Abel Urbano, A costa, o porto e a região de Aveiro na defesa de Portugal, Vol. III, pp. 73-78.

A COSTA, O PORTO E A REGIÃO DE AVEIRO

NA DEFESA DE PORTUGAL

A SITUAÇÃO geográfica e política de Portugal na Europa, encravado entre a Espanha e o Oceano em estreita faixa alongada, a grande extensão da fronteira marítima guarnecida de costas e praias abordáveis, e a configuração do território, de relevo muito acidentado cortado transversalmente pelos grandes vales dos seus maiores rios, são circunstâncias que obrigam à coordenação da defesa da fronteira terrestre com a do litoral e à conjugação das operações militares em terra com as operações navais.

Estas circunstâncias levarão o adversário que nos atacar por a fronteira terrestre a exercer, conjuntamente, uma acção ofensiva pelo litoral, a fim de, em obediência aos bons princípios de estratégia, meter os nossos corpos de exército entre dois fogos opostos, dividi-los por várias frentes e cortar-lhes as comunicações com os portos de reabastecimento.

No caso duma guerra de Portugal com qualquer adversário ocupante do país vizinho, as tropas aliadas que venham cooperar connosco nas operações militares efectuadas no território português terão de desembarcar nos nossos portos ou na nossa costa marítima. Foi o que sucedeu na memorável campanha de 1808 que expulsou do território português a invasão francesa comandada por Junot. Nesta campanha, as tropas portuguesas, de pequeno efectivo e mal organizadas, foram eficazmente auxiliadas por tropas inglesas desembarcadas nas costas ao sul da foz do Mondego, tendo sido preferidas estas às do Norte em virtude das Divisões do invasor ocuparem a região entre aquele rio e o Tejo.

Uma grande parte do exército expedicionário inglês desembarcou, de 1 a 5 de Agosto, de surpresa para o invasor, na / 74 / costa de Lavos, próxima da Figueira da Foz. As tropas desembarcadas reunidas a pouco mais de 2.000 homens de exército português foram bater, no combate da Roliça, a Divisão francesa do general Delaborde, que foi obrigado a retirar para o Sul. A esquadra seguiu à vista da costa, numa direcção quase paralela à da marcha das tropas aliadas, indo desembarcar reforços e mantimentos na praia da Maceira. Com estes reforços o efectivo do exército aliado elevou-se a perto de 20.000 homens que, sob o comando de Welesley, derrotaram os franceses comandados por Junot na batalha do Vimeiro em 21 de Agosto de 1808.

Também se encontram na guerra civil de D. Pedro D. Miguel exemplos bem frisantes da acção decisiva dos desembarques de tropas nas costas de Portugal e das desastrosas consequências da falta de defesa do litoral para um exército ocupante do território nacional. Foram a falta da defesa e a insuficiência da vigilância do litoral confiadas à Divisão miguelista do Visconde de Santa Marta, desde a Figueira da Foz a Caminha, que permitiram aos 7.500 soldados de D. Pedro desembarcar, sem resistência dos miguelistas, em 8 de Julho de 1832, na praia de Pampelido, (a uma légua ao sul da praia do Mindelo) e tomar a cidade do Porto que veio a ser o baluarte das tropas liberais. Passado um ano, a expedição comandada pelo Duque da Terceira desembarcava nas costas do Algarve, entre Cacela e Monte Gordo, e ia decidir do resultado da guerra em favor dos partidários de D. Pedro.

Os fins da organização militar defensiva do litoral português não se limitam, apenas, a impedir os desembarques do inimigo e a proteger as suas tropas aliadas ou dos contingentes coloniais, coordenando as operações terrestres, aéreas e navais. Devem corresponder, também, à função de facilitar a entrada pela fronteira marítima do material de guerra e munições, das matérias primas e maquinismo necessários ao seu fabrico, e de vários abastecimentos que não podem entrar pela fronteira terrestre para suprir as faltas dos recursos do país.

Esta importante função da defesa do litoral é essencial ao bom êxito duma campanha em território nacional, porque Portugal não tem os carburantes indispensáveis na guerra moderna, não possui uma indústria siderúrgica suficientemente desenvolvida, é falho do ferro e pobre no carvão, necessários ao desenvolvimento daquela indústria, e deficiente em outras matérias primas indispensáveis na sustentação duma campanha.

