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Palavras dissaboridas de rendido preito

Larga e benfazeja centena de anos — que pelas nossas mensurações comuns, dá quatro gerações humanas adultas, desde os bisavós, com toda a certeza — e que eu, próximo dos três quartéis posso já medir em toda a extensão e significado.

Cem anos representam, neste caso em especial, um somatório de esforços continuados, de inquebrantável força de ânimo e de predicados inexauridos e ininterruptos de abnegação altruísta, merecedores do mais subido e rendido apreço e do mais cativado reconhecimento.

O centenário, nos nossos hábitos mais arreigados e nas nossas mais fundas propensões de preito vinculativo, é um autêntico e relevante marco cronológico. Mais que uma data, fugaz e deveniente, seca e sem rastro, constitui um dever indeclinável, quando tem um âmago substancialmente positivo e rico, para recordar e para prestar homenagem.

Redobradamente nestas circunstâncias concretas em que, com todas as veras da minha capacidade de ser grato, de admirar e de prestar homenagem, exprimo a mais viva e a mais íntima simpatia, sinceríssima e gratíssima, aos «bombeiros velhos» da minha terra — aos da tão radicadamente aveirense «Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Aveiro» — que eu admiro desde as mais profundas e remotas reminiscências infantis. Desde esse longínquo dia em que os vi, garbosos, com os seus reluzentes capacetes aurifulgentes, com a sua desmesurada «escada Magirus» — que com o tempo viria a adquirir mais reduzidas proporções relativas — em que a vi, comandada por um futuro cunhado, num cortejo cívico, com um propósito de auxílio às vítimas de uma calamidade.

Nesta retornante fase da petiz, terei hesitado, porventura nas minhas aspirações: ser polícia, que mandava e se fazia obedecer, ali em torno da fonte dos Arcos, dos também fardados militares namoradores das moças que iam encher os seus cântaros de barro vermelho, e até era muitas vezes apontado às crianças traquinas, como um «papão»; ou ser «bombeiro», na pele e no uniforme do qual sentia personalizadas as minhas tendências incontaminadas de generosidade, para servir, sem preço nem travão, ao semelhante. Polícia não quis ser, nem para tal me sentiria com a mais leve propensão. Mas aos bombeiros invejo-os na constância na entrega, íntegra, humanitária, irreversível e irretribuível — cristã. Invejo-os naquilo em que efectivamente são melhores do que eu, no meu egoísmo, amante das minhas comodidades.

Os Bombeiros são — paradigmática, exosmaticamente, desbordantemente — ao mesmo tempo que uma oferenda efectiva, total e continuada, prestante e, repita-se, filantrópica, um exemplo de humanidade para os demais homens sem alento próprio impulsionador. Para aqueles que, como eu e a generalidade dos meus semelhantes antropológicos, egoisticamente — repesos, embora, do nosso comodismo tolhedor de qualquer rasgo, e da nossa insolariedade, vazia e ressequida de quaisquer seivas generosas — passamos a vida sem lhe seguir as fundas pegadas, que bem nos indicam o caminho. Passamo-la apenas a dar palmas. A aplaudir e a louvar, com o desencanto de não sermos capazes de lhes pisarmos os trilhos rasgados. A aplaudir e a louvar sem dar um passo útil para lhes recalcar os passos beneméritos. Como paradigmas, pois, e não como meros motivos de admiração, e louvor, e veneração.

Não que eu suponha que todos devemos ser bombeiros. Ou santos. Ou génios. Ou simples cidadãos impecáveis, na prática operacionalidade comunitária. Mas sim que os sigamos na exemplar e ressumante doação. Que sejamos, ao menos, as segundas filas dessa exemplaridade humanitária, ao serviço das vidas dos bens alheios.

Vejo-os, e neles me remiro, como que um incendor fervoroso e ininterrompido, num como que dirigido móbil de sinal contrário ao que me tolhe e me torna imprestante, dessa inapagada e vivescente chama de serviço ao próximo, a este dedicada em generosíssima obstinação proveitosa, e em dádiva total. E, / 42 / não obstante, os mais onerosos riscos e da maior displicência por toda a sorte de comodidades pessoais;

Em gerações sucessiva, algumas vezes estigmatizadas no melhor sentido, é bem de ver — como qualquer dos demais génes, de pais a filhos, se não para mais prolongadas hereditariedades do mesmo clã familiar — em verdadeiras «dinastias» de viril abnegação; decantado de todas as feições de humano egoísmo e de toda a compensação retributiva;

Um exemplo vivo e permanente, que acaso nos reduz às diminutas proporções, insignificativas, inoperantes e, embora a nós que somos inaptos e incapazes de lhes repisarmos as peugadas exalçantes, indelevelmente insculpidas no nosso mais fundo âmago, numa centúria de anos da vida de Aveiro, em todos os momentos infaustos e de júbilo;

 

Em todas as horas que estão inscritas nos nossos anais de maior relevância, desta sua e nossa terra de Aveiro, que amamos num platonismo, inoperacional ainda que sinceríssimo, eles estiveram sempre presentes e à nossa frente — em oferenda ilimitada e sem lacunas, sem intervalos e sem hiatos.

A par dessa permanente doação — a que todos, compreensivelmente, desejamos poupálos — constituem realmente um ininterrupto exemplo de cristão sacrifício pelo bem estar, pessoal ou de significação venal dos demais, de nós que nos limitamos a agradecer-lhes. De nós, que somos a percentagem maior da comunidade, local ou nacional, os que confiamos, à defesa heróica, abnegada e desinteressada, ao seu denodo e à sua disponibilidade integral, à sua boa-vontade sem limites nem descriminações inimaginárias, sem qualquer, nem a mínima, distinção individualizadora.

Missão de dádiva inteira em que o próprio termo inimigo não tem lugar nem significado lógico, já que se verifica, à flor da pele e no imediato, num oferecer-se até à total imolação, irrestrita de generosidade e capacidade de holocausto, sem a mínima retornância de compensação que não sejam de «valores comerciáveis».

Eduardo Cerqueira

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