Muxima
Outra vez no Grafanil. Mais uns dias e fomos chamados
ao Comando da Companhia.
– O 3º Pelotão está destacado para a Muxima.
Ficámos satisfeitos. Íamos conhecer a terra que o
"Duo Ouro Negro" tão bem cantava! Além disso teríamos de atravessar toda
a Reserva de Caça da Quissama, e isso para mim era um prémio. Preparámos
tudo e aguardámos ordem de marcha, que veio no dia seguinte.
Deixámos o Aquartelamento de manhã cedo, aproveitando
o ar fresco da noite. Passámos pelo “Tobias” e seguimos pela picada que
nos conduziria à Muxima. Entrámos na reserva de caça. Os primeiros
animais avistados foram uma manada de burros do mato, pastando
pacientemente. Ao ouvirem o ruído dos motores das viaturas ergueram as
orelhas, olharam e, como não havia motivo para alarme, continuaram a
alimentar-se.
Íamos andando e observando a paisagem. Aqui, capim
baixo; além alguns arbustos; mais além, junto à picada, viam-se árvores
frondosas que só tinham folhas nos ramos mais altos! Porque seria?! Ao
aproximarmo-nos soubemos a razão. Era a zona onde pastavam girafas.
Embora os seus pescoços fossem enormes, não conseguiam atingir o cimo
das árvores. Ao notarem a nossa aproximação fugiram rapidamente, com o
seu andar desengonçado.
– É pá, o que é aquilo?!
Todos se puseram de pé em cima das viaturas a olhar!
Eram centenas, eu sei lá, talvez um milhar de Cefos, uma espécie de
palanca de cor cinzenta. Na sua fuga sobre o capim baixo, pareciam ondas
do mar.
Como seria se em vez de Cefos fossem zebras?
– Será que por aqui há zebras? – Perguntou um
soldado, imaginando como seria o espectáculo!
– Vamos andando, pode ser que a gente tenha sorte –
disse eu – Nesta reserva há muita qualidade de animais. Até leões.
– Leões?! Interpela um soldado. Isto mete medo!
– Nós temos armas, mas não podemos matar os animais. Isto é uma reserva
protegida! – Retorqui.
– Só se formos atacados é que podemos defender-nos!
– Olha, olha – diz o condutor – ali à esquerda!
Sorte nossa. Era como se estivéssemos a ver um filme
– uma manada de zebras, algumas com filhos ainda pequenotes, corriam a
par connosco e tentavam atravessar a picada.
– Cuidado! – Grito eu para o condutor – Olha que elas
não param.
As mais fortes tinham-se interposto entre nós e as
pequenas, tentando assim protegê-las.
– Pára! – Voltei a gritar…
O condutor travou, e os animais começaram a
atravessar. E nós ali parados a ver aquele espectáculo maravilhoso. Eram
centenas que passavam à nossa frente. Era como se estivéssemos sentados
numa sala de cinema a olhar o ecrã. Só que ali o espectáculo era ao
natural.
Finda a travessia, foi como se o projector se
apagasse e se acendessem as luzes da sala. Acabara o espectáculo!
Seguimos viagem. Mais além, pequenos animais
pastavam. Eram gazelas que, ao mesmo tempo que pastavam, abanavam
rapidamente o rabo. Ao darem por nós, puseram-se em fuga, dando grandes
saltos, desproporcionados para o seu tamanho. Outro grande espectáculo,
mas nada comparável ao anterior! Eram poucas e afastaram-se da picada,
não sendo necessário parar.
Íamos andando e observando.
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Ao fundo a Fortaleza da Muxima |
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Chegámos finalmente ao nosso destino. Primeiro
descortinámos a fortaleza, por entre as árvores. Depois uma e única
"rua" larga, do lado direito o Hotel, uma construção em contínuo, de
rés-do-chão. Mais adiante a Casa da Administração, quase por trás da
igreja. Lá estava ela, majestosa na sua pequenez, com a torre mesmo
junto ao rio Quanza, que parecia querer banhar-lhe os alicerces!
Foi-nos indicado o aquartelamento onde iríamos ficar. Um bom local, com
casas em argamassa, à saída para Novo Redondo. O rádio ficaria instalado
na Fortaleza, situada numa elevação para poder atingir uma longitude
mais ampla. Uma esquadra iria fazer a segurança do pessoal das
transmissões diariamente.
Instalámo-nos e fomos dar uma volta pela localidade
(cidade?). Só tinha uma rua, como disse. Para quem vinha do Cabo Ledo
todas as construções ficavam à direita da rua, com excepção de um
armazém, do cais de embarque e da igreja.
