Gente da minha terra
Em São Salvador do Congo
Ah, agora me lembro! Quando no outro dia estive em São Salvador – embora
me tenha parecido um sonho, era mesmo realidade! – Ouvi homens que
falavam alto e riam, enquanto uma viatura todo o terreno manobrava em
acrobacias apertadas, o que provocava o riso da assistência.
– O gajo anda todo vaidoso, pintei-lhe a carrinha
toda de verde. Assim já se nota menos no meio da mata!
Aquela voz não me pareceu desconhecida. Aproximei-me
do grupo que, ao ver um militar olhá-los com ar inquiridor, se calou
olhando para mim como sendo um indivíduo que veio atrapalhar a sua boa
disposição.
Nisto avança para mim um rapaz, das minhas idades, e
interroga-me:
– Tu és o Ângelo não és?
Ainda incrédulo respondi:
– Sou!
– …
– E tu és o João Elias… Pois és!!!! Que fazes aqui? –
Perguntei-lhe.
Ele não fez esse género de pergunta, pois bastava
olhar para mim: o fato de combate cheio de pó e a FBP ao ombro, era o
suficiente para identificar o que fazia eu naquelas paragens.
Sentámo-nos numa pedra a conversar. Os outros
afastaram-se, deixando-nos à vontade. Fiquei a saber que ele, que na
nossa terra era pintor, agora era condutor de longo curso. Tinha vindo
de Luanda com abastecimento para São Salvador. Era zona de guerra e dava
mais dinheiro. Tinham vindo pela beira-mar e pelo Luvo, pois diziam ser
zona de menor perigo na estrada.
Perguntou-me onde eu estava. Disse-lhe. Ele torceu o
nariz:
– Cuimba é onde está o Batalhão a que chamam o
“Rebenta”! Como é isso por lá?
– Não é nada bom mas temos que ir andando! Já alguns
dos nossos companheiros lá deixaram a vida. Estão ali no cemitério de
São Salvador…
Convidou-me para jantar. Os camionistas só viriam
para baixo quando tivessem protecção militar. Nós tínhamos de regressar
ao acampamento, pelo que não tive o prazer de jantar com ele. Tive pena,
pois houve muitas perguntas, algumas sem nexo, que ficaram por fazer, de
parte a parte.
Em Cabinda
Só voltei a encontrar gente da minha terra mais tarde, em Cabinda.
Tínhamos ido lá para fazer a segurança do Presidente
da Republica, em visita oficial aquelas paragens. Fizemos a viagem de
Luanda num barco de guerra. O respirar da maresia parece que nos deu
nova vida!
À minha secção foi atribuído o serviço de segurança
ao depósito de água da cidade. Era um ponto nevrálgico e tinha de ser
vigiado, não fosse o IN envenenar a água…
Ficava num alto, já fora da cidade. Por ali ficámos,
corpo descontraído e espírito alerta. “Mau, mau! Que é agora isto?”
Reparámos num jipe que se dirigia para nós a grande velocidade. Não
tínhamos rádio. Alguma ordem urgente, pensei, pondo no entanto o pessoal
da secção alerta. O jipe pára junto de mim – como era serviço oficial,
tínhamos de usar as nossas divisas – o condutor salta da viatura,
dirige-se a mim:
– Eh Ângelo, que fazes aqui?
E abraçou-me! Só então o reconheci.
– Zé da Neta! Isso pergunto eu!
– Estou destacado em Cabinda, sou condutor auto.
Soube pelo vosso pessoal que ficou de serviço na cidade, que estavas
aqui e vim dar-te “aquele abraço”. Já não via um gafanhão há muitos
meses!
Conversámos durante dois minutos, se tanto, mas já
deu para “carregar as baterias!
– Tenho de me ir embora que o capitão só me dispensou
vinte minutos e tenho de o levar não sei onde.
Reciprocidade de boa saúde e poucos tiros, um até à
vista, e lá se foi o Zé da Neta levantando novamente nuvens de poeira.
A Picada do Quelo
Um dia, no regresso do reabastecimento em São Salvador do Congo, um dos
nossos militares avistou e eliminou um IN. Foi então que notámos que a
estrada era atravessada por uma picada, que só uns bons metros à frente
voltava a entrar no mato do lado contrário à estrada de terra barrenta e
avermelhada, por onde seguíamos. Quer uma entrada quer outra estavam
muito bem dissimuladas.
Mais tarde viemos a saber que esta era a Picada do
Quelo, principal via de penetração do IN nos Dembos, vindo do Congo
Léopoldville.
Tínhamos de actuar ali…
A zona mais delicada era entre a estrada que vai de Cuimba a São
Salvador e do entroncamento desta com a que vai para a Buela, na
fronteira Norte, passando por Pangala e daí para oeste.
À esquerda, no mapa, vemos a “Picada do Quelo”. Era
por aí que o IN se infiltrava em Angola. Atravessava a estrada que ia
dar a São Salvador do Congo, montava as minas anti-carro e seguia para o
sul. Atravessava, depois, a Serra da Canda em direcção aos Dembos!
As operações passaram a ser continuadas. Como sabemos a nossa Companhia
tinha quatro pelotões: um estava operacional, outro de serviço ao
acampamento, outro ao serviço de água e lenha, e um quarto pelotão de
descanso – como já foi referido.