Para poder satisfazer às finalidades, que sumariamente expomos, a defesa militar da fronteira marítima tem de ser estudada e organizada principalmente nas zonas das praias abordáveis, das costas próximas dos portos e das barras, de localidades que possam servir de bases ou de objectivos a prováveis operações militares ou que venham a ser bases de abastecimentos.

Pelo exame atento da carta corográfica de Portugal, especialmente / 75 / na região que compreende o vale e o estuário do Vouga e se estende até ao mar, verifica-se que a zona do litoral de Aveiro, desde Espinho ao Cabo Mondego, apresenta condições naturais notáveis para a defesa militar do território nacional.

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Vários factos comprovam a notável importância militar de Aveiro, do seu porto e da costa vizinha, desde épocas afastadas na história de Portugal até nossos dias.

Na grande esquadra, organizada no Porto, em 1418, para transportar a expedição da conquista de Ceuta, iam navios armados no porto de Aveiro.

Saíram também do mesmo porto, em cujos estaleiros se construíram naus e galeões, no século XVI, alguns navios da frota que em 1548 levou à África o exército de D. Sebastião derrotado em Alcácer-Quibir.

O porto, servido por uma barra profunda e facilmente acessível a grandes navios, era muito frequentado, nessas épocas, dando à vila considerável movimento comercial. Mas o aproveitamento para salinas duma grande área de terrenos inundados, alterou as correntes em direcção e intensidade, dando origem ao estreitamento da barra e à sua deslocação para o Sul, e produzindo o assoreamento do porto.

Em 1575 precipitou-se a grande decadência do porto numa tempestuosa invernia que obstruiu a barra com areias e assoreou a ria. Esta decadência foi-se acentuando, a barra deslocou-se para o sul tornando difícil o acesso ao porto mesmo a navios de pequeno calado, agravando a miséria da região e provocando justos clamores que forçaram o Estado no princípio do século próximo passado a mandar proceder a obras de melhoramento da barra. Nem sempre tiveram grande êxito as obras executadas, até que em Outubro de 1932 foram inaugurados importantes trabalhos de melhoramentos subordinados a um vasto plano que compreende a fixação e alargamento da barra, a criação, junto da cidade, de portos de pesca e de cabotagem, e o rasgamento de um canal para lhes dar acesso.

Realizado este p]ano, no porto lagunar de Aveio poderão fundear e abrigar-se torpedeiros, submarinos, monitores e canhoneiras para a vigilância e defesa da costa.

Para a defesa da costa e barra foi construído na Vagueira, no reinado de D. João IV, um forte cujas ruínas desapareceram há poucos anos, e no século XVII ergueu-se à entrada da barra um forte abaluartado, que ainda existe desartilhado mas em razoável estado de conservação.

No século XV o infante D. Pedro cingiu Aveiro com muralhas / 76 / que foram melhoradas e reforçadas nos reinados de D. Manuel I e D. João V. As pedras das ruínas destas muralhas foram aproveitadas, no século próximo passado, na construção das obras da barra e dos alicerces do Liceu.

Actualmente a cidade tem guarnição militar constituída por um regimento de Cavalaria, para o qual foi construído um bom quartel, e um regimento de Infantaria, e é sede dum distrito de recrutamento.

Durante a Grande Guerra os franceses estabeleceram na costa de S. Jacinto, para a vigilância do litoral, um porto de hidroaviões que foi aproveitado, finda a Guerra, pelo Ministro da Marinha, para o actual Centro de Aviação Naval.

BARRA DE AVEIRO
Paredão Norte, estuário e construções de S. Jacinto.

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Com a base na costa marítima e com dois lados formados, um, pelo troço da linha férrea que vai de Aveiro a Coimbra e o outro pelo curso inferior do Mondego, constitui-se, entre o Vouga e aquele rio, um formidável triângulo estratégico, com os vértices naquelas cidades, ao qual devem caber funções importantíssimas na defesa militar de Portugal e, em especial, das Beiras.

