Alexandre Quintanilha, Os clones culturais metem mais medo que os genéticos, in: "PÚBLICO". Ano XIII, n.º 4685, 19/01/2003, pág. 3.

Os clones culturais metem mais medo que os genéticos


A OPINIÃO DE ALEXANDRE QUINTANILHA

Quando aparecer o primeiro clone, alguém vai recusar dar-lhe dignidade humana?


Porquê falar tanto de clonagem genética, e não da clonagem cultural? Uma das imagens mais assus­tadoras neste debate é a de exércitos de Hitlers ou Estalines. Mas estes monstros não usaram clonagem genética para convencerem milhões da pureza da raça ariana ou da supremacia da ditadura do proletariado. Outros houve que souberam justificar a lnquisição. Muitos continuam a defender o direito divino às terras que banham o rio Jordão. E regulamente ouvimos falar de limpezas étnicas assustadoras. Isto porque acreditam ser essa a mensagem do profeta ou do messias, que, ou já veio, ou está para vir, ou já está entre nós. E ainda os que, arvorando fundamentalismos de vários tons, matam, torturam ou amordaçam aqueles que não partilham das mesmas convicções. Quantas centenas de milhões de seres humanos foram sacrificados, nos últimos séculos, como conse­quência destas clonagens de ideais?

Uma das ideias preocupantes é a de que os clones humanos seriam desprovidos de identi­dade. Isto porque a identidade é conferida pelo ADN e, portanto, uma réplica quase idêntica ao original, não teria identidade. Mas, no caso de gémeos do mesmo ovo, que eu saiba, ainda ninguém se lembrou de retirar a identidade a um deles. E quando começamos a receber órgãos transplantados de outros seres humanos (com ADN diferente), ainda não consegui calcular qual a percentagem de órgãos que levaria à perda da nossa identidade.

Curiosa ainda é a ideia de que a clonagem seria contra as leis da Natureza. Mas, quase todos os avanços tecnológicos não são mais do que formas de controlar ou dominar a natureza. Quando vacinamos alguém, estamos claramente a tentar impedir que esse ser seja eliminado por uma doença infecciosa, contra a qual só alguns de nós é que teríamos defesas naturais. Não estaremos a contrariar as leis da natureza? E não se poderia argumentar de forma análoga em relação aos transplantes, aos antibióticos e à reprodução medicamente assistida?

Depois temos as questões da paternidade e da finalidade. Será que deveríamos proibir mulheres solteiras de terem filhos? Ou de imaginar que os filhos adoptados não são amados?

O que é novo assusta e fascina. Quando os transplantes surgiram, muitos invocaram monstros de Frankenstein. Mais recentemente, a ideia de bebés-proveta levantou protestos que ainda se ouvem. Mas são muitos os milhares que estão à espera de órgãos, ou de ajuda médica para se reproduzirem. E muitas mães são solteiras, e as listas de espera para a adopção são enormes.

Suspeito que quando percebermos finalmente que um clone não é uma réplica idêntica, deixaremos de recear os exércitos de Hitlers e de pensar que podemos reconstruir um ente querido que perdemos. Quando aparecer o primeiro clone, alguém vai recusar dar-lhe dignidade humana?

Há décadas dizia-se: ”Diz-me com quem andas e eu dir-te-ei quem és.” Hoje diz-se: “Mostra-me o teu ADN e eu dir-te-ei quem és.” Ambas contêm um grão de verdade. Quando a tecnologia for aperfeiçoada, terei certamente muito mais medo dos clones culturais do que dos genéticos

BIÓLOGO, DIRECTOR DO INSTITUTO DE BIOLOGIA MOLECULAR E CELULAR DA UNIVERSIDADE DO PORTO

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Inserido em 20-04-2018