A Muxima fora dada a conhecer pela canção do Duo Ouro
Negro e mais tarde ampliada pela nossa imaginação. Não era o que
estávamos a ver... Pelo menos havia vida. Vimos um pescador a pescar
naquele rio imenso. Vimos mulheres com enxadas ao ombro, que concerteza
vinham das machambas, onde estiveram a trabalhar. Além da enxada, lá
vinha o filho às costas. Não sei como elas conseguiam trabalhar com o
filho em posição tão precária, certo é que o fazem.
Meu Deus, esta gente é tão calma. Nada parecido com o
que se via no “Norte”, em que os rostos nos pareciam sempre crispados,
quando nos olhavam. Era esta a verdadeira Angola dos meus sonhos!
Por aqui há poucos brancos. Uma meia dúzia deles, se
tanto. Na altura passava por nós um deles, chapéu de pano na cabeça, que
se apresentou:
– Eu sou o enfermeiro civil cá do sítio. Se
precisarem de alguma coisa é só dizer.
Aproveitei para obter informações sobre o "burgo":
– Aquela casa, lá em cima, é a do médico (ficava num
alto, quase fora da povoação); a outra, mais abaixo, é do governador
Lencastre (O governador da Muxima); o "Hotel" é de uma senhora
cinquentona, que é deficiente física; tem uma perna mais alta do que a
outra. A Casa da Administração fica quase por trás da igreja.
E assim íamos ficando ao corrente do que era a Muxima, naquela data.
– E terrorismo, como é? – Eu quis saber!
– Em 1961 houve alguns problemas, especialmente em
Novo-Redondo. Aqui o pessoal organizou-se, os pretos não deram apoio aos
terroristas e eles nunca mais por cá apareceram!
– Boa – disse eu. Assim podemos andar mais
descansados, no entanto é bom desconfiar sempre deles. Aquilo que eles
fizeram nos Dembos, é caso para estar sempre de pé atrás.
Os tempos do “Norte” acabaram. As seguranças às colunas de
reabastecimento também. Com essas operações ficámos a conhecer muitas
terras dos Dembos: Nambuangongo, Quipedro, São José de Encoje, Vista
Alegre…
Agora, aqui na Muxima, a fazer lembrar o Duo “Ouro
Negro”, é um descanso. Com o rio Quanza mesmo aqui ao lado, um rio
tenebroso, de grande caudal e profundidade. Tinha chovido há dois dias
para o lado da sua nascente e a barragem de Cambambe, para nascente da
Muxima, teve de fazer uma descarga de segurança. O rio subiu mais de um
metro.
Eu estava com o enfermeiro civil no cais de embarque, quando vejo uma
cena algo estranha! Rio abaixo vinha uma ilhota com um coqueiro e uma
cubata! Chamei a atenção do enfermeiro que me informou ser natural. Os
pretos gostam de ter as suas habitações junto à água e de vez em quando,
e quando a chuva é muita, sofrem destes dissabores.
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O Rio Quanza visto da Fortaleza da Muxima |
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O tempo depois da chuvada tinha ficado quente.
Resolvi ir até à caserna, um armazém cedido pela administração. Sempre
era mais fresco.
Tirei a camisa, que dependurei na barra da cama, e
para ali fiquei naquela modorra, com os olhos fechados, saboreando
momentos de paz que por fim encontrei.
Pouco depois ouço alguém a caminhar na direcção da entrada da “caserna”!
Era a lavadeira, uma pretinha dos seus dezoito anos. Como não se
apercebeu que eu estava na caserna, entrou olhando em volta. Logo atrás
vinha um soldado e perguntou-lhe, tentando meter conversa:
– Vens buscar a roupa para lavar?
– Sim. Os tropa disse que havia roupa para lavar!
– Está ali dentro – diz o soldado.
E leva a moça para o fundo da caserna. Puxo o “quico”
para a frente dos olhos e fico curioso com a conversa do soldado para a
lavadeira.
– Olha, dou-te dez angolares!
“Mau – pensei eu – aqui há mais do que roupa para
lavar”.
– Tá bem, então dou-te vinte escudos do “Puto”.
Ela continuava a não estar convencida. Ele insistia:
– Vinte escudos é muito dinheiro, além disso eu sou
sargento – disse o soldado.
Olho para onde tinha colocado a minha camisa. Não
estava lá!
A moça, já irritada, diz:
– No mataco não, nem qui fora um Tinente”.
Pegou no braçado da roupa e saiu da caserna...
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