Machado de Assis, Tu, só tu, puro amor.

Tu, só tu, puro amor

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CENA V

D. ANTÓNIO DE LIMA, D. CATARINA DE ATAÍDE, D. FRANCISCA DE ARAGÃO

 

            D. ANT. —  Mas não, não vás sem falar à senhora D. Francisca de Aragão, que aí nos aparece, fresca como a rosa que desabotoou agora mesmo, ou como dizia a farsa do nosso Gil Vicente, que eu ouvi há tantos anos, por tempo do nosso sereníssimo Senhor D. Manuel... Velho estou, minha formosa dama...

            D. FRA. —  E que dizia a farsa?

            D. ANT. —  A farsa dizia:

                                               É bonita como estrela,

                                               Uma rosinha de Abril,

                                               Uma frescura de Maio,

                                               Tão manhosa, tão subtil!

Vede, que a farsa adivinhava já a nossa D. Francisca de Aragão, uma frescura de Maio, tão manhosa, tão subtil...

            D. FRA. —  Manhosa, eu?

            D. ANT. —  E Subtil. Não vos esqueça a rima, que é de lei. (Vai a sair pela porta da direita; aparece CAMÕES).

 

CENA VI

OS MESMOS, CAMÕES

 

            D. CAT. —  (à parte). Ele!

            D. FRA. —  (baixo a D. CATARINA). Sossegai!

            D. ANT. —  Vinde cá, senhor poeta das galinhas. Já me chegou aos ouvidos o vosso lindo epigrama. Lindo, sim; e estou que não vos custaria mais tempo a fazê-lo do que eu a dizer-vos que me divertiu muito... E o duque? O duque, ainda não emendou a mão? Há-de emendar, que não é nenhum mesquinho.

            CAMÕES (alegremente). Pois El-rei deseja o contrário...

            D. ANT. —  Ah! Sua Alteza falou-vos disso?... Contar-mo-eis em tempo. (A D. Catarina com intenção.) Minha filha e senhora, não ides ter com a rainha? eu vou falar a El-rei. (D. CATARINA corteja-os e dirige-se para a esquerda; D. ANTÓNIO sai pela direita).

 

CENA VII

OS MESMOS, menos D. ANTÓNIO DE LIMA

            (D. CATARINA quer sair, D. FRANCISCA DE ARAGÃO detém-na)

 

            D. FRA. —  Ficai, ficai...

            D. CAT. —  Deixai-me ir!

            CAMÕES — Fugis de mim?

            D. CAT. —  Fujo... Assim o querem todos.

            CAMÕES. —  Todos! todos quem?

            D. FRA. —  (indo a CAMÕES). Sossegai. Tendes, na verdade, um génio, uns espíritos... Que há-de ser? Corre a mais e mais a notícia dos vossos amores... e o Senhor D. António, que é pai, e pai severo...

            CAMÕES — (vivamente, a D. CATARINA). Ameaça-vos?

            D. CAT. —  Não; dá-me conselhos, bons conselhos, meu Luís. Não vos quer mal, não quer... Vamos lá; eu é que sou desatinada. Mas, passou. Dizei-nos lá esses versos de que faláveis há pouco. Um epigrama, não é? Há-de ser tão bonito como os outros... menos um.

            CAMÕES  — Um?

            D. CAT. —  Sim, o que fizestes a D. Guiomar de Blasfé.

            CAMÕES — (com desdém). Que monta? Bem frouxos versos.

            D. FRA. —  Não tanto; mas eram feitos a D. Guiomar, e os piores versos deste mundo são os que se fazem a outras damas. (A D. CATARINA.) Acertei? (A CAMÕES. — ) Ora, andai, vou deixar-vos; dizei o caso do vosso epigrama, não a mim, que já o sei de cor, porém a ela que ainda não sabe nada... E que foi que vos disse El-rei?

            CAMÕES — El-rei viu-me, e dignou-se chamar-me; fitou-me um pouco a sua real vista, e disse com brandura: "Tomara eu, senhor poeta, que todos os duques vos faltem com galinhas, porque assim nos alegrareis com versos tão chistosos".

            D. FRA. —  Disse-vos isto? é um grande espírito El-rei!

            D. CAT. —  (a D. Francisca). Não é? (A CAMÕES) E vós que lhe dissestes?

            CAMÕES —  Eu? nada... ou quase nada. Era tão inopinado o louvor que me tomou a fala. E, contudo, se eu pudesse responder agora... agora que recobrei os espíritos... dir-lhe-ia que há aqui (Leva a mão à fronte.) alguma coisa mais do que simples versos de desenfado... dir-lhe-ia que... (Fica absorto um instante, depois olha alternadamente para as duas damas, entre as quais se acha.) Um sonho... Às vezes cuido conter cá dentro mais do que a minha vida e o meu século... Sonhos... sonhos! A realidade é que vós sois as duas mais lindas damas da cristandade, e que o amor é a alma do universo!

