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Dois poemas de Micropaisagem (1)

Letras e Letras 61, Dez. 1991

 

 

1. Constitui lugar comum dizer que toda a obra (poesia e prosa) de Carlos de Oliveira não tem senão um tema: a Gândara. Se isto não é rigorosamente verdadeiro, também, convenhamos, não se desvia muito da verdade.

E pelo que a Micropaisagem se refere, eu creio que é particularmente pertinente em relação aos dois primeiros títulos: Estalactite e Árvore.

E era, justamente, sobre esses dois poemas que eu gostaria de tecer algumas considerações.

É que em ambos há preocupações que têm a ver com a definição de uma Arte Poética e em ambos há também um sentido de metamorfose, de transformação (reversível no 1º caso, onde se pode falar de um ciclo do cálcio que se inicia com a dissolução do calcário e termina pela sua precipitação para recomeçar de novo e irreversível no 2º caso onde pela presença do homem a árvore acaba por se transformar em pranchas de soalho, em móveis e baús que na melhor das hipóteses passarão a funcionar como um signo que a memória registará).

 

2. Vejamos, então, o poema Estalactite.

A estalactite é uma formação colunar de carbonato de cálcio que é comum em grutas calcárias e que aparece na zona de Cantanhede-Ançã, precisamente no limite oriental da Gândara, que o escritor bem conhecia.

Que a poesia de Carlos de Oliveira pretende dar conta das transformações e ser ela própria mimética em relação a elas é o que julgo poder deduzir-se do modo como as alusões à escrita poética se imbricam com a alusão ao fenómeno natural da dissolução e precipitação dos calcários.

Há uma verdadeira intersecção dessas duas áreas que as aproxima até quase à identificação. Vejam-se a título de exemplo:

[...] para / a cal / florir / nesta caligrafia / de pétalas / e letras /(p. 35); o pulsar / das palavras / atraídas / ao chão / desta colina (p. 37); olhá-las [as palavras] / como imagens / no espelho / que as reflecte / de novo / compreensíveis / e tornar / a juntá-las/ obsessivamente / ao ritmo da pedra / dissolvidas /(p. 43); [...] o cristal / incerto do poema / entre / a água / e a cal / (p. 50).

O poema apresenta-se dividido em 24 partes (estâncias numeradas de I a XXIV), contendo cada uma 14 versos sem ruptura de continuidade, qualidade que me parece ser de destacar. Ainda que algumas das estâncias terminem por um ponto (I a XI), a maioria termina ou por vírgula, ou por dois pontos ou, pura e simplesmente, a estância liga-se à seguinte sem nenhum sinal de pontuação a separá-las, explicitando, assim, a meu ver, essa solução de continuidade, de relacionamento que outros aspectos confirmam.

Tal relacionamento ou diálogo traduz, quanto a mim, o aspecto mais interessante de Estalactite e faz-se, por um jogo de acções e reacções veiculadas por um conjunto de 10 substantivos, muito frequentes, a saber: água (aparece 11 vezes), cal (10 vezes), colina (7 vezes), espaço (4 vezes), flores (9 vezes), gotas (8 vezes), milénios (4 vezes) e pedra (7 vezes).

Este núcleo lexical define um campo semântico em que se pode distinguir: de um lado, um agente activo, a água (que promove a dissolução, a degradação, a destruição, em suma); do outro, três agentes passivos que possuem entre si relações (do particular para o geral: cal, pedra, colina).

O agente activo, a água, fonte de vida, meio de purificação, centro de regeneração (2), processa a sua acção sob a forma de gotas e tendo em conta o seu peso, qualidades que, de resto, a própria pedra possui, como se pode ver pelos seguintes exemplos:

[...] gotas de água / ou pedra / levadas / pelo seu peso / (p. 35 e 49); [...] o peso / da água / a tal distância / é quase imperceptível, / porém pesa, / (p. 41).

Significa isto que gotas e peso estabelecem a ponte entre o agente activo, a água, e os agentes passivos, a cal, a pedra e a colina e contribuem decisivamente para a reversibilidade desta acção: a dissolução da pedra e a precipitação da  pedra sob a forma de flores ou de estalactites, como o título refere.

Trata-se de acções e reacções que se processam num certo espaço ao longo de períodos de tempo que se medem em milhares e em milhões de anos, o que no poema é traduzido quer pela palavra tempo, quer, e sobretudo, pela palavra milénios.

A recriação de todo este conflito, pois que de um conflito se trata, com as suas degradações e agradações (no sentido do inglês agradation) constitui o poema.

            Esquematicamente, poderíamos representá-lo assim.

 

                          ??????????????? 

 

Diríamos, então, que numa primeira fase haveria a pedra (afirmação) a que se seguiria a dissolução da pedra (negação) e finalmente a precipitação das flores calcárias (negação da negação), síntese que é simultaneamente, como o próprio poeta diz, água e pedra: sombra / som [...], material de que se faz o próprio poema, ele também a síntese possível (o aproveitamento da explosão, em O Aprendiz de Feiticeiro, p. 265) ou de  Estalactite: [...] o crepúsculo / entrando / poro a poro / pela mão / que escreve / encaminhando-as / entre / a pouca luz / do texto / à sílaba inicial / da única palavra / que é / ao mesmo tempo / água e pedra: sombra, / som [...] (p. 53).