A zona da Beira Litoral delimitada por este triângulo, muito  / 77 / rica de produções agrícolas, de população muito densa, situada entre Lisboa e Porto e com uma boa rede de vias de comunicação e servida directamente por dois portos de mar, apresenta óptimas condições naturais para nela se fazer uma rápida mobilização de homens válidos, de gado e de outros recursos naturais, acompanhada ou seguida da concentração de tropas, de material bélico, de munições e de víveres.

BARRA DE AVEIRO
Paredão Sul e triângulo regulador das correntes.
Esta gravura completa a anterior, mostrando, juntas, a grande área utilizável para porto 
de abrigo e instalações respectiva.

Da esplêndida situação corográfica da referida zona, coberta dos ataques do adversário por as serras do Buçaco e do Caramulo, entre o baixo Mondego e o baixo Vouga, resulta o seu
grande valor estratégico para as operações na direcção Viseu - Vale do Vouga sobre o Porto, e para aquelas que se efectuarem na linha do vale do Mondego tendo Coimbra por objectivo.

Em face da importância estratégica do triângulo Aveiro - Coimbra - Figueira da Foz, impõe-se a defesa da costa que lhe serve de base, entre os dois portos de mar.

Na defesa da costa tem de cooperar forças terrestres móveis, motorizadas, em virtude da impossibilidade económica de se recorrer à dispendiosa fortificação permanente, a forças navais e aéreas.

Para a acção eficaz das forças terrestres são indispensáveis boas comunicações ao longo e próximo da costa. Sob este ponto de vista das comunicações militares, são de grande importância / 78 / a estrada de Figueira da Foz, por a Tocha a Mira e o caminho de ferro, concedido à C. C. F. do Vale do Vouga, de Aveiro - Vagos - Mira - Cantanhede. Deverá completar o feixe de comunicações convergentes com vias fluviais, em Aveiro, o prolongamento da estrada da Barra - Costa Nova até Mira e a construção duma outra de S. Jacinto a Ovar.

As forças navais da defesa da costa deverão constituir uma esquadrilha de submarinos, torpedeiros, lança-minas, e, possivelmente, monitores, com a base no porto de Aveiro.

Servirá de base às forças aéreas o centro de aviação naval de S. Jacinto.

Rodeada por uma região agrícola riquíssima, hiperfertilizada pelos moliços extraídos da ria, no meio dum extenso estuário povoado, abundantemente, de peixe de várias espécies nos seus esteiros, valas, canais, rias e pateiras, ponto de convergência de vias de comunicação terrestre e fluviais, capital duma zona na qual podem atingir grande desenvolvimento as indústrias de conservas e de lacticínios, porto notável de pesca marítima incluindo a do bacalhau, e que será um porto de cabotagem importante com a realização das obras projectadas; a cidade de Aveiro oferece condições excepcionais para ser uma importante base de reabastecimento das tropas em campanha.

Cabem ao porto, à costa e à cidade de Aveiro, pelas suas excelentes condições navais, funções militares importantes na defesa do País; mas, para que estas funções possam ser desempenhadas com eficácia, é indispensável: a) executar, com a possível urgência, as obras constantes do projecto de melhoramentos da barra e do porto, datado de 1930; b) apetrechar o porto para poder servir de base a uma esquadrilha de submarinos, torpedeiros e lança-minas; c) construir o caminho de ferro, já concedido à Companhia do V. V., de A veiro - Mira - Cantanhede e as estradas costeiras ou marginais da Costa Nova a Mira e de S. Jacinto a Ovar; d) prolongar o caminho de ferro do Vale do Vouga de Viseu a Gouveia, para completar a linha de penetração no hinterland do porto, e para poder estabelecer a comunicação rápida da base de Aveiro com as tropas que venham a operar na Beira Alta e, especialmente, no vale do Mondego; e) desenvolver a indústria das conservas e de lacticínios na região aveirense, afim de se armazenarem grandes reservas desses produtos, para aprovisionamento do Exército e da Marinha; f) estabelecer, na cidade, uma delegação da Manutenção Militar.

Logo que sejam realizados os melhoramentos indicados sumariamente, a cidade de Aveiro e o seu porto terão conquistado a importância a que têm direito, por a sua situação no País.

ABEL URBANO
ENGENHEIRO (E. E.)

 

BARRA DE AVEIRO
Imagem panorâmica resultante da junção das duas imagens reproduzidas do «Arquivo do Distrito de Aveiro».
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