            D. FRA. —  O amor e a espada, senhor brigão!

            CAMÕES — (alegremente). Por que me não dais logo as alcunhas que me hão-de ter posto os poltrões do Rossio? Vingam-se com isso, que é a desforra da poltroneria... Não sabeis? Naturalmente não; vós gastais as horas nos lavores e recreios do paço; mora aqui a doce paz do espírito...

            D. CAT. —  (com intenção). Nem sempre.

            D. FRA. —  (a CAMÕES, sorrindo). Isto é convosco; e eu, que posso ser indiscreta, não me detenho a ouvir mais nada. (Dá alguns passos para o fundo).

            D. CAT. —  Vinde cá...

            D. FRA. —  Vou-me... vou a consolar o nosso Caminha, que há-de estar um pouco enfadado... Ouviu ele o que El-rei vos disse?

            CAMÕES. —  Ouviu; que tem?

            D. FRA. —  Não ouviria de boa sombra.

            CAMÕES —  Pode ser que não... dizem-me que não. (A D. CATARINA) Pareceis inquieta...

            D. CAT. —  (a D. FRANCISCA). Não vades, não vades; ficai um instante.

            CAMÕES — (a D. FRANCISCA). Irei eu.

            D. FRA. —  Não, senhor; irei eu só. (Sai pelo fundo).

 

CENA VIII

CAMÕES, D. CATARINA DE ATAÍDE

 

            CAMÕES — (com uma reverência). Irei eu. Adeus, minha senhora D. Catarina de Ataíde! (D. CATARINA dá um passo para ele.) Mantenha-vos Deus na sua santa guarda.

            D. CAT. —  Não... vinde cá (CAMÕES detém-se) Enfadei-vos? Vinde um pouco mais perto. (CAMÕES aproxima-se.) Que vos fiz eu? Duvidais de mim?

            CAMÕES — (Cuido que me queríeis ausente.

            D. CAT. —  Luís! (Inquieta.) Vede esta sala, estas paredes... falarmos a sós... Duvidais de mim?

            CAMÕES — (Não duvido de vós; não duvido da vossa ternura; da vossa firmeza é que eu duvido.

            D. CAT. —  Receais que fraqueje algum dia?

            CAMÕES — (Receio; chorareis muitas lágrimas, muitas e amargas... mas, cuido que fraquejareis.

            D. CAT. —  Luís! juro-vos...

            CAMÕES — (Perdoai, se vos ofende esta palavra. Ela é sincera; subiu-me do coração à boca. Não posso guardar a verdade; perder-me-ei algum dia por dizê-la sem rebuço. Assim me fez a natureza, assim irei à sepultura.

            D. CAT. —  Não, não fraquejarei, juro-vos. Amo-vos muito, bem o sabeis. Posso chegar a afrontar tudo, até a cólera de meu pai. Vede lá, estamos a sós; se nos vira alguém... (CAMÕES dá um passo para sair.) Não, vinde cá. Mas, se nos vira alguém, defronte um do outro, no meio de uma sala deserta, que pensaria? Não sei que pensaria; tinha medo há pouco; já não tenho medo... amor sim... O que eu tenho é amor, meu Luís.

            CAMÕES — (Minha boa Catarina.

            D. CAT. —  Não me chameis boa, que eu não sei o que sou... Nem boa, nem má.

            CAMÕES — (Divina sois!

            D. CAT. —  Não me deis nomes que são sacrilégios.

            CAMÕES — (Que outro vos cabe?

            D. CAT. —  Nenhum.

            CAMÕES — (Nenhum? Simplesmente a minha doce e formosa senhora D. Catarina de Ataíde, uma ninfa do paço, que se lembrou de amar um triste escudeiro, sem reparar que seu pai a guarda para algum solar opulento, algum grande cargo de camareira-mor. Tudo isso havereis, enquanto o coitado de Camões irá morrer em África ou Ásia...

            D. CAT. —  Teimoso sois! sempre essas ideias de África...

            CAMÕES (Ou Ásia. Que tem isso? Digo-vos que, às vezes, a dormir, imagino lá estar, longe dos galanteios da corte, armado em guerra, diante do gentio. Imaginai agora...

            D. CAT. — . Não imagino nada; vós sois meu, tão-só meu, tão-somente meu. Que me importa o gentio, ou o turco, ou que quer que é, que não sei, nem quero? Tinha que ver, se me deixáveis, para ir às vossas Áfricas... E os meus sonetos? Quem mos havia de fazer, meu rico poeta?

            CAMÕES — (Não faltará quem vo-los faça, e de maior perfeição.

            D. CAT. —  Pode ser; mas eu quero-os ruins, como os vossos... como aquele da Circe, o meu retrato, dissestes vós.

            CAMÕES — (recitando).

                                               Um mover de olhos, brando e piedoso,

                                               Sem ver de quê; um riso brando e honesto,

                                               Quase forçado; um doce e humilde gesto

                                               De qualquer alegria duvidoso...

