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Artigos Publicados


As Cidades Invisíveis, de Ítalo Calvino

"Região Bairradina", n.º 681, Out. 2001

 

Não é frequente ler-se um livro que dê tanto prazer como este que agora li, embora já vá na 4ª edição portuguesa; isso mostra, desde já, o grande interesse que suscitou juntou do público leitor.

A obra está construída de um modo rigorosamente programado. Distribui-se por nove capítulos, em que cada um deles aborda temáticas como sejam as cidades e a memória, as cidades e o desejo, etc. Estes temas vão-se repetindo ao longo dos capítulos, sempre de uma forma regular, diria mesmo matemática pois, na verdade, os temas distribuem-se segundo uma sucessão.

No primeiro capítulo aparecem quatro temas (as cidades e a memória, as cidades e o desejo, as cidades e os sinais, as cidades subtis). Nos capítulos seguintes (2º, 3º, 4º, 5º, 6º, 7º e 8º) aparece em cada um deles um novo tema ao mesmo tempo que os primeiros temas vão desaparecendo a partir do capítulo 3º e assim será até ao fim.

No início e no fim de cada capítulo, o narrador (que é o narrador autoral) relata as conversas e outros aspectos relacionais entre Marco Polo e Kublai Kan (o grande Kan).

Os temas apresentam-se sob a forma de pequenos contos ou de pequenas crónicas ou mesmo, nalguns casos pelo menos, como verdadeiros poemas em prosa dada a sua enorme carga poética.

Constitui uma reflexão sobre os espaços urbanos como se eles se situassem no oriente (as cidades possuem nomes inventados) passando-se a acção por vezes (mas só por vezes) em tempos recuados. E o que nós temos debaixo dos nossos olhos são os aspectos que fazem das cidades coisas únicas, umas vezes para amar, outras para odiar, outras para lembrar e outras ainda para esquecer.

A título de exemplo, no primeiro texto escrito sob o tema as cidades e o desejo podem ler-se estas linhas belíssimas a respeito do registo do passado (p. 14): […] Mas a cidade não conta o seu passado, contém-no como as linhas da mão, escrito nas esquinas das ruas, nas grades das janelas, nos corrimões das escadas, nas antenas dos pára-raios, nos postes das bandeiras […]. É que todos estes objectos se transformaram em objectos culturais, em símbolos de um período da história do homem.

No terceiro texto, dedicado ao desejo, alude à razão de ser das cidades, à sua génese (p.22): […] Todas as cidades recebem a sua forma do deserto a que se opõem; […].

Na segunda vez em que fala das cidades e dos sinais (p.23) tem esta frase lapidar acerca do que desencadeia os mecanismos da memória: […] A memória é redundante: repete os sinais para que a cidade comece a existir.

Se é verdade que se percebe, aqui e acolá, a grande admiração pelo que significa ou significou de empenhamento humano na construção das cidades, também é verdade que se percebe o desencanto de ver muitas cidades serem transformadas em espaços desumanizados onde uma parte significativa da população se arruma, não já de acordo com uma ordem natural decorrente de um crescimento harmónico que tivesse a ver com a proximidade das pessoas entre si, entre elas e os locais de trabalho, entre elas e os locais de abastecimento mas segundo uma distribuição perfeitamente aleatória, a distribuição do “salve-se quem puder”.

As cidades, muitas pelo menos, são complexos desorganizados onde tudo e todos se atropelam, se incomodam mutuamente, ao invés da cidade antiga onde a solidariedade era possível. Transformou-se num espaço a-solidário ou mesmo anti-solidário.

De todos esses aspectos nos dá conta Ítalo Calvino, numa linguagem enxuta, sem demasiados adjectivos, concisa, sem concessões.

Num tempo em que todos nos tornamos cada vez mais urbanos, quer queiramos, quer não, vale a pena ler esta obra maravilhosa, agora editada pela Teorema, com a tradução desse homem que tanto tem feito pela divulgação da literatura italiana em Portugal e que se chama José Colaço Barreiros. Ler a obra e meditar nas muitas pistas de reflexão que oferece é, naturalmente, reforçar-lhe o sentido. Em contrapartida, o leitor aufere do gozo estético que tal leitura possibilita. E sai enriquecido, acrescento eu que não sou homem de intrigas.

Luís Serrano, Out. 2001

 


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