O serviço à água era perigoso. Tínhamos descoberto
uma bica num vale profundo. Por a corrente ser fraca pensámos construir
um tanque, que ficaria acumulando água para o dia seguinte. Mas… e se o
IN o descobrisse? Limpava-nos o sebo sem dar um tiro! Não poderíamos
correr esse risco. Optámos por continuar a encher os barris na bica.
Tínhamos uma espécie de padiola, na qual púnhamos um barril de cada vez.
Depois o guincho do Unimog que ficava cá em cima, bem travado e com as
rodas calçadas, não fosse o diabo tecê-las, fazia o resto sem grande
esforço da nossa parte. Naturalmente que o pelotão da água corria o
risco de vir a ser atacado, mesmo com guarda montada.
O pelotão de serviço ao acampamento era o responsável
pela segurança, dia e noite.
O pelotão operacional estava sempre em movimento.
Quando nos era destinado fazer uma emboscada nocturna era um caso sério.
E tivemos de fazer tantas…
Normalmente fazíamos as nossas emboscadas indo de
viatura até determinado sítio, saltando com ela em marcha. A viatura
continuava um pouco mais para a frente, voltando ao acampamento pelo
mesmo caminho.
Quando havia emboscadas nocturnas o pelotão ao
pôr-do-sol dirigia-se no maior silêncio para o local já anteriormente
explorado. As noites africanas são mesmo escuras, não há meio-termo,
enquanto as claras, com luar, deixam ver ao longe. Os militares ficavam
à distância de um braço, pois como não era possível falar, só por toque
uns nos outros poderíamos comunicar. Até mesmo para acordar um colega a
quem o sono enganara…
Risos no Mato!
Estas emboscadas são um suplício. Temos medo de vir a ser surpreendidos
pelo IN, compassados que se ouvem à distância na picada: tucatuca…
tucatuca… tucatuca... e nós de arma aperrada, dedo no gatilho, prontos a
fazer fogo.
“Meu Deus ouço um respirar fundo vindo do outro lado
da picada! Sacana…” Já sabíamos que era uma pakaça… E nós sem poder
fazer fogo! Se o fizéssemos denunciávamos a nossa posição. Deste jeito,
amanhã não teremos carne fresca.
A noite vai passando. Tentamos não pensar noutras
coisas para não nos distrairmos. Mas a família, lá longe, felizmente não
sabe onde estamos, nem o que estamos a passar…
O Cabo Pombal agarra-me num braço, com força. Devia
estar distraído quando ouviu, ao longe, um sorriso logo seguido de
outros!
– Tem calma – digo-lhe baixinho, são as hienas.
Aqueles sorrisos histéricos gelam-nos o sangue.
Cheirou-lhes a carne fresca, pensei. Tantas horas deitados de barriga no
capim, com as espingardas à nossa frente prontas a fazer fogo, à espera
não se sabe de quê!
Olho para o céu, ainda não se vê nada. O meu relógio
marca 3H30 da madrugada. Só lá para as 5H30 começará a ver-se a aurora.
Mais duas horas de suplício, pensei!
Ouço qualquer coisa a arrastar à minha esquerda, eu
continuava a ser o último homem daquele lado do Pelotão. Agora é que é
pior. Eu conhecia aquele arrastar, arrastar de cobra! Meu Deus, eu nem
sequer a via, não podia fazer fogo! Fico quieto, sem poder fazer nada.
Enregelasse-me o corpo com medo! Passei assim alguns minutos que me
pareceram horas! Assim como tinha aparecido, o som foi-se afastando até
que desapareceu na escuridão do mato.
O grande problema das emboscadas nocturnas é pôr à prova o nosso
sangue-frio. Se não vejamos:
– O riso de uma hiena, quando nos apanha
desprevenidos, é como um soco dado no coração. Até as pontas dos cabelos
ficam alerta, enquanto não compreendemos o que se passa. Depois o ar que
retivemos nos pulmões começa a sair devagar, devagarinho, para não
fazermos barulho.
– Um animal a passar na picada põe-nos de arma em
riste prontos a fazer fogo, sempre com os nervos tensos. Então
compreendemos o que se passa e baixamos as armas. Neste caso tivemos
duas desilusões: não são os “turras”, e não podemos fazer fogo para
termos carne fresca na manhã seguinte.
– Até uma simples cobra mete medo a um soldado
armado, por este não poder utilizar a arma.
Finalmente as nuvens começam a avermelhar. Dentro de algum tempo o sol
nascerá. É então altura das viaturas nos virem buscar para o acampamento
onde podemos comer a bucha e tentar descontrair.
Muitas das vezes esta descontracção consegue-se
conversando com o pessoal da companhia, falando de nada, coisas sem
importância, outras lendo um “bate estradas”, que embora tendo chegado
há uma semana, todos os dias é lido. Outras vezes era o descanso na
cama, uma cama militar só com um cobertor, que era lavado quando as
nossas unhas ao puxarem-no ficavam cheias de pó e terra. Mas sabia tão
bem!
Eu tinha o costume de descansar estendido na cama de
barriga para cima, com os braços cruzados sobre o peito. Tantas vezes
foram acordadas pelo Sargento Enfermeiro Pereira:
– Ribau sai dessa posição, não posso ver-te assim,
pá. Parece que estás morto!
A vida era assim naquele malvado fim do mundo. Uma
rotina. Tudo repetido vezes sem conta. Ou operacional, ou de serviço ao
acampamento, ou ir à água, ou de “folga” no meio do mato, a 30Km de
qualquer outra Companhia.
Raramente recebíamos a visita de companheiros vindos
de outros sítios.
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