 

            D. CAT. —  Não acabeis, que me obrigaríeis a fugir de vexada.

            CAMÕES — De vexada! Quando é que a rosa se vexou, porque o sol a beijou de longe?

            D. CAT. —  Bem respondido, meu claro sol.

            CAMÕES — Deixai-me repetir que sois divina. Natércia minha, pode a sorte separar-nos, ou a morte de um ou de outro: mas o amor subsiste, longe ou perto, na morte ou na vida, no mais baixo estado, ou no cimo das grandezas humanas, não é assim? Deixai-me crê-lo, ao menos; deixai-me crer que há um vínculo secreto e forte, que nem os homens, nem a própria natureza poderia já destruir. Deixai-me crer... Não me ouvis?

            D. CAT. —  (enlevada). Ouço, ouço.

            CAMÕES — Crer que a última palavra de vossos lábios será o meu nome. Será?... Tenha eu esta fé, e não se me dará da adversidade; sentir-me-ei afortunado e grande. Grande, ouvis bem? Maior que todos os demais homens.

            D. CAT. —  Acabai!

            CAMÕES — (Que mais?

            D. CAT. —  Não sei; mas é tão doce ouvir-vos! Acabai, acabai, meu poeta! Ou antes, não, não acabeis; falai sempre, deixai-me ficar perpetuamente a escutar-vos.

            CAMÕES — Ai de nós! A perpetuidade é um simples instante, um instante em que nos deixam sós nesta sala! (D. CATARINA afasta-se rapidamente) Olhai; só a ideia do perigo vos arredou de mim.

            D. CAT. —  Na verdade, se nos vissem... Se alguém aí, por esses reposteiros... Adeus...

            CAMÕES. —  Medrosa, eterna medrosa!

            D. CAT. —  Pode ser que sim; mas não está isso mesmo no meu retrato?

 

                                               Um encolhido ousar, uma brandura,

                                               Um medo sem ter culpa; um ar sereno,

                                               Um longo e obediente sofrimento...

 

            CAMÕES

                                               Esta foi a celeste formosura

                                               Da minha Circe, e o mágico veneno

                                               Que pôde transformar meu pensamento.

 

            D. CAT. —  (indo a ele). Pois então? A vossa Circe manda-vos que não duvideis dela, que lhe perdoeis os medos, tão próprios do lugar e da condição; manda-vos crer e amar. Se ela às vezes foge, é porque a espreitam; se vos não responde, é porque outros ouvidos poderiam escutá-la. Entendeis? É o que vos manda dizer a vossa Circe, meu poeta... e agora... (Estende-lhe a mão) Adeus!

            CAMÕES — Ide-vos?

            D. CAT. —  A rainha espera-me. Audazes fomos, Luís. Não desafiemos o paço... que esses reposteiros...

            CAMÕES — Deixa-me ir ver!

            D. CAT. —  (detendo-o). Não, não. Separemo-nos.

            CAMÕES — Adeus! (D. CATARINA dirige-se para a porta da esquerda; CAMÕES, olha para a porta da direita).

            D. CAT. —  Andai, andai!

            CAMÕES — Um instante ainda!

            D. CAT. —  Imprudente! Por quem sois, ide-vos, meu Luís!

            CAMÕES — A rainha espera-vos!

            D. CAT. —  Espera.

            CAMÕES — Tão raro é ver-vos!

            D. CAT. —  Não afrontemos o céu... podem dar conosco...

            CAMÕES — Que venham! Tomara eu que nos vissem! Bradaria a todos o meu amor, e à fé que o faria respeitar!

            D. CAT. —  (aflita, pegando-lhe na mão). Reparai, meu Luís, reparai; onde estais, quem eu sou, o que são estas paredes... domai esse génio arrebatado. Peço-vo-lo eu. Ide-vos em boa paz, sim?

            CAMÕES — Viva a minha corça gentil, a minha tímida corça! Ora vos juro que me vou, e de corrida. Adeus!

            D. CAT. —  Adeus!

            CAMÕES — (com a mão dela presa). Adeus!

            D. CAT. —  Ide... deixai-me ir!

            CAMÕES — Hoje há luar; se virdes um embuçado diante das vossas janelas, quedado a olhar para cima, desconfiai que sou eu; e então, já não é o sol a beijar de longe uma rosa, é o goivo que pede calor a uma estrela.

            D. CAT. —  Cautela, não vos reconheçam.

            CAMÕES — Cautela haverei; mas que me reconheçam, que tem isso? Embargarei a palavra ao importuno.

            D. CAT. —  Sossegai. Adeus!

            CAMÕES — Adeus! (D. Catarina dirige-se para a porta da esquerda e pára diante dela, à espera que CAMÕES saia. CAMÕES corteja-a com um gesto gracioso, e dirige-se para o fundo.  Levanta-se o reposteiro da porta da direita, e aparece Caminha.  D. CATARINA dá um pequeno grito e sai precipitadamente.  CAMÕES detém-se. Os dois homens olham-se por um instante).

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15-03-2006