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O Locus amoenus em A Ocidente os Astros

de Suzana Secca Ruiva

"Região de Aveiro", n.º 17, Maio 1994

 

A primeira leitura de A Ocidente os Astros de Suzana Secca Ruivo apanha-nos desprevenidos: com o seu cortejo exuberante de metáforas empurra-nos, sem que disso nos demos conta, para ver nele a expressão do que poderíamos chamar uma "respiração barroca".

Mas esta primeira apreciação depressa tem de ser corrigida quando nos debruçamos com um pouco mais de atenção sobre a obra.

De facto, todo o livro aponta para a luz (vocábulo que aparece 14 vezes), para o branco (8 vezes), para o silêncio (o vocábulo mais frequente do livro - 21 vezes) que são indícios de uma perspectiva muito mais apolínea e, por conseguinte, muito menos dionisíaca.

Esta frequência aumenta se pensarmos que o conceito luz está contido nas palavras claridade, dia, etc., que se encontram no texto.

É uma poesia de exaltação das coisas límpidas e nítidas, do silêncio sem mancha; é uma poesia através da qual a autora defende e procura e exalta um local ameno, o locus amoenus que persegue entre muralhas como se lê no poema da p.10 e que, diga-se desde já, é um lugar habitado:

 

No olhar tu tocas a exaltação
a cidade eriçada pelo vento das areias mais
finitas pelo ágil marulhar que ocupa o seu
interior. E o ameno
essa presença escolhida entre as muralhas

devastadas que o tempo

não habita

 

Eu creio que todo o livro gira à volta deste problema: a procura de um lugar ameno onde se possa encontrar o equilíbrio, o equilíbrio do silêncio (título do poema da pág. 19).

 

Falar um dia da neve
que isola as casas e os homens

[...]

Subir então pelas criptas
à emoção absoluta
dos seus templos de silêncio

.

É um silêncio que enquadra a contemplação e a reflexão, que ajuda a conjurar os demónios interiores, mas é também o que dá sentido ao ritmo. Sem o silêncio não teria sentido falar de música, por exemplo.

É ele (o silêncio) que envolve os grandes acontecimentos como se lê no Dictionnaire des Symboles  de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, ou é ele ainda que serve de pano de fundo ao diálogo, fonte de toda a beleza.

Como diz René Char: La beauté naît du dialogue, de la rupture du silence et du regain de ce silence (Le Bulletin des Baux).

Dessa força e dessa função do silêncio nos diz a autora no poema da p.13: Uma longa noção de silêncio aliava a tal ritmo o pulsar das coisas do mundo como ao instante da morte se liga o negrume alterado o declive infinito do encontro.

"Como ao instante da morte se liga o negrume alterado o declive infinito do encontro", isto é, é no silêncio que se encontra, finalmente, a unidade que se perdeu ao nascer e se perseguiu toda a vida, no silêncio que acompanha a morte.

É um lugar específico, absoluto, onde o silêncio marca o pulsar da vida, tão absoluto que fora dele não existe nada como se lê em Nada (p. 16):

Fora deste lugar.
O lugar que não existe.

É uma poesia muito reflectida e trabalhada a que não é alheia a experiência surrealista mas longe, em nosso entender, da escrita automática, mais próxima, se lhe quiséssemos encontrar um parentesco, de António Ramos Rosa. Em qualquer dos casos, poesia que vive da metáfora e que não raro toca naquilo que poderíamos designar pelo irracional e a que a própria Suzana Ruivo chama a demência (p. 46):

Não sei se os poetas sofrem do espanto que leva a demência aos [vocábulos

mantendo em negro encantamento a voz. (...)

E a demência constitui a outra vertente da abordagem do real, aquela que convive, paredes meias com a reflexão, mas que é susceptível de possibilitar, malgré tout, o salto do conhecimento poético.

Este espanto de que a autora fala constitui o primeiro contacto com o mundo, sem o qual não teria sentido a procura do locus amoenus, tão querido a alguns poetas do nosso Cancioneiro de Resende (Sá de Miranda, Bernardim, etc.).

