Liturgia Pagã

 

«Eu cá continuava no recreio»

1º Domingo do Advento  (ano B)

1ª leitura: Livro de Isaías, 63,16b-17.19b; 64,2b-7

2ª leitura: 1ª Carta de S. Paulo aos Coríntios, 1,3-9

Evangelho: S. Marcos, 13,33-37

 

Ainda em meados do século passado, alguns «livros devotos» se deliciavam a contar como o «futuro santo» já em pequenino se recusava a mamar às Sextas Feiras – o dia de penitência e da morte de Jesus Cristo. Eram consideradas «leituras edificantes». Felizmente havia histórias menos lendárias: há coisa de 500 anos, um grupo de rapazes, que hoje chamaríamos seminaristas, jogava entusiasmado no recreio. Chega um Padre e pergunta o que faria cada qual se lhes viessem anunciar que morreriam dentro de uma hora. A maioria refugiava-se numa igreja ou junto de um sacerdote. Mas um deles respondeu tranquilamente: «eu cá continuava no recreio». O «rapaz» da história (contada livremente) existiu de facto: morreu jovem e foi canonizado. Como acabara de ingressar na Companhia de Jesus, veio a ser um dos três santos jovens protectores de quem nessa ordem está em formação.

E de certeza que conhecia o evangelho de hoje, que nos manda estar de vigia, não sejamos surpreendidos pela chegada repentina do Senhor da casa que «administramos». Convém abrir-lhe a porta depressa e mostrar que a casa está em ordem. De nada vale ter as paredes cheias de fotografias do Senhor. Nem de nada vale arranjar à pressa qualquer coisa – a não ser que dêmos uma desculpa convincente e sejamos capazes de pedir perdão. O «rapazinho santo» mostrou que um homem a sério se diverte a sério e assim pensa a sério, ama a sério e trabalha a sério!

O tema da vigilância é central na Bíblia. Mas o texto do evangelho de hoje só é esclarecido em ligação com passagens afins, como os capítulos 24 e 25 de S. Mateus, e sobretudo com a imagem de Deus que transparece ao longo dos quatro evangelhos – um Deus connosco.

É elucidativa a parábola das dez virgens que aguardavam a chegada do noivo (Mateus, 25, 1-13). Todas elas podiam ter passado alegremente o longo tempo de espera. Mas cinco eram tontinhas e não trouxeram azeite suficiente para alumiar as candeias. E o noivo que atrasava… Bem correram para comprar mais, mas entretanto ele chegou e ficaram de fora da festa.

Em conclusão: precisamos de sentinelas – mas que sejam poetas também!

Não é fácil «ser sentinela». Ao desconforto físico e à frequente solidão junta-se a pesada responsabilidade pelo que pode acontecer e o medo de ameaças ocultas. A sentinela não pode fixar o olhar num só ponto: arrisca-se a alucinações e aumento de angústia. Por isso, o seu olhar vai varrendo o horizonte com a maior calma possível, para que nada lhe escape, sem perturbar a capacidade de atenção. E nunca deixa de avaliar cuidadosamente quem quer que se aproxime.

Quem é poeta sabe traduzir a voz de todos os ventos. Sabe adivinhar o que ainda mal se sente. E vê com maior agudez o mais ínfimo detalhe – porque é abrangente o seu olhar.

A 1ª leitura é de um poeta sentinela (o poema cobre os capítulos 63 a 65). Sente alguém que se aproxima e mal se vê. E pergunta (63, 1): «Quem é este que surge coberto do sangue dos nossos inimigos? Será este quem nos traz a justiça e nos vem libertar?» O olhar límpido do poeta reconhece Deus que chegou como um Pai destruidor do mal mas a quem nem os filhos dão atenção – e que por isso os abandonou como folhas secas ao remoinho das tempestades. E o poeta pergunta de novo: «Porque é que te ocultas como um deus fraco incapaz de agir? Se te escondes, como te podemos encontrar?»

Jesus revelou Deus como o Poeta sentinela que ele próprio vem ao nosso encontro de braços aberto como um pai (Lucas,15,20-24). E nos ensina a «arte de ser sentinela»: sabendo examinar, sem nos prendermos a um ponto só (não surjam alucinações…), os espantos do universo e do ser humano; os nossos amores e desilusões, prazeres e desgraças. E assim vigiando, «continuamos no recreio»…

30-11-2014


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