A
evolução científica e técnica registada na biologia da
reprodução, com uma rapidez simultaneamente maravilhosa e
alarmante, tem provocado na sociedade sentimentos de esperança,
entusiasmo e aplauso, mas também de medo e desconfiança. O
paradigma desta situação é a clonagem, que demonstra a
possibilidade de uma célula somática (do grego “soma”—
corpo) adulta, diferenciada, readquirira totipotencialidade de
uma célula embrionária, após a integração num ovócito
previamente destituído do seu núcleo, destruindo o conceito
consolidadíssimo de que uma célula diferenciada (isto é, uma
célula “especialista” numa determinada função) não
poderia regressará indiferenciação.
Se
do ponto de vista da evolução do conhecimento (da “pureza
científica”) a importância positiva deste passo é
inquestionável, já algumas notícias (ou acontecimentos)
posteriores assumem um significado bem distinto.
Os
anúncios da intenção e da prática da clonagem reprodutiva
constituem manifestações de imprudência e de
irresponsabilidade, pela ausência de argumentos científicos
que sustentem a segurança desta prática. Pelo contrário, as
preocupações teóricas suscitadas pela utilização de uma célula
somática “envelhecida”, que acumulou sucessivas alterações
ao nível da sua informação genética, têm-se concretizado,
total ou parcialmente, nos animais clonados (envelhecimento
precoce, maior risco de malformações, doenças degenerativas e
cancro, ...).
Por
outro lado, se o objectivo da clonagem é obter uma copia do próprio
indivíduo é importante esclarecer que, se nem o “eu” é
totalmente reproduzível (pois a nossa constituição genética
sofre alterações ao longo da vida), muito menos a “circunstância”
o será, pelo que a interacção genoma (totalidade da informação
genética)! ambiente gerará um resultado distinto.
Perspectiva
diferente merece a designada clonagem terapêutica, exactamente
porque a possibilidade técnica de fazer regressar uma célula
somática adulta à indiferenciação embrionária abre um
potencial enorme no aumento da eficácia dos transplantes de
tecidos e órgãos e no tratamento de muitas doenças graves,
nomeadamente do sistema nervoso. Isto através da possibilidade
de — sobretudo após o conhecimento do genoma humano
ultrapassar o nível anatómico, estrutural, e atingir o plano
do entendimento funcional — orientar a diferenciação
(“especialização”) das células, ou introduzir um gene
especifico, no sentido terapêutico desejado.
Esta
prática, por cumprir fielmente um dos escopos fundamentais da
medicina —tratar os doentes —, não deve ser coarctada,
embora os respectivos projectos de investigação devam ser
criteriosamente definidos.
Os riscos
inevitáveis de desvios perversos que todos os avanços científicos
e técnicos comportam não devem constituir a imagem mais forte
que chega à sociedade e, sobretudo, ao poder legislativo. Este
tem a responsabilidade de não se deixar envolver por posições
ético-filosóficas excessivas que, prevalecendo, poderão
resultar na indignidade de não fazermos o que será possível
para diminuir a doença, não no sentido negativo e pejorativo
da manipulação perseguindo a eugenia, mas com a nobreza de
quem tem como obrigação fazer com que as próximas gerações
possam ter menos doenças e menos graves.. PROF. CATEDRÁTICO DE GENÉTICA,
FACULDADE DE MEDICINA DO PORTO
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