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A musa do Mondego
 
por
 Arq. Walter Rossa

 

NO PONTO onde o Mondego tem o seu derradeiro estrangulamento, era inevitável que desabrochasse uma cidade. A Ponte é o sítio mais favorável à travessia antes dos terrenos alagadiços do Baixo Mondego. 

Daí que o remoto trilho sistematizado na romanização como via Olissipo-Braccara cruzasse fatalmente o Mondego neste ponto e que das ensolaradas elevações da margem direita a mais próxima e com água no subsolo se constituísse em guardiã da travessia do rio. 

Para entender Coimbra na História, é de capital importância esse fatalismo geográfico que lhe determinou papéis vários de centralidade, fronteira, portagem, encruzilhada a diversas escalas ao longo do tempo. 

No início da nossa era, o leito do rio correria fundo entre duas acidentadas margens. A sedimentação provocou o alargamento do leito, entretanto artificialmente reduzido com a construção de cais e aterros que, definitivamente (?), impediram as cíclicas inundações. Só assim pô­de a cidade espraiar-se pe­las margens, coisa com me­nos de século e meio. 

Da Coimbra romana, Aeminium, pouco se sabe. Teria uma ponte, mas dados seguros são apenas: o perímetro, o traçado das muralhas, as portas, o aqueduto, a necrópole, a localização do seu centro monumental/fórum na zona correspondente ao Paço Episcopal/Sé Nova. Deste último conjunto restou o criptopórtico em três pisos que hoje integra e parcialmente sustenta o Museu Nacional Machado de Castro, quiçá a primeira operação de obtenção de espaço público plano na difícil topografia da cidade. 

Estes elementos eram articulados pelo, hoje em parte obliterado, eixo orgânico que, da Porta do Sol chegava à Porta de Almedina e que no centro cívico/fórum se cruzava com um outro, a matriz da rua que atravessa a Alta entre os topos das couraças dos Apóstolos e de Lisboa. A esta relação se deveria a regularidade da malha que, até à reforma do Estado Novo, se verificava no Sul da colina. Do período romano serão as já referidas couraças, troços do «pommerium» romano que pelo interior do perímetro muralhado articulava as portas e os extremos dos eixos estruturantes. 

Da queda do Império Romano à reconquista definitiva da cidade pelos cristãos (1064), as várias trocas de domínio (suevo, visigodo, islâmico) tiveram implicações urbanísticas desprezáveis. A importância regional da cidade crescia. A mudança da sede de bispado de Conímbriga para Eminio nos anos oitenta do séc. VI foi a confirmação dis­so, e a partir dela se deu gradualmente a mudança de nome para Colimbriae — Coimbra enfim. 

Nos primeiros tempos da nacionalidade, a permanência do vale do Mondego como seu referente fronteiriço levou a que os primeiros reis fizes­sem da cidade morada preferencial, ali nascendo quase todos os príncipes da I Dinastia. Nesse con­texto surgiu o Mosteiro de Santa Cruz, fundado com o empenho de D. Afonso Henriques, que para tal cedeu os seus banhos, umas prováveis termas romanas.

 

A lusa casa-mãe agostinha, para além de forja intelectual e legitimadora da nacionalidade, foi também o primeiro da sé­rie de conventos-panteões da monarquia portuguesa. As termas tiravam partido da ribeira, a linha de água que corria no fundo do vale, e a implantação do convento sobre ela catali­sou o crescimento da cidade sobre e para além do seu curso final. Em contrapartida, constituiu-se como barreira à ocupação a montante.   