O local ameno será um local quase monástico, reduzido às dimensões de uma austeridade mais autêntica, única compatível com a beleza das árvores, com a qualidade do ar, a pureza das águas, beleza apesar de tudo plástica, mas plástica, diria eu, de linhas rectas; a paisagem reduzida a uma ciência de esboços, como se pode ver em Exactidão (p. 14), poema cujo título, só por si, já é significativo:

A ciência dos esboços percorre universos estelares e
sensitivos onde a aparência do branco é uma linha que
cintila
entre o espírito das coisas e a pura abstracção do desenho
num inquietante equilíbrio de luz. [...]

 

É um entendimento com o real feito à semelhança da câmara cinematográfica: são os olhos os principais agentes desse contacto e desse conhecimento. Veja-se, por exemplo, o poema O devir do olhar (p. 42), onde a meu ver é clara, não só essa função do olhar mas também o seu papel na destruição da solidão, na neutralização das ilhas.

 

Uma palavra o limite de uma cega digressão
pelas imagens.
Nesse dia incomparável será

o tremor das ilhas (...)

 

É o olhar, repita-se que tem o papel mais destacado na percepção do real, aproximando-se dele, mas também o contrário é verdadeiro, isto é, também o real se aproxima dos olhos como se estivesse submetido a um efeito de zoom (p. 8): É longe/ que o visível se acerca do olhar[...].

Esse locus amoenus é perspectivado sempre no sentido do conhecimento (intelectual ou sensorial) do real, conhecimento cuja profundidade aumenta com o tempo, como se pode concluir da leitura de O fulgor do pó (p. 39):

 

É no tempo que se alcança
o puro esplendor do visível
num sentido simultâneo
ao esquecimento
como uma transparência
que se amasse: (...),

 

poema que, curiosamente, nos envia para a consciência da efemeridade das coisas e para o carácter contraditório do real: ser e não-ser, as duas faces da moeda com que nos é dado conviver.

Quanto mais conhecemos, quanto mais nos aproximamos do puro esplendor do visível, mais esquecemos. E amamos esse conhecimento como se amássemos uma transparência.

Deste lugar ameno se poderia dizer ainda que é multímodo, que é simultaneamente um lugar exterior de comunhão com a natureza e com os seres vivos, os mais simples. Pela aurora erram os animais/ de pêlo anelado e luzidio// (p. 7) e, mais adiante, (...)Por ela se alisam as crias/ fontes/ cerradas de claridade//, bela metáfora para caracterizar o carácter diurno e elementar dos animais; mas é também um lugar interior, um lugar de intimidade, e aí identifica-se, naturalmente, com a casa, lugar mítico de tanta importância para a mulher, e seu centro natural; isso mesmo se depreende, creio eu, de História 2 (p. 24)

 

No início a mulher
ergue a casa
que é a sua
e descreve em torno dela

o olhar do amor.
(...)

 

Este lugar tão procurado por S.S.R. é um lugar austero a que corresponde uma perspectiva preponderantemente apolínea; e eu julgo que essa visão se encontra amplamente documentada nos seus poemas: já na defesa de uma ordem ou na criação de uma ordem que contrarie o acaso e que aponta, portanto, para uma concepção clássica ou classicizante do real com a sua correspondente expressão estética.

A este título, vejam-se dois poemas em que a reflexão sobre uma ordem é clara: no poema A visão da planta (p. 20)

 

Há um ponto em que a visão
se extingue
e se altera para sempre
o clarão sereníssimo 
da forma (...),

 

isto é, a forma não tem sentido sem uma visão (=ordem) que lhe esteja subjacente.

Creio que já atrás o disse: a um lugar ameno não poderia faltar o tema das árvores. As árvores é exactamente o título de um poema (p. 38). São elas um elemento essencial, pois constituem uma ligação à terra através das suas raízes;. o seu desenvolvimento vertical e o seu crescimento para cima são bem uma metáfora do homem

Como se pode ler no Dictionnaire des Symboles, árvore é o símbolo das relações que se estabelecem entre a terra e o céu. Mas é também símbolo fálico nalgumas regiões do globo e símbolo feminino, matricial, noutras como no Irão e mesmo na tradição judaica, sendo que esta simbologia sexual varia ainda, por vezes, de acordo com a espécie vegetal.

