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Encontros - Júlio Resende e Vasco Branco



O ANTIGONGORISMO E O EXPRESSIONISMO DE JÚLIO RESENDE

Auto-retrato verbal


O pintor que AveiroArte acolhe confessou que é notório o [s]eu desprezo pelo “virtuosismo”, da mesma forma que não será menos detectável aquele que vot[a] ao “gongorismo”. Explicou-se assim: Entendo que duas palavras valem um discurso. Duas, três cores num espaço! (...) Duas três cores para o discurso, restrito(1). Os trabalhos expostos, agora e aqui, são a prova cabal dessa orientação estética. Nessa espécie de autobiografia artística(2) que é o álbum Sinais no Espaço e no Tempo, selecção comentada de algumas das suas obras, Resende também afirma que o mimetismo face à realidade está, de todo, arredado de [s]eus propósitos, já que, explica, se ocupa de uma Realidade outra...(3)

Explanando o cromatismo do pastel “Solenidade”, de 1996, debuxado em Goa, o pintor afirma que a sua interpretação está longe de ser mimética, apesar de decretar que a cor rosa domina o mundo e de afirmar que está devidamente apetrechado para essa cor(4). Essa liberdade formal é ainda mais encarecida quando proclama que não tem pactos com movimentos de liderança estética(5). Não recusa, porém, ele próprio, estabelecer alguns paralelos estilísticos, como, por exemplo, quando recorda Bruegel ou Dufy a propósito do pastel “Vimioso”, de 1994, mesmo se acrescenta que não tem muito a ver com eles(6), ou ainda, quando lembra Goya, comentando a aguarela “Ribeira”, de 1988, anotando: (...) ao fechar o bloco dou-me conta que Goya, uma vez ainda, voltara ao meu pensamento...(7) A aguarela “Moças”, de 1977, fruto da descoberta do Brasil, provoca-lhe a seguinte confissão: É liberto da carga de muitos conceitos que passo a olhar e a ver o mundo(8). Outra aguarela, “A Carroça”, de 1949, merece-lhe este comentário: É certo que não desprezo a experiência abstraccionista em franca liderança nos meios Parisienses, mas sempre duvido das ortodoxias(9). É notória a vontade de se manter livre de amarras escolásticas ou das que a moda imponha. Daí a sua obra se caracterizar por um tenso equilíbrio entre a abstracção e a figuração.

Se a alguma corrente estética se sentiu mais ligado, essa foi a do expressionismo, que lhe está no sangue, como salienta nas considerações que tece sobre a aguarela “Porto”, de 1987, ao dizer O “Expressionismo” está-me nas entranhas e, aqui, lhe dou rédea-livre(10). Não foi uma declaração de circunstância, pois Resende vai reiterá-la várias vezes. Falando de outra aguarela, de 1989, baptizada “S/ título”, assumindo-se como susceptível às potencialidades dos “contrários”, opondo as experiências colhidas em viagens pela Alemanha ou pelo Nordeste do Brasil, o pintor faz derivar daí o poder vir a explicar-se a oscilação de um expressionismo que acontece entre os parâmetros da exaltação da cor, do gesto instintivo, e a dos valores mais racionalizados(11). Volta a exprimir o que pensa sobre o expressionismo, no comentário de uma técnica mista, realizada em Cabo Verde, em 1992, afirmando: “Expressionismo” não é deformação!

É o acentuamento, pelos meios próprios, através dos quais o sentimento enfatiza o discurso. Não é um modo de representação desse discurso, mas sim o modo de alguém se mostrar a si, tal qual é no íntimo. Estas e outras reflexões pairam numa auto-análise, seja em que circunstância me encontre(12).

Reflectindo sobre os vários “andamentos” da sua vida e obra, convencido de que o último lhe dará o sentido total, e de que a imaginação fará o que lhe é lícito: metaforizar uma realidade, Resende, referindo-se ao que sente face ao seu pastel “Mulher e Máscara”, diz então sentir-se propício ao Adágio... Logo aproveita para se interrogar e responder à sua própria questão: Uma pausa no Expressionismo? Nada disso! A penumbra confunde a realidade interior e a exterior, mas sustenta-a com múltiplos sinais de existência(13). Como se vê, a orientação plástica de Resende permanece sempre fiel ao Expressionismo, mas não enfeudado ao paradigma alemão, e também sem as ousadias e impasses de um Francis Bacon, nem as de um Juan Barjola, equivalente espanhol deste pintor inglês, se bem que herdeiro da força expressiva de correntes simultaneamente domésticas e universais, que vão de Goya a Picasso, para nos atermos às principais fontes de inspiração, que também eram grandes amores do artista britânico. Júlio Resende herdou a espontaneidade do gesto expressionista, mas também aprendeu a lição da exaltação da cor privilegiada pelo fauvismo, tendo herdado ainda a desenvoltura espacial do cubismo, o que confere às suas obras uma rica matriz neoflgurativa e bem pessoal.

Acima, já o vimos valorizar a exaltação da cor e do gesto, da mesma forma que enaltece a exaltação luminosa explodindo de alegria, numa evocação da inspiração brasileira do pastel “Moça com Pássaro”, de 1992. Resumindo o seu Evangelho pessoal, a sua poética vital, a propósito de um outro pastel, intitulado “Sinais de Atelier”, também de 1992, Júlio Resende faz assim o seu auto-retrato:

Não sou niilista, nem tão pouco Nietzschiano! Acredito que o amanhã terá a cor da fraternidade!

