Henrique J. C. de Oliveira, Os Meios Audiovisuais na Escola Portuguesa, 1996. |
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Durante
o período da
Idade Média
(séc. VIII a XV),
injustamente considerado durante bastante tempo como uma época de trevas, de
escuridão cultural, o ideal de formação grega, que consistia em dar uma formação
plena a todos os cidadãos desde tenra idade, há muito tinha sido perdido. O
acesso à cultura e ao conhecimento das letras era privilégio de uma reduzida
minoria, pelo que, durante toda a Idade Média, é dado um certo privilégio à
comunicação pela imagem como forma de educação, tendo essencialmente como
objectivo a transmissão de conhecimentos de carácter religioso. Nas grandes
catedrais, os espaços são preenchidos com figurações de carácter religioso,
quer através de estátuas e de relevos, quer de grandes superfícies cobertas
de cenas diversas, obtidas por meio de vitrais, por meio de pinturas e por meio
de revestimentos constituídos por minúsculos mosaicos de vidro colorido ou de
pequenas pedras, obtendo-se um efeito mais cromático e duradouro do que por
meio da pintura. Em
todas as grandes igrejas do mundo ocidental encontramos painéis que representam
todos os tipos de cenas, com predomínio de elementos religiosos, utilizando as
técnicas tridimensionais, por meio do recurso à escultura ou ao baixo relevo,
ou a representação sobre superfícies planas, recorrendo à pintura sobre painéis
de madeira ou directamente sobre as paredes previamente preparadas, ou também,
em muitos casos, à técnica do mosaico com pequenas pedras ou com pequenos
cubos de vidro colorido, com os quais se obtém um maior brilho e contrataste
cromático. São célebres os vastíssimos painéis, que cobrem completamente as
paredes internas das grandes catedrais do mundo ocidental[1]. Observando-se
as dezenas de imagens de painéis pintados nas diferentes igrejas do mundo
ocidental, tal como acontece também com as grandes tapeçarias que chegaram até
nós, verificamos que todos os elementos representados se encontram quase sempre
no mesmo plano, faltando a noção de profundidade. Quer as figuras se encontrem
na frente, quer umas por detrás /
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das outras, todas apresentam idêntica proporção,
tal como se estivessem coladas umas sobre as outras. Houve como que um recuo na
técnica de representação das cenas, relativamente à época clássica
greco-romana. As representações mostram agora apenas duas dimensões,
comprimento e altura, faltando a terceira dimensão, a noção de profundidade.
Este aspecto é mais notório quando se observam as imagens que ilustram os
livros desta época, as chamadas i
luminuras
.
Embora haja algumas excepções, em que os diferentes planos se encontram
perfeitamente representados, como é o caso, por exemplo, da iluminura de
Pol de Limburg (séc. XV),
existente no célebre livro
Les
Très Riches Heures du Duc de Berry
, de uma maneira geral todos
os elementos representados situam-se no mesmo plano, não havendo qualquer noção
de perspectiva. A
transmissão de conhecimentos pela imagem, visando a grande maioria do povo
iletrado, não se verifica apenas nas construções de tipo arquitectónico.
Mesmo nas obras escritas, ao lado da mancha textual, cujo conteúdo só é acessível
a alguns, as iluminuras desempenham um papel de relevo. Através das imagens,
algumas de elevada beleza cromática e de grande valor documental, pelo registo
de aspectos da vida da época, são desempenhadas duas grandes funções: além
de um complemento de informação relativamente ao texto, torna-se possível ao
«leitor» iletrado captar uma parte da informação que se pretende transmitir.
A imagem adquire um valor pedagógico importante, funcionando como uma
alternativa ao texto escrito, constituindo todo o conjunto aquilo que Cloutier
designa como um documento scripto-visual,
em que «as ilustrações, as iluminuras,
as glosas e os anexos, fazem parte integrante da comunicação.»[2] A
moderna banda desenhada, uma das formas de comunicação moderna com maior
impacto, por aliar duas poderosas linguagens - icónica e verbal -, encontra os
seus antecedentes históricos mais directos na Idade Média. É nos cancioneiros
da Península Ibérica que se encontram alguns dos melhores exemplares de
comunicação pela imagem. Embora a técnica de desenho possa não ser
inteiramente perfeita, algumas bandas desenhadas medievais têm características
avançadas para o seu tempo, retirando a primazia a algumas técnicas
frequentemente consideradas modernas e próprias da segunda metade do século XX.