A árvore pode ser também o símbolo do crescimento de uma família, de uma cidade, de um povo, de uma nação ou do poder de um rei mas é igualmente cheia de sentido na tradição cristã sob a forma de árvore da vida.

Entende S. S. Ruivo que as árvores não são apenas vegetais mas contêm em si toda a riqueza do mundo mineral o que a meu ver lhes confere uma qualidade adicional, uma maior estabilidade, e também do mundo animal (p. 38):

 

Pensar que as árvores
são animais de pedra
animais que vivem das gotas
que pelas encostas sobem da noite
e lhes abrem as raízes
ao milagre da sede./ (...)

 

e, mais do que isso, as árvores escavam a terra quando a paz é uma essência que cai como um silêncio deslumbrado (p. 40)

Conhecemos já minimamente o lugar perseguido pela escritora. Como o persegue ela? Através da escrita. São vários os poemas em que há uma clara referência à escrita, escrita que deve ser contida para servir os objectivos de rigor e de austeridade que julgamos entender no pensamento da autora.

Comecemos pelo poema da p. 36 (O Canto Concreto)

 

É contra as molduras do tempo
          [...]
que observas as letras de um nome
          [...]
os ângulos nascentes que vibram
ao ritmo mais ínfimo ao espaço
concretíssimo das sílabas.

 

ou seja, a escrita arranca a partir do real exterior, enquadrado num tempo, em sintonia com ele para ser uma sua imagem renovada ou se se preferir uma sua recriação

Ainda sobre o acto da escrita, não posso nem devo deixar de citar o poema da p. 43 onde se lê uma declaração de grande humildade da parte da autora:

Escrevo mas ao que escrevo falta sempre o corpo límpido dos sons ou seja cedo apenas a uma alteridade que não é água límpida e por isso não é desejo nem adoração. Se alguma figura existe é fora das minhas páginas, no embaraço da luz por onde o real se esgota.

Procurar um lugar e fazê-lo de preferência através da escrita, uma escrita anti-ornamental que se atenha às coisas essenciais, uma escrita diurna, luminosa, eis um dos principais objectivos da escritora.

No poema da p. 37 faz-se o elogio da alegria mas em andamento adagio, diria eu, alegria veiculada pelas crianças e pelas aves mas enquadrada também pela água, pelo silêncio, pela luz:

Ele [o poema ] cai para si para fora da sua espiral de [sombra.
Incrível versão da luz ou louvor súbito
à terra um louvor impetuoso [...]

[lugar] onde crianças dançassem ou aves[...]

Como se não bastassem os versos e/ou os poemas já citados, a autora dá-nos num verdadeiro hino ao outono, estação de calma e de uma sagaz melancolia, o seu apego ao equilíbrio, a uma vida em que o homem se integrasse completamente na natureza. Regresso a um paraíso perdido? Ninguém regressa a um paraíso perdido, senão não estava perdido. E lá que se perdeu, perdeu por muito que isso nos doa.

Mas leiamo-lo porque é muito bonito e fala por si. Para quê comentários? (p. 34)

 

Só as plantas outonais
trazem à terra
a primeira paz
os óleos
ressuscitando-lhe a cor
num mistério total
aberto
ao furor do oiro.

Eleva-se então aos abismos
ascendentes
aos cumes
mais limpos do espaço
onde Deus se ouve respirar
como se o silêncio
se entendesse e se abismasse
a luz

 

Muitas outras referências se poderiam encontrar nesta poesia que vão no sentido de a entender como privilegiadamente apolínea.

Trata-se, como se disse, de uma poesia reflexiva, apolínea, clássica. E estas qualidades são sublinhadas ainda pela distância que a autora cria empregando de uma forma sistemática a 3ª pessoa do singular como se tudo se passasse longe e com outra pessoa, embora poemas haja em que aparece a 1ª e a 2ª pessoas do singular, a primeira a materializar o compromisso, o envolvimento da autora, menos frequente, a segunda pessoa a estabelecer o diálogo. E é curioso verificar que nalguns poemas estas 1ª, 2ª e 3ª pessoas coexistem e não é sem talento que a escritora passa de uma a outra de um modo sempre subtil.

Mas que o diálogo é desejado atesta-o o facto de, logo no 4ºpoema do livro se privilegiar a 2ª pessoa: No olhar tu tocas a exaltação/ (...) (p. 10).