Para isso, atendam aos sons da Música, às palavras da Poesia e às cores da Pintura!(14)

Resende viajou bastante, no país e no estrangeiro — de Trás-os-Montes ao Alentejo, de Cabo Verde e Goa ao Brasil, da França, Bélgica e Holanda à Inglaterra, Alemanha, ou Noruega, sem esquecer, obviamente a Itália ou a vizinha Espanha — e sempre com uma mente aberta, sedenta de colher nos locais que visitava o estímulo plástico que procurava, ou a superação de conceitos anteriormente adquiridos, a assimilação de temas, formas e cores que fizessem avançar a sua expressão artística. Ele mesmo disse isto em relação com a sua estadia de dois anos na charneca alentejana e sobre as visitas a outros países também escreveu que um estágio no estrangeiro é marcado por inúmeros confrontos estéticos(15).

Nessas andanças alentejanas proporcionou a um dos futuros membros fundadores de AveiroArte, Cândido Teles, — já para não falar de Vasco Branco com quem partilhou experiências e saberes aqui em Aveiro — um desses confrontos estéticos que muito proveitoso foi para o artista ilhavense, que o reconheceu sempre, sem a menor sombra de dúvida ou de falso pudor, antes com orgulho e sentido reconhecimento. Em Évora, Cândido Teles conviveu com o pintor-poeta Júlio/Saul Dias, com Túlio Espanca e com outros membros da associação “Pró-Évora” ou do grupo artístico “A Trave”, entre eles, Júlio Resende. Tendo vivido seis anos (1965-1971) na capital alentejana por motivos profissionais, Cândido Teles teve o ensejo de se libertar da influência dominante de Fausto Sampaio na sua pintura, dando início a um experimentalismo multidireccionado, à exploração de novas técnicas, de que resultaram novas tonalidades para a sua paleta, a adopção do triangulismo e de elementos rectos que começaram a consubstanciar a partir daí muitas das suas composições geometricamente esquematizadas. Aparecem então nas obras de Cândido Teles o negro das noites alentejanas e os amarelos do restolho, por vezes diluídos em tons dourados ou róseos. Essa camaradagem chegou ao ponto de Júlio Resende ter mostrado nas suas aulas e comentado com os seus alunos algumas técnicas mistas de Cândido Teles. Essa amizade ainda hoje está documentada em casa do pintor ilhavense, na sala de estar, logo à entrada, à esquerda, por um desenho de 1960, que o futuro fundador do Lugar do Desenho ofereceu ao seu amigo na Madeira, onde se conheceram pela primeira vez. Eu próprio acompanhei Cândido Teles e sua esposa, a 12 de Dezembro de 1997, à inauguração da exposição que acompanhava o lançamento do livro Resende Sinais no Espaço e no Tempo. Por todos estes e outros motivos não seria despiciendo que AveiroArte organizasse um confronto de trabalhos de Cândido Teles e de Júlio Resende, equivalente a este agora proporcionado entre obras de Vasco Branco e de Júlio Resende.

Bem andou a confraria plástica aveirense em trazer até à cidade da Ria uma parte das obras de Júlio Resende, por todas as razões já evocadas e por outras que cabe a outros salientar. Por mim, quero ainda e só lembrar que Júlio Resende tem obra pública de grande destaque, como muralista, que levam o nome de Aveiro por esse país fora. Pense-se nos seis painéis em placas de grés, colocados no exterior da fachada do Palácio de Justiça de Lisboa, produzidos na Artimex de Aveiro, que ocuparam Resende quase um ano, tendo-o levado a alugar casa frente ao litoral oceano, nos arredores da cidade lagunar. O Hospital de Guimarães tem também um dos seus muros exteriores decorado com placas de grés vidradas, igualmente fabricadas na Artimex aveirense. O Instituto de Oncologia do Porto ostenta um painel interior, em placas de grés vidradas, realizado por Júlio Resende, também aqui na Artimex. No Hotel Solverde de Espinho podem ser apreciados três painéis interiores de azulejos, produzidos na Fábrica Aleluia de Aveiro. Na própria cidade da Ria, no Conservatório Regional, podem ser admirados quatro frisos de cerâmica vidrada na lareira da sala de convívio.

Como se vê, a ave do topónimo aveirense, para utilizar uma imagem de Almada Negreiros, voou até outras paragens, levando no seu bico uma filactéria com os nomes entrelaçados de Júlio Resende e Aveiro.

Pedro Calheiros

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(1) — Júlio Resende, Resende Sinais no Espaço e no Tempo, S. Mamede do Coronado. 1997, p. 52.

(2) — Já em 1999, Júlio Resende se “autobiografou” comentando fases do seu percurso artístico e pessoal no livro Júlio Resende A Arte como/Vida, no capítulo “Percurso da Obra Com Textos de Júlio Resende, publicado pela Livraria Civilização, com “Apresentação Crítica” de J. Matos Chaves, “Organização da Obra” de Arsénio Mota” e “Orientação Gráfica” de Manuel Aguiar. Cf. pp. 41-­108;

(3) — ld. lbid., p. 54.
(4) — ld. lbid, p. 60.
(5) — ld. lbid., p. 56.
(6) — ld. lbid., p. 58.
(7) — Id. lbid., p. 24.
(8) — Id. lbid, p. 20.
(9) — ld. lbid., p. 14.
(10) — ld Ibid p. 22
(11) — Id. lbid., p. 28.
(12) — ld. lbid., p. 34.
(13) — Id. lbid, p. 46.
(14)
— Id. lbid, p. 48.
(15)
Id. Ibid., p. 14.

 

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