Porquê
falar tanto de clonagem genética, e não da clonagem cultural?
Uma das imagens mais assustadoras neste debate é a de exércitos
de Hitlers ou Estalines. Mas estes monstros não usaram clonagem
genética para convencerem milhões da pureza da raça ariana ou
da supremacia da ditadura do proletariado. Outros houve que
souberam justificar a lnquisição. Muitos continuam a defender
o direito divino às terras que banham o rio Jordão. E
regulamente ouvimos falar de limpezas étnicas assustadoras.
Isto porque acreditam ser essa a mensagem do profeta ou do
messias, que, ou já veio, ou está para vir, ou já está entre
nós. E ainda os que, arvorando fundamentalismos de vários
tons, matam, torturam ou amordaçam aqueles que não partilham
das mesmas convicções. Quantas centenas de milhões de seres
humanos foram sacrificados, nos últimos séculos, como consequência
destas clonagens de ideais?
Uma
das ideias preocupantes é a de que os clones humanos seriam
desprovidos de identidade. Isto porque a identidade é
conferida pelo ADN e, portanto, uma réplica quase idêntica ao
original, não teria identidade. Mas, no caso de gémeos do
mesmo ovo, que eu saiba, ainda ninguém se lembrou de retirar a
identidade a um deles. E quando começamos a receber órgãos
transplantados de outros seres humanos (com ADN diferente),
ainda não consegui calcular qual a percentagem de órgãos que
levaria à perda da nossa identidade.
Curiosa
ainda é a ideia de que a clonagem seria contra as leis da
Natureza. Mas, quase todos os avanços tecnológicos não são
mais do que formas de controlar ou dominar a natureza. Quando
vacinamos alguém, estamos claramente a tentar impedir que esse
ser seja eliminado por uma doença infecciosa, contra a qual só
alguns de nós é que teríamos defesas naturais. Não estaremos
a contrariar as leis da natureza? E
não se poderia
argumentar de forma análoga em relação aos transplantes, aos
antibióticos e à reprodução medicamente assistida?
Depois
temos as questões da paternidade e da finalidade. Será que
deveríamos proibir mulheres solteiras de terem filhos? Ou de
imaginar que os filhos adoptados não são amados?
O
que é novo assusta e fascina. Quando os transplantes surgiram,
muitos invocaram monstros de Frankenstein. Mais recentemente, a
ideia de bebés-proveta levantou protestos que ainda se ouvem.
Mas são muitos os milhares que estão à espera de órgãos, ou
de ajuda médica para se reproduzirem. E muitas mães são
solteiras, e as listas de espera para a adopção são enormes.
Suspeito
que quando percebermos finalmente que um clone não é uma réplica
idêntica, deixaremos de recear os exércitos de Hitlers e de
pensar que podemos reconstruir um ente querido que perdemos.
Quando aparecer o primeiro clone, alguém vai recusar dar-lhe
dignidade humana?
Há
décadas dizia-se: ”Diz-me com quem andas e eu dir-te-ei quem
és.” Hoje diz-se: “Mostra-me o teu ADN e eu dir-te-ei quem
és.” Ambas contêm um grão de verdade. Quando a tecnologia
for aperfeiçoada, terei certamente muito mais medo dos clones
culturais do que dos genéticos
BIÓLOGO,
DIRECTOR DO INSTITUTO DE BIOLOGIA
MOLECULAR E CELULAR
DA UNIVERSIDADE DO PORTO
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