É difícil não ver no poema uma espantosa metáfora de todo o ciclo da vida humana (apesar da reversibilidade apontada no início) e ao mesmo tempo uma mal disfarçada Arte Poética. Senão, vejamos (p. 44 e 45):

[...] perdê-las [as palavras] / entre a cal e a água / espaço / de tensões obscuras / [...] reavê-las / num grau de pureza / [...] quando / o poema / atinge / tal /concentração/ que transforma / a própria / lucidez / em energia / e explode / para sair / de si [...].

Há aqui, creio eu, uma clara semelhança entre a construção do poema (pela purificação das palavras) e a construção-destruição (agradação-degradação) da paisagem.

 O poema nasce quando o limite / da estabilidade, / o equilíbrio / é transgredido e que coincide no espaço, coberto por um céu calcário, com a génese das flores calcárias.

Ambos os acontecimentos não pode(m) / com mais silêncio / oculto [...] e representam a superação possível num espaço de óbvias tensões obscuras.

Cabe referir ainda a utilização de certos sinais gráficos como setas, chavetas, parênteses rectos (incomuns em poesia) e que servem para acrescentar significado do modo mais condensado e mais aparente significado e relação.

            Sirvam de exemplo:

            água      cal;   cal      colina               a cal                            a água

                                                            entre                            entre                      som(bra)

                                                                        e a água                e a cal

 

Ao que atrás se disse acrescente-se ainda o emprego de versos extremamente curtos (às vezes mono-, di- e trissilábicos) e de aliterações que mais nos comunicam essa sensação de gotas de água caindo de um tecto.

Como exemplo, vejam-se as aliterações em [p] e em [k] da p. 41: imperceptível / porém pesa, / paira, / poisa no papel / um passado / de pedra / [cal colina] / que queima / quando / cai.

3. Em relação ao poema Árvore, que de uma forma tão conseguida traduz a ligação à terra (à areia) da própria família do poeta, poder-se-ão fazer comentários muito semelhantes aos anteriores. Vale a pena, julgo eu, ler ou reler o capítulo Na floresta, de O Aprendiz de Feiticeiro (3), a este propósito.

"A árvore é símbolo da vida, em perpétua evolução, em ascensão para o céu e evoca todo o simbolismo da verticalidade. Por outro lado, simboliza o carácter cíclico da evolução cósmica:  morte e regeneração, sendo assimilada à mãe, à fonte, à água primordial da qual possui toda a ambivalência (fálica e matricial)" (4).

Neste poema, o poeta exprime o real e simultaneamente o modo de o passar à escrita poética; dessa ambivalência nos fica, como característica masculina, a penetração das raízes da árvore (no chão, nas páginas do livro, na própria linguagem:

as raízes da árvore / rebentam / nesta página / [...] invadem o poema  (p. 55); [...] que as raízes / procuram / de página / em página / [...] trespassando o papel / (p. 56); [...] como podem / crescer [as raízes] / de tal modo / no poema, / se a árvore / foi dispersa [...] (p. 58); [...] procuram / instalar-se [as raízes] / no interior da linguagem / (p. 59); e como característica feminina a dispersão da árvore nas areias onde repousam para sempre os ossos da família: [...] e pressinto / as raízes / através da sílica / onde a família dorme / com os ossos dispostos / nessa arquitectura / duvidosa / de símbolos / [...] (p. 61).

A árvore não é aqui mais o agente fecundante; é a matriz a que finalmente se regressa e assim a árvore (o real) transforma-se em puro símbolo, é um registo na memória sob a forma de [...] baú ponteado / como o céu / por tachas amarelas, / por estrelas / pregadas na madeira / da árvore (p. 62).

Também aqui é visível essa intersecção/identificação entre o mundo real e a escrita.

E também aqui há uma árvore (afirmação) que morre (negação) e se transforma em pranchas de soalho e em baús (negação da negação), caminho que o poema acompanha com as suas contradições; recorde-se que o baú assume ainda uma especial importância enquanto sustentáculo de um passado de que guarda a memória, tema, de resto, tão caro ao poeta.

 

4. Se podemos falar de uma linguagem rigorosa na poesia de Carlos de Oliveira, em geral, e nestes dois poemas, em particular é que alguns filtros se interpuseram entre a realidade e o escritor, o primeiro dos quais é o tempo.

Tem-se a sensação de que o poeta escreveu os seus poemas, não a partir de uma análise visual directa do real mas por recurso à memória onde esse real estava já reordenado e reclassificado.

O grande esforço de contenção, de condensação do vocabulário ao seu essencial, faz desta poesia a expressão de uma linguagem fortemente ascética e plurissignificativa mas é também a expressão de aturado trabalho oficinal. Raras vezes a poesia me deu qualquer coisa de graça, dirá em O Aprendiz de Feiticeiro.

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Bibliografia:

(1) - OLIVEIRA, Carlos de, Trabalho Poético, v. 2, Livraria Sá da Costa, s/d (1976?)

(2) - CHEVALIER, J. -  e GHEERBRANT, A. -, Dictionnaire des Symboles, Paris, Seghers, 1973, vol. 2

(3) - OLIVEIRA, Carlos de, O Aprendiz de Feiticeiro, Publicações Dom Quixote, 1971

(4) - CHEVALIER, J. - e GHEERBRANT, op. cit., vol. 1

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Luís Serrano 

 


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