PV2...
Lá continuávamos com a mesma vida. Só que, perante
tanta adversidade, o número de emboscadas tanto diurnas como nocturnas,
os patrulhamentos apeados, toda a espécie de operações, aumentou,
chegámos a uma altura em que não havia um dia de descanso! Havia
operações que não estavam na “cartilha”.
Recordo uma do nosso pelotão. Estávamos perto do rio
Luvo a descansar, quando para o lado do rio pareceu-nos ouvir vozes.
Ordem do Alferes:
– Eu fico aqui emboscado com duas secções; a outra
volta para trás e vai pela estrada de São Salvador até ao rio. Depois
segue o curso do rio para o Sul. Quando estiverem no rio devem fazer
barulho para “eles”, se vos ouvirem, virem ao nosso encontro e nós aqui
damos-lhes as boas vindas!
A minha secção foi a que foi fazer uma espécie de
cerco (recordei-me de quando era pequeno ter feito dessas coisas para
“assombrar” os pintassilgos para a palma).
Chegámos ao rio, que era baixo nalguns sítios. Por
ali havia muitas árvores com os ramos caídos, que facilitavam o
atravessamento, o resto era mata densa. Conversávamos uns com os outros.
Até me dei ao luxo de fumar um cigarro. “Eles” conheciam o cheiro do
tabaco dos tropas e, nesta altura, convinha. A temperatura do rio era
amena. Ao longe começava a ouvir-se o roncar de um avião.
– É pá! Eu conheço aquele ruído. É um PV2.
Eu conhecia bem aqueles aviões que, para aterrarem em
S. Jacinto, passavam por cima da minha casa. Devia andar em patrulha.
Vinha da zona da fronteira, e seguia o curso do rio rumo ao sul.
Tive receio que nos confundissem com terroristas e
recomendei que ficássemos parados. Disse ao homem do rádio que chamasse
o avião, que podia dar-nos notícias, lá de cima, sobre o IN. O homem
tentou o contacto:
– Atenção galo, aqui cobra. Diga se me ouve, escuto…
Silêncio total. O pedido foi repetido várias vezes e
nada.
– Deixa isso. Ele já vai longe – disse eu.
O Soldado exaltou-se e berrou:
– Filhos da puta! Se calhar vão a ouvir música com os
auscultadores enfiados nos cornos e é por isso que não nos ouvem.
O homem estava irritadíssimo. Tentei acalmá-lo:
– Vês qual é a diferença entre um aviador e um
militar de infantaria? Ele vê a mata de cima e nós vemo-la de baixo!
– Essa não tem graça nenhuma, meu Furriel – foi a
resposta.
Nessa altura um bando de pássaros, (pareciam aves do
paraíso), deu por nós e levantou voo com grande alarido.
Bem, faziam-se horas para o regresso. Quando chegámos
ao ponto de encontro, apareceram as outras duas secções.
– Então? – Perguntámos.
– Não vimos nada, foi a resposta.
Entrámos nas viaturas e regressámos ao acampamento.
O tempo passa e nós nesta pasmaceira. Vem aí o Natal,
mas ainda falta tanto tempo! Aqui o tempo demora mais a passar. Ainda
por cima, talvez por esta zona ser muito próximo da fronteira, não se
vêem indígenas. Não há com quem conversar, a não ser com os nossos
companheiros. Mas as conversas são sempre as mesmas. Já cheiram mal!
Por que fugiriam os brancos? Por que fugiriam os
nativos?! Por que fugiram os da casa que nós ocupámos e os da linda
moradia que vandalizámos? Teriam mesmo fugido ou foram apanhados pela
raiva cega vinda do Congo Léopoldville? Um pouco mais a Norte do nosso
acampamento existe a sanzala Pangala, que tinha trinta e duas cubatas,
há largo tempo abandonadas. É daí que vem o nome do aquartelamento
Pangala, agora a nossa “casa”.
O maçarico
Certo dia fomos fazer patrulha apeada para as bandas de Cuimba. Tudo
calmo. Era necessária muita cautela à passagem pelas sanzalas
abandonadas. Havia uma coluna de reabastecimento vinda de São Salvador.
Dado haver indícios de que “eles” estavam a passar por uma picada mais
ao Sul – aquela onde descobrimos a escola debaixo de uma árvore,
lembram-se? – Seguimos para aquele lado. Havia um pelotão de Cuimba, que
viria ao nosso encontro, não fossem “eles” aproveitar para nos deixarem
alguma má recordação.
Finalmente avistámos o outro pelotão, com os homens
sentados na berma da estrada à nossa espera. Descansavam num alto, como
convinha. Toda esta malta era nossa conhecida por pertencerem ao mesmo
Batalhão, mas com quem pouco conversávamos dada a distância que nos
separava. E vieram as novidades:
– Ó meu Furriel, sabe quem é aquele ali?
E o soldado apontou na direcção de um outro, muito
velho para a média das nossas idades. Ele devia andar pelos 28-30 anos!
– Não, quem é?!
– É o nosso “maçarico” – responde a rir.
– Maçarico, com aquela idade? – Retorqui.
Então o Soldado contou-me a história daquele homem:
– Era refractário, andou fugido à tropa mas foi
apanhado. Foi fazer a recruta, e por cima teve ainda um prémio!
– Um prémio? – Disse eu, sem perceber onde ele queria
chegar.
– Pois, um prémio. Então não é um prémio chegar a
Angola e ser logo enviado para a fronteira Norte, para o nosso Batalhão,
para o “Rebenta”, como já é conhecido? – E ria a bandeiras despregadas,
como se o que acabava de dizer lhe desse um grande gozo.
Fiquei sem saber o que dizer…
Entretanto aproximou-se de nós o Comandante do
pelotão do Cuimba e admoestou o soldado prevaricador. O Alferes era um
rapaz novo. Tinha sido guarda-redes da Académica. Falámos um pouco sobre
outros assuntos que não a guerra, e entretanto chegou a coluna de
reabastecimento que transportou o pelotão para Cuimba. Nós regressámos a
pé ao acampamento de Pangala.
Mais tarde soube que o Alferes foi ferido por uma
mina anti-carro e evacuado para Luanda.
Maldita água quente!
Chegados ao acampamento, sempre a mesma coisa. Subir aos bidões a ver se
há água para se poder tomar uma banhoca. Havia, mas pouca. Combinámos
entre nós que seria só uma regadela. Não podia haver ensaboadela, se não
só um podia tomar banho e nós éramos três. Assim fizemos.
O primeiro a tomar banho põe-se aos berros:
– Maldita água, que está quente de mais.
O dia estava quente. Como a água era pouca aqueceu
demasiado. A água chegou à vontade para o banho mas o prazer de um banho
fresco, foi-se! Nesta terra é assim. Se queres tomar um banho fresco,
tens que esperar que chova ou então levantas-te cedo, antes do sol
nascer! Mas cuidado! Sê rápido, senão terás de ouvir os teus
companheiros quando se levantarem e não tiverem água para lavar ao menos
a cara! Fazer a barba será quando calhar, e se calhar.
As emboscadas, a qualquer hora do dia ou da noite,
sucediam-se. Não era fácil pois o IN conhecia melhor o local do que nós.
Não tínhamos cartas do terreno, não havia bússolas, não havia binóculos,
a zona era completamente desabitada, sem pisteiros.
Tínhamos de nos desenrascar. Quantas vezes andámos às
voltas, passando pelo mesmo local várias vezes, até que me lembrei de
como faziam os escuteiros – dar um nó no capim ou deitá-lo no sentido da
nossa marcha. Assim era mais difícil perdermo-nos!
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