Não é frequente ler-se um livro
que dê tanto prazer como este que agora li, embora já vá na 4ª
edição portuguesa; isso mostra, desde já, o grande interesse que
suscitou juntou do público leitor.
A obra está construída de um modo
rigorosamente programado. Distribui-se por nove capítulos, em que
cada um deles aborda temáticas como sejam as
cidades e a memória, as cidades e o desejo, etc. Estes temas vão-se
repetindo ao longo dos capítulos, sempre de uma forma regular,
diria mesmo matemática pois, na verdade, os temas distribuem-se
segundo uma sucessão.
No primeiro capítulo aparecem
quatro temas (as cidades e a memória, as cidades e o desejo, as
cidades e os sinais, as cidades subtis). Nos capítulos seguintes (2º,
3º, 4º, 5º, 6º, 7º e 8º) aparece em cada um deles um novo tema
ao mesmo tempo que os primeiros temas vão desaparecendo a partir do
capítulo 3º e assim será até ao fim.
No início e no fim de cada capítulo,
o narrador (que é o narrador autoral) relata as conversas e outros
aspectos relacionais entre Marco Polo e Kublai Kan (o grande Kan).
Os temas apresentam-se sob a forma
de pequenos contos ou de pequenas crónicas ou mesmo, nalguns casos
pelo menos, como verdadeiros poemas em prosa dada a sua enorme carga
poética.
Constitui uma reflexão sobre os
espaços urbanos como se eles se situassem no oriente (as cidades
possuem nomes inventados) passando-se a acção por vezes (mas só
por vezes) em tempos recuados. E o que nós temos debaixo dos nossos
olhos são os aspectos que fazem das cidades coisas únicas, umas
vezes para amar, outras para odiar, outras para lembrar e outras
ainda para esquecer.
A título de exemplo, no primeiro
texto escrito sob o tema as
cidades e o desejo podem ler-se estas linhas belíssimas a
respeito do registo do passado (p. 14): […] Mas
a cidade não conta o seu passado, contém-no como as linhas da mão,
escrito nas esquinas das ruas, nas grades das janelas, nos corrimões
das escadas, nas antenas dos pára-raios, nos postes das bandeiras […].
É que todos estes objectos se transformaram em objectos culturais,
em símbolos de um período da história do homem.
No terceiro texto, dedicado ao
desejo, alude à razão de ser das cidades, à sua génese (p.22):
[…] Todas as cidades recebem
a sua forma do deserto a que se opõem; […].
Na segunda vez em que fala das
cidades e dos sinais (p.23) tem esta frase lapidar acerca do que
desencadeia os mecanismos da memória: […] A
memória é redundante: repete os sinais para que a cidade comece a
existir.
Se é verdade que se percebe, aqui
e acolá, a grande admiração pelo que significa ou significou de
empenhamento humano na construção das cidades, também é verdade
que se percebe o desencanto de ver muitas cidades serem
transformadas em espaços desumanizados onde uma parte significativa
da população se arruma, não já de acordo com uma ordem natural
decorrente de um crescimento harmónico que tivesse a ver com a
proximidade das pessoas entre si, entre elas e os locais de
trabalho, entre elas e os locais de abastecimento mas segundo uma
distribuição perfeitamente aleatória, a distribuição do
“salve-se quem puder”.
As cidades, muitas pelo menos, são
complexos desorganizados onde tudo e todos se atropelam, se
incomodam mutuamente, ao invés da cidade antiga onde a
solidariedade era possível. Transformou-se num espaço a-solidário
ou mesmo anti-solidário.
De todos esses aspectos nos dá
conta Ítalo Calvino, numa linguagem enxuta, sem demasiados
adjectivos, concisa, sem concessões.
Num tempo em que todos nos tornamos
cada vez mais urbanos, quer queiramos, quer não, vale a pena ler
esta obra maravilhosa, agora editada pela Teorema, com a tradução
desse homem que tanto tem feito pela divulgação da literatura
italiana em Portugal e que se chama José Colaço Barreiros. Ler a
obra e meditar nas muitas pistas de reflexão que oferece é,
naturalmente, reforçar-lhe o sentido. Em contrapartida, o leitor
aufere do gozo estético que tal leitura possibilita. E sai
enriquecido, acrescento eu que não sou homem de intrigas.
Luís Serrano, Out. 2001
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