Além de várias faixas, que se podem considerar já como representações panorâmicas
de cenas da época, existem três exemplares de banda desenhada, na verdadeira
acepção da expressão e rigorosamente de acordo com as características
actuais, que ilustram
os cancioneiros da época.
Estes exemplares são
constituídos por três faixas sobrepostas com duas imagens cada, perfazendo um
total de seis quadrículas. À semelhança da banda desenhada dos começos do século
XX, cada quadrícula ou vinheta apresenta uma breve legenda, diferindo do
sistema moderno apenas pelo facto desta se /
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encontrar localizada no bordo
superior da imagem. A presença de legenda em cada imagem funciona como um
complemento ou reforço da história que se pretende narrar, constituindo imagem
e legenda um texto «scripto-visual». Qualquer pessoa, mesmo iletrada, tem
grandes probabilidades de descodificar a mensagem, uma vez que o desenhador teve
o cuidado de representar todo um conjunto de pequenos elementos icónicos que um
leitor-observador, com uma análise mais rigorosa, conseguirá facilmente
interpretar. E para aqueles que saibam ler, a breve legenda permite que a
leitura da imagem se faça com relativa facilidade, uma vez que, embora breve, o
seu conteúdo remete para os referentes situacionais da narrativa[3]. Embora
durante algum tempo a banda desenhada tenha sido mal aceite por alguns como
recurso educativo, é considerada desde há alguns anos como um valioso auxiliar
educativo, muito especialmente no campo das línguas, quer se trate do
desenvolvimento de capacidades expressivas em língua materna, quer como
desenvolvimento da competência comunicativa, nas línguas estrangeiras: «As bandas desenhadas (...) permitem ajudar os alunos a exprimirem-se e a comunicar tão espontânea e livremente quanto possível (...). São suportes audiovisuais próprios para motivar a expressão (...). Elas evitam aos principiantes, pouco treinados na expressão oral, o problema da invenção surgido quando se lhes pede para imaginarem uma história original ou para dialogarem a partir de uma situação previamente apresentada.»[4]
[1]
- A título ilustrativo, consulte-se uma História da Arte na parte
correspondente à Idade Média e observem-se as imagens relativas à
catedral de Santa Constança, em
Roma, ao
Baptistério dos Arianos, em
Ravena, à igreja de
Santo Apolinário o Novo, em Ravena, em que a técnica do
mosaico é utilizada com elevada qualidade. [2]
- J. CLOUTIER, op. cit., p. 29. [3]
- Não cabendo aqui uma apresentação e análise dos três exemplares
medievais de banda desenhada, que mereceriam uma análise numa perspectiva
das técnicas de comunicação utilizadas, remete-se o leitor interessado
para a seguinte bibliografia: História da Arte,
Lisboa, Publicações Alfa, 1972, vol. IV, pág. 87.
Henrique J. C. de OLIVEIRA, Gramática
da Comunicação, vol. I, Col. Textos ISCIA, 1ª ed., Aveiro, Edição
FEDRAVE, 1993, pp. 224-233. (Nesta obra faz-se um
confronto entre uma das bandas desenhadas medievais e a banda desenhada
portuguesa da primeira metade do século XX, apresentando-se também o texto
original de Afonso X que esteve na origem da sequência de imagens.) José
Joaquim NUNES, Crestomatia Arcaica.
Excertos da Literatura Portuguesa. 5ª ed., Lisboa, Livraria Clássica
Editora, 1959, pp. 428-431. (Encontra-se também nesta obra, nas páginas
indicadas, o texto correspondente à cantiga de Afonso X.)
Correa de OLIVEIRA e Saavedra MACHADO, Textos
Portugueses Medievais. 3º Ciclo dos Liceus. 2ª ed., Coimbra, Atlântida-Livraria
Editora, 1961, pp. 152-154 (texto de Afonso X) e pág.
155 (reprodução da estampa 114, gravura extraída de J. Guerrero LOVILLO, Las
Cántigas, com a banda desenhada medieval correspondente à narrativa em
verso). [4]
- G. ROLLET, Parler et écrire avec la
bande dessinée, Paris, Livr. Hachette, 1974, p. 2. |
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