento apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 1996.

21 – Sobre as noções de Restauro Storico e de projecto-cópia v. PEREIRA, Paulo et alli, op. cit., Lisboa, 2000, pp. 13-16.

22 – idem, p. 16.

23 – idem, p. 13.

24 – Museu de Aveiro, Arquivo, Apontamentos sobre o Muzeu Regional de Aveiro e seus serviços pelo Director Alberto Souto, p. 13.


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