E também não deixa de ser significativo que um outro poema seja todo escrito na 1ª pessoa, ou seja o poeta assume-se, como interveniente e exprime as suas dúvidas: Não sei se os poetas sofrem do espanto que leva a demência aos vocábulos/ [...]Não sei se as palavras partem por uma luz primitiva [...] (p. 46)

A procura do local ameno, tema central deste livro não é a nosso ver, incompatível, pelo contrário, com o recurso àquilo que eu teria a tentação de chamar as alfaias do poeta e uma das suas primeiras alfaias são os livros que os outros escreveram e que funcionam, muitas vezes como agentes catalisadores ou motivo de inspiração.

Isso mesmo nos diz Suzana Ruivo em Há os livros (p. 18):Algumas sílabas são como augúrios e mais adiante Há os livros/ O lugar de onde as gravuras fluem./ O seu peso anéis inumeráveis/ de energia [...]

Nem é incompatível com uma postura por vezes contemplativa que aqui e ali alterna com uma interpelação à vida ou uma simples reflexão sobre a vida ( O rosto/ do que não se entende/ é uma razão [...] (As razões do silêncio, p. 21).

Devo referir-me, ainda que brevemente, ao papel assumido pela água (palavra que surge 8 vezes embora ela apareça contida noutros vocábulos frequentes como fonte, lago, rio, gotas) e a memória (apenas 4 vezes mas escondida em saudade e história).

A água simboliza fundamentalmente três coisas (Dictionnaire des Symboles): Fonte de vida, meio de purificação e centro de regeneração mas é também uma metáfora do movimento e do tempo, em correspondência com o fluir da própria vida.

 

Como se fosse sublime não caminhar rente ao esbanjamento
dos rios entre o início das águas e o regresso da vertigem.

 

diz-nos Suzana S. Ruivo na p. 12, em alusão a esse fluir de que falava Heraclito.

Da atenção dedicada à memória, embora ela só tenha sido explicitada 4 vezes como disse, está, contudo, implícita muitas mais vezes.

Vejamos um poema que nos parece particularmente significativo (História 1, p. 23):

 

Parece inócuo
abrigar a memória no tangível
no que se pensa ser
a cega beleza do instante.

É uma história com a idade do tempo
e da tradição. 

Mas a memória
também se divide no instante
na sua inteligência

irreversível.

 

A memória perpetua o passado mas projecta sobre o futuro a perenidade da cultura e da herança espiritual ou como diz Manuel Simões em Canto Mediterrâneo: a memória é um rio, dilacera-se contra as margens aluídas do tempo.

O locus amoenus não se encontra mas procura-se e eu acho que o caminho escolhido pela Suzana Ruivo é um caminho possível ou é o caminho possível que passa pela poesia e dizer pela poesia é dizer por metáforas tão sugestivas e tão belas como um ínvio torpor de veludo (p. 45) ou um cavalo de luz (p. 44) ou ainda [...] as crias/ fontes/ cerradas de claridade (p.7) e por sinestesias (tão do agrado dos simbolistas) e que é, simultaneamente um oximoro como Por mais/ que tenhas amado o silêncio/ jamais ouvirás/ o seu clamor/ intolerável./ À força de claridade. [...] (O amor, p. 35).

Não sei se poderei dizer aqui, mas apetece-me fazê-lo, algumas das palavras que Sophia de Mello Breyner Andresen escreveu na sua Arte Poética II:[...] a poesia é a minha explicação com o universo, a minha convivência com as coisas, a minha participação no real, o meu encontro com as vozes e as imagens.

Não sei, mas é esse o entendimento que tenho da sua poesia.

Terminarei, dizendo com a autora aquele poema (p. 47) que constitui uma autêntica Arte Poética:

 

Ser a escrita uma utopia sobre a qual também se escreve.
Não para explicar como o
silêncio é branco ou a própria
morte a metonímia de Deus mas para os levar ao logro
apaziguante da abstracção.

sem esquecer, todavia, que

[...] Todas as asas encontram/ o voo/ no espaço imóvel/ da queda// [...]

(Glória, p. 33) Ed. Fora de Texto,1993

Luís Serrano, Jan. 1994. 

 


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