A TÍMIDA extensão urbana fora de portas, desenvolvida segundo a via Lisboa-Braga e comprimida entre a frente poente da muralha e a linha média de cheia do rio, encontrava mais espaço. A conjugação da porta Oeste (Almedina) com dois pequenos templos cravados na encosta de então (S. Bartolomeu e S. Tiago) havia já potenciado um alongado terreiro onde se realizava a praça. A construção de uma ponte foi outro dos empreendimentos de D. Afonso Henriques, obra que se prolongou pelos reinados seguintes, a par com os constantes reforços da muralha, as reformas nos templos, entre os quais a Sé (a meio do principal eixo estruturante), e a fixação de instituições de assistência e de conventos (Donas, Celas, S. Jorge, S. Francisco, Santa Ana, S. Domingos, Santa Clara), todos em arrabalde ou na margem oposta, dada a falta de espaço. 

A partir do séc. XIII, a estabilização das fronteiras tornou definitiva a deslocação do centro administrativo para Lisboa. Apesar de tudo, Coimbra solidificava a sua estrutura urbana. O centro cívico da cidade, outrora concentrado em torno da Sé, desceu o Quebra-Costas, não ultrapassando ainda a Porta de Almedina. Era então grande o empenho régio em manter a população a residir intramuros, para tal sendo concedidos grandes privilégios. Mas a acessibilidade aos cais, a intensificação das trocas comerciais e o grande terreiro comum a Santiago e a S. Bartolomeu eram factores incontornáveis. 

O reformismo urbanístico do período manue­lino veio confirmar essa tendência. Para além de intervenções profundas em Santa Cruz, do folgamento dos largos da Sé e de Sanção e da integral renovação da ponte afonsina, o terreiro foi refeito com a implantação de equipamentos novos ou renovados — Câmara, pelourinho, tabeliães, açougue, mercado, Misericórdia, hospital —, passando a ser o centro da cidade, a sua praça.   

Com ela se desenvolviam em altura e ocupação as ruas de Coruche e da Calçada (futuras Visconde da Luz e Ferreira Borges), preenchendo-se também o espaço até ao rio e Santa Justa, no que hoje é o Terreiro da Erva. A cidade muralhada (Alta) foi-se desertificando, mas muito pouco tempo depois um acontecimento mudava definitivamente a sorte urbanística de Coimbra. Em 1537, pela terceira vez, a Universidade foi transferida de Lisboa para Coimbra, só que desta vez o radicalismo da reforma deu origem a um amplo programa construtivo que a fixou definitivamente. Para tal se lançou mão de todos os recursos possíveis, em especial dos bens de Santa Cruz.

O processo pode-se esboçar em dois momentos, a que correspondem também dois espaços: a fase humanista na Baixa, com a instalação do primeiro Colégio das Artes, gerando largo/pátio próprio e a abertura da Rua de Santa Sofia; a da Contra-Reforma, que, a partir da entrega da tutela do Colégio das Artes aos Jesuítas, deslocou o centro universitário para a Alta.

O rei cedera os seus paços para a instalação dos Gerais. Se a abertura da nova rua é a face da reforma de D. João III, a segunda é a marca que tornou Coimbra a única cidade do Antigo Regime a manter vitalidade na sua velha cidadela e a ver sociológica e culturalmente dividido — entre escolares e futricas — o seu espaço urbano.

A Universidade atraía uma população que era necessário alojar, o que deu origem à densificação do casco urbano, em especial na Alta, onde, com o jesuíta Largo da Feira, surgia a toponimicamente reveladora Rua Larga. Com D. João V, à inconsequente reforma dos estudos correspondeu uma valorização urbanística do espaço universitário. Ergueu-se a nova torre da Universidade, implantou-se a nova Casa da Livraria.

APONTANDO um dos futuros eixos de desenvolvimento urbano, em 1748 e por iniciativa episcopal, iniciou-se a construção do Seminário. A cidade, que no século anterior substituíra os seus assoreados conventos de S. Francisco, Santa Clara, Santa Ana e S. Domingos (este ainda no séc. XVI) e agora renovava alguns dos templos (S. Bartolomeu, Santa Justa, S. Pedro, S. João), continuava a combater os excessos do rio. 

