Liturgia Pagã

 

O mistério dos dois testamentos

2º Domingo do Advento (ano B)

1ª leitura: Livro de Isaías, 40, 1-5.9-11

2ª leitura: 2ª Carta de S. Pedro, 3, 8-14

Evangelho: S. Marcos, 1, 1-8

          

Não, não é o título de um romance policial. Embora fale de «detectives teólogos» bem conceituados e tenha por actores principais João Baptista e o próprio Jesus – representantes do «Velho» e do «Novo testamento».

Acontece que os «detectives» dizem não haver «testamento» algum… Alegam que um testamento é a última vontade ou disposições a cumprir por quem sobrevive ao testador. Neste caso era como se Deus, antes de morrer (!), tivesse deixado ao «seu povo» as normas a seguir. Ora não podemos admitir nem uma coisa nem outra: por um lado, a vida divina exclui a morte; por outro, o ser humano tem a experiência de que não pode ser uma simples marionete nas mãos de Deus – pois lhe compete desenvolver e governar o mundo com o espírito criador que «herdou» do próprio Deus (como se depreende dos mitos do Génesis, 1 e 2).

Na verdade, «testamento» pretende traduzir o termo hebreu «berît», afim aos conceitos de pacto, compromisso, lei e testemunho. Não se pode confundir com a Lei do «povo escolhido», pois «berît» não é um código nem a expressão mais ou menos pormenorizada da vontade de Deus (e muito menos da sua «última vontade»!). «Berît» é um acto, um acordo ritual e solene entre duas partes (designa frequentemente o pacto entre rei e vassalo). Implica um historial das partes incluídas e suas relações, termos da negociação e vantagens ou penalizações. Os «aliados» costumavam passar entre as duas metades sangrentas de um animal imolado e aspergir-se com o sangue – o que tanto significa vida como punição de morte.

Trata-se pois de uma «aliança». No caso de Deus e «seu povo» (Israel), encontramos muitas vezes estes elementos, seja na história de Noé ou dos Patriarcas, de Moisés ou do Deuteronómio, seja nos livros proféticos ou nos salmos. Aí aparece o ser humano ardentemente convidado a participar numa verdadeira «joint-venture» com Deus. Note-se que, ao longo da Bíblia, o «povo escolhido» para ser «luz das nações» simboliza todos os seres humanos que aderem a Deus «de boa vontade» (Lucas,2,14).

Esta aliança estabelece uma relação semelhante à de parentesco, utilizando os termos da relação conjugal – amor e fidelidade. A força da «aliança» não reside portanto nem no ritual nem nos termos do contracto (orais ou escritos). Se é verdade que estes eram frequentemente relembrados (como na noite pascal), também é verdade que a aliança podia ser, na força do termo, renovada. O que leva o profeta Jeremias (31,31-34) a anunciar que as instruções da aliança serão doravante inscritas no coração de cada qual – num ser vivo e não numa pedra ou pergaminho.

Não é esta a nova «aliança» de Jesus Cristo? João Baptista baptizou com água. A água é o grande símbolo do afogamento do mal e de nova vida em «roupa lavada». Jesus mostrou compreender bem o valor deste ritual de aliança (e na «última ceia», a alusão ao seu corpo e sangue lembra os aspectos sangrentos das primeiras alianças). Mas o próprio Baptista reforçou a visão de Jeremias: Deus quer ser o mais íntimo amigo, partilhando connosco a criatividade e força do seu «espírito» – e é esta a novidade do baptismo de Jesus. Como diz a 2ª leitura, trata-se da aliança responsável com um Deus que liberta as nossas capacidades para com Ele criarmos «um novo céu e nova terra onde habitará a justiça».

A chamada «vinda de Deus» é a expressão religiosa do desenvolvimento pleno da Humanidade. Para ele trabalhamos, mesmo quando nos ocupamos de coisas que parecem nada terem a ver com Deus. Mas podemos sentir esse Deus aproximar-se como quem nos vem encher de presentes (1ª leitura) para que saibamos resistir perante as ameaças à alegria de viver.

07-12-2014


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