No auge do reformismo iluminista pombalino, a refundação da Universidade, voltando-a para as Ciências e para o experimentalismo, ficou muito aquém dos seus propósitos urbanísticos. Apesar de tudo, o colégio jesuíta foi reconvertido em sede episcopal, hospital universitário, Museu de História Natural e Gabinete de Física, dando os seus anexos lugar ao Laboratório Químico e o logradouro a uma nova praça. O Pátio das Escolas ganhou a sua feição actual. A praça da Baixa perdeu definitivamente o hospital e a Misericórdia agora instalada na velha Sé. Mais determinante foi a criação do Jardim Botânico, a mancha verde que cintou por todo o Sul a velha Almedina.

O processo de construção do Botânico arrastou-se pelas primeiras décadas da Idade Contemporânea e, com a extinção das ordens religiosas, tornou inevitável a abertura à urbanização da vertente oposta, ou seja, da Quinta de Santa Cruz. 

Por razões óbvias, só na Regeneração se conjugaram as sinergias necessárias a mudança tão radical. Em 1866, a mudança do mercado para o local actual, levando a praça da cidade à designação de Praça Velha, foi um passo simbólico. A aber­tura da actual Avenida Sá da Bandeira, para além de articular o casario de Montarroio com a Alta, anulou a exclusividade de utilização do velho eixo que atravessava esta até á estrada da Beira. A actual Praça República passou a articular os aces­sos ao burgo e à Alta, tirando partido do espaço de lazer que fora dos crúzios e agora era da cidade: o Parque (ou Jardim) da Sereia, onde a Académica veio a ter o seu primeiro campo de jogos. O caminho-de-ferro (1864), uma nova ponte (1875), as obras do cais, a concomitante abertu­ra da actual Avenida Navarro e com ela do mais directo acesso à estrada da Beira, a reconfiguração do Largo da Portagem e a construção dos novos Paços do Concelho são marcos da cidade pós-revolução industrial, que no aterro do novo cais e em Santa Clara também se industrializou. 

Foi com essa dinâmica que Coimbra entrou no séc. XX, expandindo-se segundo a topografia e velhos caminhos rurais, refinando tipologias arquitectónicas específicas como as da encosta de Montarroio. Foi a pressão demográfica da imigração beirã dos anos 30 (e a ligação de Salazar a Coimbra) que levou o Estado Novo a empenhar-se no plano da cidade nas décadas de 1940 e 1950. 

Na esteira do plano encomendado a De Grõer surgiu um conjunto de bairros sociais (Loreto, Cheira, Marechal Carmona/Norton de Matos, Sete Fontes, Cumeada, Santa Clara, Fonte do Castanheiro), sendo aglutinados pela cidade o lugar dos Olivais e os sítios do Calhabé e da Arregaça e abertas artérias urbanas como as avenidas Fernão de Magalhães, Afonso Henriques e Dias da Silva. Para além da nova ponte, a concentração de outras marcantes infra-estruturas urbanas (liceu, magistério, estádio) serviu de suporte a uma das raras concretizações portuguesas de um plano inspirado na Carta de Atenas: a Solum. Ainda hoje as mais marcantes opções de ordenamento se inspiram nas reflexões de De Grõer (vales das Flores e de Coselhas, ponte-açude, circular urbana) e só há pouco se abandonou a polémica ideia da Avenida de Santa Cruz (vulgo «bota-abaixo»). 

Foi no entanto a Universidade que registou a intervenção emblemática do Estado Novo. Contra os princípios formulados por De Grõer, foi (re)instalada no seu próprio espaço. De for­ma violenta, o casco urbano foi arrasado, obras de arte destruídas e a topografia radicalmente regularizada. Sem deixar de lamentar o que se perdeu, não se pode, no entanto, deixar de registar que nem assim a estrutura milenar da cidade, o seu perímetro e acessos se remeteram em exclusivo para a memória.

WALTER ROSSA (Arquitecto)


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